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I Encontro Estadual sobre Educação Inclusiva


Ministério Público do Estado do Maranhão
Palestra proferida em 26 de Agosto de 2002


Desafios para a Implementação das Diretrizes Nacionais para a Educação Especial
Profa. Maria Alice Rosmaninho Perez

Inicialmente quero dizer que apreciei muito o título desta palestra: Desafios para a Implementação das Diretrizes ... Desafio implica em providências: algumas mais fáceis de se tomar, outras mais difíceis. E para se tomar providências é preciso iniciativa, vontade política, discernimento e ação. Desafio impele para a frente e não deve ser entendido sob a cômoda ótica da impossibilidade e da inércia.

" ... o texto legal é a concretização dos anseios da própria sociedade. Não é um instrumento aleatório, autoritário, elaborado por alguma instância externa à sociedade ... mas deve responder às necessidades da comunidade ..."

Não vou simplesmente relatar dificuldades ou facilidades para a implementação da Resolução nº 2 do CNE/MEC, mas constatar fatos à medida em que tento situar alguns pontos das discussões que têm envolvido os atores e interessados nesta questão. Acredito importante contextualizar minha fala numa linha do tempo à medida em que tento clarificar para vocês, como entendo os conceitos que embasam os princípios de integração e de inclusão inerentes à própria Resolução. Todos nós sabemos que a forma como se estabelecem as relações sociais entre os indivíduos é fruto do contexto histórico, social e cultural que caracteriza cada época do desenvolvimento da humanidade. Assim, a mudança de paradigmas, de princípios morais, filosóficos, éticos que norteiam a sociedade se dá por movimentos dessa própria sociedade, que em seu processo evolutivo e de desenvolvimento cria novas demandas, se organiza, se reorganiza, se estrutura em movimentos organizados – os movimentos sociais – gera encontros, reuniões, conferências, documentos, declarações, cartas de intenções que por sua vez se refletem em políticas e textos legais que fundamentam e regulam as relações sociais. Ou seja, o texto legal nada mais é do que a concretização dos anseios da própria sociedade. Não é um instrumento aleatório, autoritário, elaborado por alguma instância externa à sociedade e que devemos simplesmente cumprir. Ele deve responder às necessidades da comunidade, caso contrário se torna ineficaz.

Vou estabelecer um recorte no tempo a partir da segunda metade do século XX, para discutir os conceitos acima citados. Será que existe diferença entre integração e inclusão, ou será mera mudança de terminologia? Como cada um de nós entende estes conceitos? Será que estamos falando a mesma linguagem? Pois bem, após as duas Grandes Guerras, a Europa se deparou com a urgência de reconstrução das cidades, da economia, enfim do restabelecimento da vida normal das comunidades. E para isso necessitava de força de trabalho. Porém, grande parte da mão- de- obra de outrora (soldados e população civil) estava comprometida fisicamente por mutilações e seqüelas da guerra. Iniciam-se nesta época os primeiros programas de habilitação e reabilitação para pessoas com deficiências. Concomitantemente, o movimento mundial de luta pelos Direitos Humanos está em efervescência e fortalece o segmento dos portadores de deficiência, fazendo coro para que houvesse dignidade e respeito na forma da oferta destes programas: não como ferramentas de reabilitação de pessoas deficientes para preencherem lacunas do mercado de trabalho, mas como serviços de direito para estes indivíduos. Surge então o movimento integracionista na Europa, ou seja, o movimento pela integração social das pessoas portadoras de deficiência.

No Brasil, esse movimento chega até nós no final da década de 60 e início de 70, através dos movimentos sociais organizados. Em 1981 esta ação fica mais visível para toda a sociedade quando a ONU decreta o Ano Internacional das Pessoas Deficientes. Entende-se então por integração, uma série de recursos de saúde, de educação, recursos culturais, sociais, que são disponibilizados às pessoas portadoras de deficiência para que estas se integrem ao sistema existente. Ou seja, é um movimento de adaptação do individuo ao sistema já pré estabelecido. Na educação, percebemos o reflexo desse movimento na legislação. Nossa Constituição Federal de 1988 traduz o princípio da integração em seu Art.208, quando trata do atendimento especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino; a Lei 7853/89 (a “Lei da CORDE”) e o Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8069/90.

Enquanto isso na Europa, já na década de 70(Itália -1977, França, Inglaterra-Relatório Warnock - 1978 ) tem início o movimento pela mudança de paradigma, de princípio social, percebendo-se que o sistema é que deveria ser aberto e propiciar a todos os cidadãos o acesso e o usufruto aos bens e serviços produzidos pela própria sociedade. O sistema tem que se adaptar, ser flexível e aberto para acolher a todos, a toda diversidade humana. É um movimento do sistema e não do indivíduo.

O processo de mudança se repete e acontece no campo educacional a Conferência Mundial de Educação para Todos em 1990, na Tailândia. Os Governos de diferentes países se dão conta de que existe um contingente considerável de crianças e jovens excluídos do sistema educacional. É necessário reverter este quadro. Em 1994, ocorre em Salamanca na Espanha, a Conferência de Salamanca, sob a égide da Declaração de Educação para Todos. Discute as necessidades educacionais especiais que as crianças e jovens podem apresentar no seu percurso escolar e quem são estas crianças e jovens. De acordo com o princípio da inclusão educacional, cada país, ou povos, apresentaria algum segmento da população mais fragilizado que os demais e que mereceria atenção. Assim, na Africa, ainda hoje o grupo excluído ainda é o das meninas, em Londres são os adolescentes negros, no Brasil, são os portadores de deficiência. Será? E as crianças em situação de rua, as crianças migrantes? Será que o recorte em nosso país não seria ser pobre ou ser rico, ainda?

A nossa Lei das Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN 9394/96) institui uma série de mudanças na direção da Educação para Todos. Dentre elas podemos citar a concepção da Educação Especial como sendo uma modalidade da educação que deve perpassar todos os níveis de ensino, da educação infantil ao ensino superior e não mais ser ofertada como praticamente um sistema paralelo ao ensino regular. Historicamente temos voltado a educação especial para o atendimento de alunos portadores de deficiência ou os com altas habilidades. Com a LDBEN e com a regulamentação do capítulo referente à educação especial pelo Conselho Nacional de Educação/MEC através da Resolução nº 2 ,de 11/09/2001, que traça as Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica percebemos que amplia-se o leque de beneficiários: os com condutas típicas de síndromes, os com graves problemas emocionais que gerem severa dificuldade de aprendizagem, entre outros.

O que quero deixar conceitualmente claro é que educação especial não é sinônimo de educação inclusiva. Ela se constitui num conjunto de recursos específicos ofertados a alunos com necessidades educacionais especiais durante seu percurso escolar e que vem favorecer a construção de uma escola verdadeiramente inclusiva. A escola tem que ser inclusiva, seu projeto pedagógico tem que beneficiar a todos, não somente a portadores de deficiência. Os recursos, a educação especial constituem-se em parte desse projeto pedagógico para a inclusão de todos. A construção de uma escola inclusiva não é responsabilidade somente da educação especial, mas de todos os atores envolvidos no processo e no sistema educacional. Os desafios para implementação das Diretrizes Nacionais para a Educação Especial de acordo com um referencial de educação inclusiva são muitos. Os dois eixos tratados no documento sinalizam onde se dão os maiores embates: na re/organização de estruturas e serviços e na formação docente.

Quanto à estrutura, ela (Resolução) propõe todas as formas de atendimento, chamadas de serviços de apoio pedagógico especializados, que vão desde os serviços já existentes, como a instituição especializada, a escola especial, a classe especial , a sala de recursos, a classe hospitalar, o atendimento domiciliar até a itinerância do professor especializado e o perfil de mediador e articulador do professor na escola como sendo mais uma forma de recurso pedagógico. O que não fica claro nos documentos oficiais é a definição de competências e a forma de funcionamento dessas estruturas, uma discussão mais aprofundada de modelos institucionais. O que se percebe é que cada sistema de ensino, cada rede de educação está se adequando de acordo com sua interpretação e realidade. Também há necessidade de uma rede de apoio social de retaguarda com serviços de saúde, de promoção social, de preparação para o trabalho, de transportes, de atividades esportivas, culturais e de lazer. Existem experiências pontuais, de serviços de referência e contra referência, mas não uma política articulada na área social. Um dos aspectos desse contexto é a revisão do papel das instituições especializadas. Devem só prestar atendimento direto? E para quem? Devem ser referência na capacitação especializada?

Outro agente importantíssimo nesse processo é a Universidade. Observa-se que há um distanciamento da Universidade, não no que diz respeito à produção do conhecimento, mas sim na participação concreta junto a projetos que envolvem as redes de ensino, particularmente as públicas. Existem projetos em andamento, mas são iniciativas localizadas de alguns profissionais da Universidade que se mobilizam para tal, e não uma política do ensino superior, de participação e envolvimento na construção de um sistema educacional realmente inclusivo. Quanto à formação docente, depara-se com algumas dificuldades por lacunas deixadas na formação inicial, a heterogeneidade desta formação inicial num mesmo grupo de professores, a carência de compreensão conceitual de educação inclusiva, projeto pedagógico, processos de avaliação. A discussão crítica sobre a reconstrução do perfil docente sob a perspectiva da inclusão , da resignificação do papel do professor, também têm sido alvo de debates nos programas de educação continuada. Há ainda discussões sobre a formação e o papel do professor especializado: ele deve continuar a se especializar em uma só área da deficiência ou deve ter uma especialização mais ampla sobre as necessidades educacionais especiais?

Enfim, estes são alguns dos desafios que temos enfrentado para a implementação das Diretrizes. Mas, o que nos mobiliza é a clareza de que essa construção é um processo; que já avançamos muito em pouco tempo, quando observamos a linha do tempo das conquistas sociais; que o que importa não é a velocidade, mas a certeza do caminho, apesar de existir a premência de respostas: as crianças estão aí; que países mais evoluídos como a Itália, por exemplo que iniciou este processo na década de 70, como citei de início, ainda está discutindo a formação e o perfil mais adequado do professor especializado, como nós; que a educação especial está propiciando a discussão da escola inclusiva no resgate do sistema educacional e não mais como depositária das mazelas desse mesmo sistema e a consciência de que temos a missão de consertar um avião em pleno vôo! Creio que estamos dando conta destes desafios. Precisamos manter muito diálogo neste momento, sem posturas radicais, desenvolvendo ações responsáveis, coerentes e em parceria, como a brilhante iniciativa deste Encontro está nos proporcionando.

São Luís, 26 de Agosto de 2002.

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