MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA ORGANIZADORES Eugênia Augusta Gonzaga Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL MINISTÉRIO PÚBLICO DA UNIÃO Raquel Elias Ferreira Dodge Procuradora-Geral da República João Akira Omoto Diretor-Geral da Escola Superior do Ministério Público da União Alberto Bastos Balazeiro Diretor-Geral Adjunto da Escola Superior do Ministério Público da União CÂMARA EDITORIAL – CED MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL André Batista Neves Procurador da República Antonio do Passo Cabral Procurador da República MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO Carolina Vieira Mercante Procuradora do Trabalho - Coordenadora da CED Ricardo José Macedo Britto Pereira Subprocurador-Geral do Trabalho MINISTÉRIO PÚBLICO MILITAR Nelson Lacava Filho Promotor de Justiça Militar Selma Pereira de Santana Promotora de Justiça Militar MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS Antonio Henrique Graciano Suxberger Promotor de Justiça Maria Rosynete de Oliveira Lima Procuradora de Justiça ORGANIZADORES Eugênia Augusta Gonzaga Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros Brasília-DF 2018 20 18 MINISTÉRIO PÚBLICO , SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA ESCOLA SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO DA UNIÃO SGAS Av. L2 Sul Quadra 604 Lote 23, 2o andar 70200-640 – Brasília-DF Tel.: (61) 3313-5107 – Fax: (61) 3313-5185 Home page: E-mail: © Copyright 2018. Todos os direitos autorais reservados. SECRETARIA DE INFRAESTRUTURA E LOGÍSTICA EDUCACIONAL Nelson de Sousa Lima ASSESSORIA TÉCNICA – CHEFIA Lizandra Nunes Marinho da Costa Barbosa ASSESSORIA TÉCNICA – REVISÃO Carolina Soares dos Santos ASSESSORIA TÉCNICA - PROGRAMAÇÃO VISUAL Rossele Silveira Curado PREPARAÇÃO DOS ORIGINAIS E REVISÃO DE PROVAS Bárbara Seixas Arreguy Pimentel, Carolina Soares dos Santos, Davi Silva do Carmo, Lia Samantha Rolán Barbosa, Sandra Maria Telles CAPA, PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO Rossele Silveira Curado As opiniões expressas nesta obra são de exclusiva responsabilidade dos autores. DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) (BIBLIOTECA DA ESCOLA SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO DA UNIÃO) M665 304 p. Ministério público, sociedade e a lei brasileira de inclusão da pessoa com deficiência / André de Carvalho Ramos ... [et al.]; Eugênia Augusta Gonzaga, Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros (organizadores). – Brasília : ESMPU, 2018. ISBN 978-85-9527-026-8 ISBN (EPUB) 978-85-9527-024-4 ISBN (PDF) 978-85-9527-025-1 Inclui bibliografias 1. Ministério Público. 2. Direitos humanos. 3. Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. 4. Pessoa com deficiência - legislação. 5. Igualdade de oportunidade - Brasil. I. Ramos, André de Carvalho. II. Araujo, Luiz Alberto David. III. Gugel, Maria Aparecida. IV. Gonzaga, Eugênia Augusta. V. Medeiros, Jorge Luiz Ribeiro de. CDD 341.27 Sumário Apresentação 9 Eugênia Augusta Gonzaga Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência: o cenário nacional pós-ratificação e os desafios à sua implementação 11 Stella Camlot Reicher A efetividade (ou a falta de efetividade) da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU 35 Luiz Alberto David Araujo Maurício Maia A importância da atuação articulada entre sociedade civil e o poder constituído, em especial, com o Ministério Público Gonzalo Lopez 59 Pessoas com deficiência e seu direito fundamental à capacidade civil 85 Ana Cláudia Mendes de Figueiredo Eugênia Augusta Gonzaga Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e o paradigma da inclusão André de Carvalho Ramos 109 A obrigação de realização do direito das pessoas com deficiência ao reconhecimento igual perante a lei conforme o Direito Internacional dos Direitos Humanos 143 Felipe Hotz de Macedo Cunha A pessoa com deficiência e os direitos à previdência social e à assistência social Symone Maria Machado Bonfim Lei Brasileira de Inclusão: capacidade eleitoral das pessoas com deficiência mental, a curatela como medida excepcional e as seções eleitorais especiais Sidney Pessoa Madruga 167 207 Ciladas da dicotomia entre inclusão e aprendizagem 221 Rodrigo Hübner Mendes E Leminski já sabia – mobilidade acessível e a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros Livro em formato acessível: direito fundamental da pessoa com deficiência Marcia Morgado Miranda Weinschenker O mundo do trabalho e as pessoas com deficiência Maria Aparecida Gugel 235 259 277 Como é de são efeito, ajudo com meu querer acreditar. Mas nem sempre posso. O senhor saiba: eu toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Grande Sertão: Veredas Guimarães Rosa Apresentação A construção desses marcos normativos muito se deve ao cotidiano de lutas dos movimentos sociais e de outros atores envolvidos, a fim de permitir a transição para um paradigma de verdadeira inclusão e autonomia das pessoas com deficiência. O caminho do diálogo e de abertura com os movimentos sociais foi também um dos grandes diferenciais do Ministério Público, erigido a partir da Constituição de 1988, cuja atuação democrática e cidadã deve pautar-se no tripé de efetivação de direitos, diálogo com a sociedade e constante reflexão crítica acerca de sua própria atuação. Qualquer obra que pretendesse analisar a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência com base em um Ministério Público ensimesmado, encastelado em torres de marfim, estaria fadada a um pseudotecnicismo estéril, fundando um equivocado monólogo em que a única resposta possível reside no diálogo. O título “Ministério Público, Sociedade e a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência” reflete essa busca pela construção coletiva, com sociedade e academia, com membros de diferentes ramos do Ministério Público, advogados e militantes, a fim de trazer múltiplas visões sobre temas centrais para a efetivação de direitos das pessoas com deficiência. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA O trecho de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, nos permite relembrar que o respeito à diversidade pressupõe inclusão e autonomia, princípios consagrados pela Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência (CIDPD) e pela Lei n. 13.146/2015, conhecida como Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBIPD). 9 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA O livro não tem a pretensão de esgotar a transformação transversal que a CIDPD e a LBIPD trouxeram a vários ramos do nosso sistema jurídico, abordando, porém, aspectos essenciais, a exemplo dos debates sobre o paradigma da inclusão e os desafios para sua implementação, a consagração da capacidade civil e eleitoral e a acessibilidade no trabalho, no acesso à cultura e aos direitos previdenciários e na mobilidade urbana. Esse enfoque se faz necessário num momento em que se apresenta a essas conquistas uma série de ameaças de retrocesso, seja no plano legislativo, seja por atuações administrativas que não observam a lei. Nesse sentido, é importante registrar o compromisso da Escola Superior do Ministério Público da União de disponibilizar seus livros em formatos acessíveis, incluindo, por meio desta obra-marco, a iminente implantação do formato ePub, permitindo uma mudança de paradigma no próprio âmbito interno do Ministério Público. O principal objetivo da obra, mais do que uma leitura pronta e acabada sobre o tema, é promover um chamamento, com base nas reflexões aqui trazidas, para que se possa concretizar uma igualdade na diversidade, tornando assim possível, verdadeiramente, que todos sejamos nós mesmos. Eugênia Augusta Gonzaga Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros Organizadores 10 A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência: o cenário nacional pós-ratificação e os desafios à sua implementação Stella Camlot Reicher1 A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que vigora no Brasil desde a promulgação do Decreto n. 6.949/2009, trouxe um novo paradigma que foi incorporado ao sistema jurídico brasileiro. Sob a ótica do modelo social e de direitos humanos, a deficiência é entendida como um elemento da diversidade humana e que resulta da interação das limitações que a pessoa experimenta em decorrência das barreiras com as quais se depara na sociedade para o pleno exercício de seus direitos. Originada no âmbito do Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos, a Convenção não apenas ajudou a reafirmar os direitos das pessoas com deficiência – que já encontravam expressão num extenso conjunto normativo –, como foi pioneira por ter sido o primeiro tratado de direitos humanos a ter reconhecido o status de norma constitucional. No cenário nacional houve avanços nesse momento pós-Convenção, a exemplo da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência – Lei n. 13.146, de 6 de julho de 2015 –, que entrou em vigor 1 Advogada e Mestre em Direitos Humanos pela USP. Sócia de Szazi, Bechara, Storto, Rosa e Figueiredo Lopes Advogados. Professora de cursos de especialização da PUC/SP (COGEAE). Dedica-se à atuação junto a organizações sem fins lucrativos e na defesa e garantia de direitos das pessoas com deficiência. Palestrante e autora de diversos artigos sobre direitos humanos e direito das pessoas com deficiência. Atuou na construção e apresentação de relatório da sociedade civil do Comitê de Monitoramento da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU (2015). MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Introdução 11 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA em 2016, trazendo novamente luz ao tema e complementando o já extenso rol de normas infraconstitucionais voltadas à proteção dos interesses das pessoas com deficiência. Se até o advento da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência os esforços empreendidos pelas próprias pessoas com deficiência, suas famílias e organizações, acadêmicos e militantes foram no sentido de ter direitos reconhecidos e positivados, no plano internacional e em nosso ordenamento jurídico, hoje as energias devem ser canalizadas para a realização desses direitos e a gradativa ampliação do espaço de liberdade e autonomia das pessoas com deficiência. Diante disso, alguns questionamentos são colocados. Como assegurar que as pessoas com deficiência exerçam seus direitos? Que ferramentas podem nos auxiliar a fazer com que o conteúdo normativo dos direitos reafirmados pela Convenção passem de meras previsões legais à prática? Responder aos referidos questionamentos não é tarefa fácil. O presente artigo, embora sem a pretensão de esgotar o tema, tem como objetivo provocar a reflexão e estimular o diálogo coletivo sobre alguns conceitos e princípios que podem auxiliar na construção de respostas aos referidos questionamentos. 1 O conceito de pessoa com deficiência O texto original da Convenção em inglês diz, em seu artigo 1º, que “pessoas com deficiência incluem aquelas que têm impedimentos físico, mental, intelectual ou sensorial, de longo prazo os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”2 [grifo nosso]. 2 “Persons with disabilities include those who have long-term physical, mental, intellectual or sensory impairments which in interaction with various barriers may hinder their full and 12 Por sua vez, o Decreto n. 6.949/2009, que promulgou a Convenção no Brasil, aponta que “pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”3 [grifo nosso]. Referido comentário nos parece válido, pois pode contribuir para discussões envolvendo o reconhecimento da condição de pessoa com deficiência. Dado que, no processo de formulação do texto da Convenção, optou-se por não conceituar as pessoas com deficiência, fixando-se parâmetros básicos para que cada Estado-Parte positivasse o seu conceito legal, a interpretação desse dispositivo que trata sobre quem são as pessoas com deficiência pode não se dar de forma restritiva, de modo a possibilitar, a partir da consideração dos impedimentos e das barreiras existentes, a realidade de cada indivíduo. Uma outra anotação, talvez redundante mas certamente necessária quanto ao público beneficiário da Convenção, refere-se à previsão da deficiência intelectual e da deficiência mental. A Convenção – assim como depois fez a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência – previu expressamente a deficiência intelectual e a deficiência mental, e isso não foi à toa, pois enquanto a deficiência intelectual está associada aos déficits cognitivos, a effective participation in society on an equal basis with others.” [Grifo nosso]. Disponível em: . 3 Disponível em: . Acesso em: 29 ago. 2017. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Da comparação das duas redações, verifica-se que o texto original em inglês, ao mencionar que pessoas com deficiência “incluem as que têm impedimentos de longo prazo”, é mais aberto que o texto traduzido ao portugûes, segundo o qual pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo […].” 13 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA deficiência mental estaria atrelada aos transtornos psicossociais e à seara da saúde mental. Para alcançar o consenso necessário à sua aprovação, acordaram os Estados-Partes, por ocasião da elaboração do tratado de direitos humanos, em manter no texto ambas as expressões, a fim de que cada qual, ao internalizar a Convenção, decidisse sobre como endereçar o tema. O fato é que, ao incluir a expressão “mental”, a Convenção estendeu toda a proteção normativa conferida às pessoas com transtornos psicossociais. Daí decorre que todos os direitos e garantias que elenca, inclusive no que se refere à capacidade legal, aplicam-se igualmente a todas as pessoas com deficiência, seja esta de natureza física, sensorial, intelectual ou mental. Nesse sentido concordamos com Tina Minkowitz, no sentido de que “[...] não deve haver dúvida de que as pessoas com deficiências psicossociais estejam cobertas pela CDPD”4. No Brasil, o conceito de pessoa com deficiência não é revisitado desde a última atualização do Decreto n. 5.296, de 2 de dezembro de 2004. Segundo o decreto, a “deficiência mental” é entendida como o funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como comunicação; cuidado pessoal; habilidades sociais; utilização dos recursos da comunidade; saúde e segurança; habilidades acadêmicas; lazer; e trabalho5. Nesse sentido, parece-nos que o Decreto n. 5.296/2004 deve, à luz da Convenção, ser readequado de forma a incluir a expressão “intelectual” e a figura da deficiência mental atrelada ao conceito de transtorno psicossocial com características específicas ou combinadas, de síndromes e/ou quadros psicológicos, neurológicos e/ou psiquiátricos. 4 Tradução livre. MINKOWITZ, 2007, p. 407. 5 Disponível em: . Acesso em: 29 ago. 2017. 14 Uma última observação em relação ao público-alvo da Convenção refere-se às pessoas com surdocegueira. Conforme se extrai do Guia de Promoção dos Direitos para as Pessoas com Surdocegueira e Famílias, “[e]mbora a surdocegueira se caracterize por limitações sensoriais de naturezas diversas – auditiva e visual, em diferentes graus – trata-se de um tipo único de deficiência, que se caracteriza principalmente pela dificuldade na Comunicação”6. Necessário ainda harmonizar a redação do Decreto n. 3.298, de 20 de dezembro de 19997, que regulamentou a Lei n. 7.853, de 24 de outubro de 1989, sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência. Como o tipo normativo “decreto” é de competência do Poder Executivo e por ele deve ser alterado, uma das possibilidades de incidência nesse tema seria apresentar esses novos parâmetros em nível legal, como proposição do Poder Legislativo. Mesmo que os referidos decretos não sejam atualizados, o entendimento ampliado acerca do público beneficiário da Convenção já conta com reconhecimento constitucional, diante do que nada obsta que seja desde logo utilizado para todos os fins de direito. 2 O reconhecimento da capacidade legal Conforme se extrai de seus considerandos, a Convenção surge na perspectiva de promover e proteger os direitos e a dignidade das 6 LOPES et al., 2008, p. 70. 7 Disponível em: . Acesso em: 16 set. 2017. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Nesse sentido, há quem entenda pela necessidade de adaptação do Decreto n. 5.296/2004 para que também passe a contemplar a surdocegueira. Atualmente as pessoas surdo-cegas encontram nessa norma proteção legal sob a ótica da deficiência múltipla. 15 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA pessoas com deficiência e de contribuir para “reendereçar as profundas desvantagens sociais das pessoas com deficiência e promover a sua participação nas esferas civil, política, econômica, social e cultural, com igualdade de oportunidades”8. A fim de viabilizar essa ampla participação social das pessoas com deficiência, a Convenção tratou, em seus artigos 12 e 13, de dois temas de extrema relevância, a saber, a capacidade legal ou capacidade jurídica e o acesso à justiça. Na seara da capacidade legal, a Convenção propõe a transição do modelo de substituição pelo apoio na manifestação da vontade e na tomada de decisão pelas pessoas com deficiência, transcendendo a noção de capacidade atrelada ao discernimento presente nas teorias civilistas, ao entender que todas “as pessoas com deficiência têm o direito de ser reconhecidas em qualquer lugar como pessoas perante a lei”, ou seja, têm o direito à personalidade jurídica e a serem respeitadas como sujeitos de direito, onde quer que se encontrem. Ao reconhecer a capacidade legal das pessoas com deficiência, a Convenção provoca uma série de desdobramentos em diversas áreas da vida. A não reificação das pessoas com deficiência faz com que temas sensíveis como esterilização forçada e doação de órgãos passem a ser endereçados de modo a permitir que elas participem desses processos decisórios que implicam diretamente sobre suas vidas. Não podem, portanto, ser ignoradas. Seus desejos, suas vontades e preferências precisam ser respeitados. A Convenção afirma que as pessoas com deficiência devem dispor dos apoios necessários para que o exercício de sua capacidade le8 Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, preâmbulo, y: “Convinced that a comprehensive and integral international convention to promote and protect the rights and dignity of persons with disabilities will make a significant contribution to redressing the profound social disadvantage of persons with disabilities and promote their participation in the civil, political, economic, social and cultural spheres with equal opportunities, in both developing and developed countries […]”. Disponível em: . Acesso em: 16 set. 2017. 16 gal se dê em igualdade de condições, ou seja, para que possam colocar esse direito-garantia em prática, impondo aos Estados-Partes o dever de adotar medidas cabíveis inclusive para assegurar a essas pessoas o direito de possuir ou herdar bens, controlar suas próprias finanças, acessar empréstimos bancários, hipotecas e outras formas de crédito financeiro, de modo a evitar restrições patrimoniais indevidas. Em linha com a Convenção, a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência trouxe mudanças ao Código Civil, em especial na parte que trata da teoria das incapacidades, reconhecendo às pessoas com deficiência mental e intelectual o direito de exercer sua capacidade legal, contando com os apoios necessários e tendo respeitadas a sua dignidade, independência, autonomia e liberdade de fazer as próprias escolhas. Na mesma direção, dissociou deficiência e discernimento em relação à capacidade para o exercício de direitos e limitou a curatela à prática de atos de natureza patrimonial ou negocial (como contratos, aquisição e venda de bens, negociações, entre outros), nos casos em que a pessoa, por causa transitória ou permanente, não possa exprimir sua vontade. Esses avanços atualmente enfrentam riscos de retrocesso. Por força da entrada em vigor do novo Código de Processo Civil, vigente desde março de 2016, dispositivos do Código Civil que haviam recebido nova redação por força da Lei Brasileira de Inclusão foram revogados. Além disso, tramita no Senado Federal o PLS n. 757/2015, que também versa sobre o tema9. 9 Vide Projeto de Lei de iniciativa do Senado n. 757/2015. Disponível em: . MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA A capacidade legal, como direito a ter e a exercer direitos, é, portanto, ferramenta e garantia para a realização de todos os demais direitos assegurados pela Convenção, sejam de natureza civil ou política, econômica, social ou cultural. 17 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA A capacidade legal opera efeitos para além da órbita civil. Dialoga com o tema da prescrição, com o conceito de vulnerabilidade, com a imputabilidade penal e as medidas de segurança e com outros temas relevantes. Nesse sentido, é tema que não pode ser aprofundado à margem de um debate técnico ampliado, de caráter interdisciplinar, que envolva a participação das pessoas com deficiência e de suas famílias e organizações, conforme determina o artigo 4º da Convenção, e da sociedade civil como um todo, para que as propostas de mudança alcancem maior consenso e legitimidade. Implementar esse novo paradigma emancipatório da capacidade legal traz em si muitos desafios e nos convida a provocar reflexões acerca de meios e princípios que possam contribuir para a sua implementação, como veremos a seguir. 3 Capacidade legal e garantia de acesso à justiça A garantia do acesso à justiça é importante ferramenta para materializar os direitos das pessoas com deficiência. Nesse sentido, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência previu o dever dos Estados-Partes de assegurar o efetivo acesso das pessoas com deficiência à justiça, em igualdade de condições com as demais pessoas, inclusive mediante a provisão de adaptações processuais adequadas à idade, a fim de facilitar o efetivo papel das pessoas com deficiência como participantes diretos ou indiretos, inclusive como testemunhas, em todos os procedimentos jurídicos, tais como investigações e outras etapas preliminares. Além disso, destacou o dever dos Estados-Partes de capacitar os que trabalham na área de administração da Justiça, inclusive a Polícia e os funcionários do sistema penitenciário, a fim de assegurar às pessoas com deficiência o efetivo acesso à justiça. 18 As regras da Convenção, nesse sentido, dialogam diretamente com o conteúdo das Regras de Acesso à Justiça das Pessoas em Condição de Vulnerabilidade, aprovadas pela XIV Conferência Judicial Ibero-Americana, ocorrida em Brasília durante o período de 4 a 6 de março de 2008, que ficaram conhecidas como os Princípios de Brasília10. Não obstante, na prática, ainda há muito a ser feito para que as pessoas com deficiência tenham assegurado o seu acesso à justiça. E continua: “§ 1º Somente serão admitidas a propor ação perante o Juizado Especial: I - as pessoas físicas capazes, excluídos os cessionários de direito de pessoas jurídicas; […] § 2º O maior de dezoito anos poderá ser autor, independentemente de assistência, inclusive para fins de conciliação”. Sob o paradigma da capacidade legal universal que preceitua a Convenção, referida legislação deveria ser revista para assegurar o poder postulatório às pessoas com deficiência, especialmente a intelectual e a mental. Como o ingresso nos juizados especiais independe de advogado e eventual mandato pode ser outorgado oralmente, referida norma estaria mais adequada aos princípios da Convenção se assegurasse a todas as pessoas com deficiência o direito de ingressar em juízo, 10 Disponível em: . Texto produzido com o apoio do Projecto Eurosocial Justiça/Grupo de Trabalho formado durante a Conferência Judicial Ibero-Americana, da qual também participaram a Associação Ibero-Americana de Ministérios Públicos (AIAMP), a Associação Interamericana de Defensorias Públicas (AIDEF), a Federação Ibero-Americana de Ombudsman (FIO) e a União Ibero-Americana de Colégios e Agrupamentos de Advogados (UIBA). Acesso em: 4 ago. 2017. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Por exemplo, a Lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995, que trata dos juizados especiais Cíveis e Criminais, prevê, em seu art. 8º, que “[n]ão poderão ser partes, no processo instituído por esta Lei, o incapaz, o preso, as pessoas jurídicas de direito público, as empresas públicas da União, a massa falida e o insolvente civil”. 19 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA sendo-lhes, para tanto, assegurados os meios e suportes necessários para que pudessem manifestar seus interesses e vontade. Esse é apenas um exemplo do cuidadoso exercício de harmonização da legislação que será necessário nessa etapa pós-Convenção. Além disso, outras medidas serão necessárias para assegurar às pessoas com deficiência o acesso à justiça. A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência alterou o art. 228 do Código Civil para reconhecer que “[…] § 2º a pessoa com deficiência poderá testemunhar em igualdade de condições com as demais pessoas, sendo-lhe assegurados todos os recursos de tecnologia assistiva”. No caso de pessoas com deficiência intelectual, parece-nos que outros meios serão necessários para que possam testemunhar e também levar a juízo suas demandas. Uma sugestão seria incorporar técnicas e ferramentas já utilizadas pela justiça com as devidas adaptações, como é o caso do “depoimento sem dano”, usado na oitiva de crianças e adolescentes vítimas de abuso ou exploração sexual. Trata-se de mecanismo que assegura o bem-estar e privilegia o respeito e a dignidade da criança e/ou adolescente depoente. Essa boa prática, já aplicada pelo Poder Judiciário brasileiro, poderia eventualmente ser utilizada para viabilizar não apenas que pessoas com deficiência intelectual, ou mesmo mental, denunciem violações de seus direitos, mas expressem suas vontades e preferências, nos termos do que preceitua o artigo 12 da Convenção11. 11 Utilizado pelo Poder Judiciário do Rio Grande do Sul desde 2003 e hoje aplicado em diversos estados brasileiros, o método se desenvolve em três etapas. Na primeira fase, de “acolhimento inicial”, a criança e seu responsável, denominado “pessoa de confiança”, são recebidos por um(a) psicólogo(a) ou assistente social, em ambiente mais lúdico, sem o encontro com o réu. A segunda etapa, da oitiva, ocorre em sala apartada dotada de equipamentos de som e imagem que permitem a filmagem da inquirição e sua reprodução diretamente na sala de audiências, possibilitando ao juiz acompanhar e efetuar as perguntas a distância, bem como apresentar as perguntas feitas pelo Promotor de Justiça e pelos advogados das partes. A linguagem utilizada é acessível ao estágio de desenvolvimento em que a criança ou adolescente se encontra, sendo mais comum, ao longo do interrogatório, o uso de questões abertas para permitir que a criança ou adolescente se expresse de forma mais espontânea. 20 Além disso, a acessibilidade, em todas as suas dimensões, precisa ser assegurada às pessoas com deficiência para que possam participar do processo em igualdade de condições com pessoas sem deficiência. Isso implica, portanto, a garantia da acessibilidade física e arquitetônica, intérpretes de sinais, guias-intérpretes, materiais em formatos acessíveis, utilização de linguagem facilitada e outros suportes a todas as pessoas com deficiência e em todas as fases do processo, seja este de natureza administrativa ou judicial. Para dar vida à obrigação de garantir a acessibilidade em todas as fases do processo, seria preciso prever, na legislação processual civil e em outras normativas aplicáveis, que a falta de acessibilidade em qualquer das fases de trâmite do processo administrativo ou judicial (citação, produção de provas, em especial testemunhal, entre outras) seja considerada violação do princípio do contraditório e causa de nulidade do processo. Nesse momento pós-Convenção, em que a garantia do acesso à justica depende de medidas para a reformulação de quadros e meios no âmbito do Poder Judiciário, nos parece que o desenvolvimento de ações em conjunto com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), responsável pelo aperfeiçoamento do serviço público na prestação da Justiça, é medida que se impõe, em especial por ser este um importante espaço de articulação dentro do Poder Judiciário. Bonecos, fantoches e outros materiais de apoio também podem ser utilizados para auxiliar a vítima a se expressar, já que às vezes sequer consegue falar ou relatar os fatos. Ao final a “pessoa de confiança” é chamada para uma nova conversa, em que, junto com a vítima, é feita uma avaliação do depoimento. A metodologia comporta ainda a capacitação de todos os envolvidos – juízes, promotores, advogados, assistentes sociais, psicólogos e servidores da Justiça. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Essas medidas são imprescindíveis para assegurar às pessoas com deficiência, ao longo do processo, igualdade de oportunidades para o exercício de princípios como a ampla defesa e o contraditório. 21 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA 4 Notas sobre alguns princípios aplicáveis à luta pelos direitos das pessoas com deficiência Assim como é importante assegurar às pessoas com deficiência o acesso à justiça, o próprio processo, seja ele judicial ou extrajudicial, pode e deve ser usado como ferramenta para sedimentar entendimentos e interpretações acerca dos direitos reafirmados pela Convenção. Nesse sentido, identificamos alguns princípios que podem ser utilizados em todas as esferas em prol da defesa dos interesses e direitos das pessoas com deficiência. 4.1 O modelo social da deficiência e a supremacia do interesse público Como pontuamos no início do artigo, sob o manto da Convenção, a deficiência, antes vista como um problema do indivíduo e de sua família, passa a ser compreendida como o resultado de uma equação que considera, de um lado, o “grau” da limitação que a pessoa experimenta e, de outro, as barreiras (físicas, atitudinais e comunicacionais) que interferem na forma como essa pessoa com deficiência participa da vida em sociedade. Segundo ensina o Relatório Mundial da Deficiência (2011), “[d]efinir a deficiência como uma interação significa que a 'deficiência' não é um atributo da pessoa. O progresso na melhoria da participação social pode ser realizado lidando com as barreiras que afetam pessoas com deficiência na vida diária”12. Disso decorre que, embora situações possam afetar as pessoas com deficiência de forma individual, trabalhar os seus direitos exige analisar as demandas colocadas em pauta, judicializadas ou não, sob as lentes do coletivo, do interesse público. 12 Relatório Mundial sobre a Deficiência, 2012, p. 4. 22 Diante disso, ao tratar da inclusão sob a ótica do modelo social, ganha destaque a noção da supremacia do interesse público, ou seja, o interesse do coletivo social sobre o interesse privado ou de cada indivíduo. Como ensina Celso Antonio Bandeira de Mello13, “[é] que na verdade, o interesse público, o interesse do todo, do conjunto social, nada mais é que a dimensão pública dos interesses individuais, ou seja, dos interesses de cada indivíduo enquanto partícipe da Sociedade [...]”. Assim, conclui-se que “[...] um indivíduo pode ter, e provavelmente terá, pessoal – e máximo – interesse em não ser desapropriado, mas não pode, individualmente, ter interesse em que não haja o instituto da desapropriação, conquanto este, eventualmente, venha a ser utilizado em seu desfavor”. Disso decorre que embates envolvendo direitos das pessoas com deficiência devem ser trabalhados sob uma nova perspectiva. Questões antes interpretadas à luz do direito civil e do consumidor passam a assumir um viés constitucional, que tem como pano de fundo a realização de direitos fundamentais. As lentes do interesse público devem recair sobre todos esses feitos, mesmo quando tenham como ponto de partida demandas individuais que, num primeiro momento, gerariam efeitos apenas entre as partes diretamente envolvidas. Nessa nova etapa de materialização dos direitos das pessoas com deficiência, o Ministério Público, a quem compete “manifestar-se em qualquer fase dos processos, acolhendo solicitação do juiz, da parte ou por sua iniciativa, quando entender existente interesse em causa que justifique a intervenção”, (nos termos do 13 BANDEIRA DE MELLO, 2007, p. 60. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Esse entendimento encontra respaldo nessa própria transição do modelo médico para o modelo social, já que as barreiras que potencializam a percepção da deficiência são um problema a ser enfrentado por toda a sociedade, uma vez que são impostas por essa mesma sociedade. Trata-se, portanto, de matéria de ordem pública. 23 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA art. 26, VIII14 , da Lei n. 8.625, de 12 de fevereiro de 1993), certamente tem um papel fundamental. 4.2 A primazia da dignidade no processo O novo Código de Processo Civil dispõe, em seu art. 1º, que o processo civil será interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidas na Constituição e, no art. 8º, que, ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana. Portanto, no âmbito de processos que versem sobre direitos das pessoas com deficiência, a dignidade é um valor que deve ser prevalente e entendido como elemento intrínseco, mas também como um valor comunitário e como ferramenta para a autonomia. Como bem ressalta o ministro Luís Roberto Barroso em trecho da obra Aqui, lá e em todo lugar: a dignidade humana no direito contemporâneo e no discurso transnacional, citado na decisão do RE n. 567.985/MT15, a dignidade como “valor comunitário” atua “[…] não apenas como proteção da esfera individual, mas como limitador do exercício de direitos individuais, resguardando-o coletivamente”, com amparo em “[…] compreensões morais coletivas e nas práticas arraigadas no meio social”, nas quais “[…] está incluída a ideia maior de solidariedade social, alçada à condição de princípio pela Constituição”16. Como valor intrínseco, “[…] a dignidade requer o reconhecimento de que cada indivíduo é um fim em si mesmo, nos termos do amplamente divulgado imperativo categórico kantiano [...]” e como autonomia, “[…] a dignidade protege o conjunto de decisões e atitu14 Disponível em: . Acesso em: 2 ago. 2017. 15 RE n. 567.985/MT. Data: 18.4.2013. Relator: ministro Marco Aurélio. Disponível em: . Acesso em: 3 ago. 2017. 16 RE 567.985/MT. Acesso em: 3 ago. 2017. 24 des que concernem especificamente à vida de um indivíduo”. Ainda nas palavras do ministro Luís Roberto Barroso, É por ter o valor intrínseco de cada pessoa como conteúdo essencial que a dignidade humana é, em primeiro lugar, um valor objetivo que não depende de qualquer evento ou experiência e que, portanto, não pode ser concedido ou perdido, mesmo diante do comportamento mais reprovável (p. 3). 4.3 A primazia da norma mais favorável ao indivíduo e a proibição de retrocesso Quando o cerne da questão envolve direitos fundamentais há duas outras importantes diretrizes hermenêuticas a serem seguidas, a saber, a primazia da norma mais favorável ao indivíduo e o princípio da proibição de retrocesso. Segundo o princípio da primazia da norma mais favorável, “[...] nenhuma norma de direitos humanos pode ser invocada para limitar, de qualquer modo, o exercício de qualquer direito ou liberdade já reconhecida por outra norma internacional ou nacional”. Diante disso, havendo dúvida acerca da norma aplicável ao caso concreto, deve-se utilizar “[…] a norma mais favorável ao indivíduo, quer seja tal norma de origem internacional ou nacional”17. A Convenção reconhece a relevância desse princípio (artigo 4º, item 4) ao dizer que nenhuma disposição mais favorável à realização 18 17 RAMOS, 2012, p. 89. 18 Decreto n. 6.949/2009, artigo 4º, item 4: “Nenhum dispositivo da presente Convenção afetará quaisquer disposições mais propícias à realização dos direitos das pessoas com deficiência, as quais possam estar contidas na legislação do Estado Parte ou no direito internacional em MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Diante do exposto, é certo que a primazia da dignidade humana nessas três dimensões, ou seja, como autonomia, valor comunitário e valor intrínseco, deve permear o julgamento de qualquer processo que envolva direito das pessoas com deficiência. 25 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA dos direitos das pessoas com deficiência, constante da legislação nacional ou internacional vigente, pode ser afetada pelo seu conteúdo, e ao ressaltar que direitos e garantias fundamentais já assegurados, conforme leis, convenções, regulamentos ou costumes, não poderão ser restringidos ou derrogados sob o argumento de que a Convenção não os reconhece ou os reconhece em menor grau. Ao lado da primazia da norma mais favorável, destaca-se também o princípio da proibição de retrocesso. Como ensina André de Carvalho Ramos, a partir do reconhecimento da prevalência da norma mais favorável e da impossibilidade de redução das conquistas alcançadas no plano internacional, cristalizou-se a chamada “[...] proibição de retrocesso ou efeito cliquet, pelo qual é vedado aos Estados que diminuam ou amesquinhem a proteção conferida aos direitos humanos”. Tanto a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência como a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência ampliaram e deram concretude à proteção dos direitos dessas pessoas no Brasil, ou seja, promoveram avanços e conquistas que não podem ser objeto de retrocesso. Portanto, discussões envolvendo direitos assegurados às pessoas com deficiência, seja no âmbito público ou privado, devem ter como diretrizes o conteúdo normativo da Convenção, por se tratar de norma com status constitucional, e da Lei Brasileira de Inclusão, sob pena de caracterizar retrocesso e violação do princípio da primazia da norma mais favorável. vigor para esse Estado. Não haverá nenhuma restrição ou derrogação de qualquer dos direitos humanos e liberdades fundamentais reconhecidos ou vigentes em qualquer Estado Parte da presente Convenção, em conformidade com leis, convenções, regulamentos ou costumes, sob a alegação de que a presente Convenção não reconhece tais direitos e liberdades ou que os reconhece em menor grau”. Disponível em: . Acesso em: 6 dez. 2017. 26 4.4 O respeito ao Princípio da Proibição da Proteção Insuficiente Por sua vez, no que se refere às obrigações negativas – ou de não fazer –, impõe-se aos Estados-Partes o dever de “(d) abster-se de participar em qualquer ato ou prática incompatível com a presente Convenção e assegurar que as autoridades públicas e instituições atuem em conformidade com a presente Convenção; [...]”. Decorre da própria Convenção o dever imposto ao Estado brasileiro no sentido de mobilizar o Poder Legislativo com vistas à adoção de legislação voltada a dar concretude ao seu conteúdo, a exemplo da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência. Após olhar para o conteúdo da Convenção e para os compromissos assumidos pelo Estado brasileiro, resta claro que os preceitos contidos na legislação infraconstitucional devem estar sempre em consonância com o seu conteúdo – o que significa, em última análise, estar em consonância com o próprio conteúdo normativo da Constituição. Toda legislação infraconstitucional vigente ou que venha a ser criada, assim como sua interpretação, deve dialogar com as obrigações impostas ao Estado brasileiro no sentido de adotar medidas aptas a eliminar a discriminação baseada na deficiência por qualquer ente público ou privado e de se abster de participar de qualquer ato incompatível com a Convenção, assegurando desta forma sua conformidade com o seu conteúdo. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Ao tratar das obrigações gerais imputadas aos Estados-Partes, a Convenção reconhece expressamente o seu dever (art. 4º) de agir positivamente no sentido de: “(b) adotar todas as medidas necessárias, inclusive legislativas, para modificar ou revogar leis, regulamentos, costumes e práticas vigentes, que constituírem discriminação contra pessoas com deficiência”; e “(e) tomar todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação baseada em deficiência, por parte de qualquer pessoa, organização ou empresa privada”. 27 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Esse mesmo cuidado deve existir no que se refere à atuação de órgãos do Poder Executivo. O Estado brasileiro deve, portanto, colocar em prática o seu dever de adotar medidas e ações administrativas que efetivamente concorram positivamente para a garantia dos direitos das pessoas com deficiência. Como bem esclarece o acórdão que julgou o RE n. 567.985/MT, relatado pelo ministro Marco Aurélio, conforme o princípio da proibição da concretização deficitária, o Estado tem o dever de editar leis e de adotar medidas administrativas efetivas em relação à proteção de direitos fundamentais, constituindo-se, portanto, como “parâmetro de aferição de constitucionalidade da intermediação legislativa de direitos fundamentais”19. Para Schlink, “a conceituação de uma conduta estatal como insuficiente (untermässig), porque 'ela não se revela suficiente para uma proteção adequada e eficaz', nada mais é, do ponto de vista metodológico, do que considerar referida conduta como desproporcional em sentido estrito (unverhältnismässig im engeren Sinn)”20. O princípio da proibição de proteção insuficiente, embora ainda não muito utilizado nesse campo, nos parece interessante elemento que pode guarnecer a defesa dos direitos das pessoas com deficiência, já que serve como parâmetro para balizar a (in)constitucionalidade de atos legislativos e a pautar a implementação dos direitos das pessoas com deficiência nesse momento pós-Convenção. 4.5 Igualdade à luz da diversidade As pessoas são diferentes entre si e têm especificidades (independentemente de serem ou não pessoas com deficiência) que precisam ser respeitadas. Falar em direitos das pessoas com deficiência 19 RE n. 567.985/MT. Data: 18.4.2013. Relator: ministro Marco Aurélio. Disponível em: . 20 SCHLINK, 2001, apud MENDES et al., 2008, p. 333. 28 implica reconhecer que existem diferenças e que estas devem ser levadas em consideração no jogo da igualdade – pois a diversidade é própria da natureza humana. Ao nos debruçarmos sobre os documentos internacionais de proteção dos direitos humanos e sua evolução histórica é fácil perceber o movimento de especificação e o gradativo reconhecimento das diferenças aplicado ao conteúdo protetivo dessas normas. pensar em igualdade à luz da diversidade humana exige (re)conhecer a existência de indivíduos, de coletivos e suas interrelações, tendo em vista as especificidades de cada um. [...] exige empreender esforços para que todas as pessoas sejam respeitadas em suas peculiaridades e tenham acesso a meios que lhes permitam o pleno exercício de seus direitos fundamentais. (REICHER, 2011, p. 173). Como a Convenção reafirma direitos fundamentais e a diversidade é um elemento próprio da natureza humana e que interfere na possibilidade de gozo e fruição desses direitos, não há como se falar em inclusão e em concretização de direitos fundamentais à luz da igualdade sem que se reconheçam a diversidade e o respeito às diferenças. Ao tratar da diversidade na perspectiva do direito à educação inclusiva, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos reconheceu que a inclusão é um processo que demanda a eliminação de barreiras que impedem a participação e a mudança de cultura, política e práticas das escolas, a fim de acolher as necessidades de todos os alunos, com ou sem deficiência. Destacou ainda o Alto Comissariado no mesmo estudo temático: [...] Alguns valores-chave da educação inclusiva são igualdade, participação, não-discriminação, celebração da diversidade e a partilha de boas práticas. A abordagem inclusiva valoriza os alunos como MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA À medida que as especificidades são reconhecidas e historicamente (re)afirmadas, a igualdade de todos (perante e na lei) passa a ser compreendida à luz da diversidade. Nesse sentido, 29 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA pessoas, respeita a sua dignidade inerente e reconhece as suas necessidades e sua capacidade de fazer uma contribuição para a sociedade. Também identifica a diferença como uma oportunidade de aprendizagem e reconhece a relação entre a escola e a comunidade em geral como base para a criação de sociedades inclusivas com um senso de pertencimento (não apenas para alunos, mas para professores e pais também)21. As mesmas considerações trazidas pelo Alto Comissariado em relação ao direito à educação inclusiva se estendem com facilidade a todos os demais direitos reafirmados pela Convenção. Nesse contexto, diversidade, participação e não discriminação são conceitos indispensáveis à busca da igualdade e à plena realização dos direitos das pessoas com deficiência. 5 Perspectivas e desafios a enfrentar A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência possibilitou a incorporação ao ordenamento jurídico brasileiro de um novo paradigma internacional de direitos humanos, com vistas à reafirmação dos direitos das pessoas com deficiência. Hoje, quase uma década depois de sua ratificação, essa nova diretriz constitucional precisa ser colocada em prática. A deficiência, hoje reconhecida como um elemento da diversidade humana, passa a ser vista como um tema de responsabilidade de toda a sociedade e não apenas do indivíduo. A luta pela realização dos direitos das pessoas com deficiência torna-se, portanto e cada vez mais, tema de ordem pública. Nesse cenário, identificamos desafios a serem enfrentados e possíveis iniciativas que, em nosso entendimento, ao serem endereçados pelos operadores do Direito, pelas próprias pessoas com defi- 21 OHCRH/UN-A/HRC/25/29, 2013, p. 5. 30 ciência, suas famílias e organizações, têm o poder de contribuir para avanços na seara do direito das pessoas com deficiência. Vejamos. O status constitucional conferido à Convenção e o fato de o Brasil já ter ratificado uma série de outros tratados internacionais de direitos humanos nos chamam, enquanto operadores do Direito, a resgatar esse conteúdo e a utilizá-lo com vistas a fortalecer a defesa dos direitos das pessoas com deficiência. Organizações da sociedade civil que militam na área podem e devem se valer do seu conteúdo para provocar mudanças no plano interno. Em suma, precisamos fomentar esse diálogo além-fronteiras. Um segundo aspecto importante diz respeito à necessidade de capacitação e sensibilização dos principais atores envolvidos no processo de materialização desses direitos. Para além de trabalhar esses direitos junto ao próprio público beneficiário e suas famílias, é primordial que uma frente de capacitação da magistratura, do Ministério Público, das Defensorias e do Poder Judiciário em geral seja estruturada. Para esse fim, conforme já tivemos a oportunidade de destacar, o Conselho Nacional de Justiça sem dúvida se mostra um parceiro importante. Por fim, para que se possa continuar a discutir e avançar em termos de direitos das pessoas com deficiência, é imprescindível trazer essa temática para os meios acadêmicos. O estudo dos direitos das pessoas com deficiência precisa ser incorporado não apenas aos cursos de Direito, mas em cursos de outras áreas como a Arquitetura e a Engenharia, a Psicologia, a Comunicação Social, sob pena de as MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Um primeiro desafio que se coloca diz respeito à provocação de uma maior interação entre o Direito Constitucional e o Direito Internacional dos Direitos Humanos. No plano interno, ainda não se verifica uma tradição consolidada de buscar na legislação e na jurisprudência internacional de direitos humanos base para arguições e defesa de interesses na seara dos direitos humanos. 31 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA pessoas com deficiência continuarem invisibilizadas nas mais diversas áreas da vida. É importante investir esforços para formar profissionais sensíveis à causa e que incorporem a realidade das pessoas com deficiência em seu dia a dia. Nesse sentido é que destacamos a necessidade de adoção de medidas que visem à inserção dessa temática em cursos de graduação e pós-graduação. Como dissemos de início, o presente artigo não tinha como objetivo esgotar o tema, mas, sim, provocar algumas reflexões a respeito dos direitos das pessoas com deficiência e sobre como assegurar que elas possam exercer esses direitos. A garantia de acesso à justiça, o uso do processo como ferramenta para dar sentido aos direitos reafirmados pela Convenção e a ampliação do diálogo com fontes internacionais são ferramentas importantes nessa luta. A capacitação da magistratura, do Ministério Público, das Defensorias e do Poder Judiciário em geral, bem como a difusão da temática dos direitos das pessoas com deficiência nos meios acadêmicos, também pode contribuir para que os direitos reafirmados sejam colocados em prática. Reconhecer às pessoas com deficiência a possibilidade de serem titulares e de exercerem com autonomia e liberdade os seus direitos é sem dúvida um desafio que está posto. Nesse cenário de mudança de paradigmas, inovação e vanguarda, questionamentos, dúvidas e formas de resistência certamente surgirão como resultado natural de todo e qualquer processo de mudança cultural. Outrossim, não podemos permitir que sirvam de justificativa para impedir que os direitos reafirmados pela Convenção sejam relegados apenas à letra da lei. Esse é o nosso maior desafio neste momento pós-Convenção. 32 Referências BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de direito administrativo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. DHANDA, A. Legal capacity in the Disability Rights Convention: stranglehold of the past or lodestar for the future? Syracuse Journal of International Law and Commerce, Nova York, v. 34, n. 2, Spring 2007. MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, Instituto Brasiliense de Direito Público, 2008. MINKOWITZ, T. The United Nations Convention on the Rights of Persons with Disabilities and the right to be free from nonconsensual psychiatric interventions. Syracuse Journal of International Law and Commerce, New York, v. 34, n. 2, Spring 2007. Disponível em: . OHCRH/UN-A/HRC/25/29–December 18th, 2013. Thematic study on the right of persons with disabilities to education. Tradução livre dos autores. Relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. A/HRC/25/29. Estudo temático sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Dez. 2013. Disponível em: . Acesso em: 10 ago. 2017. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA LOPES, Lais V. C. de Figueirêdo; GOLFIERI, Marcia; REICHER, Stella Camlot; RIBAS, Luciana Marin. Direitos das pessoas com deficiência. In: MAIA, Shirley Rodrigues et al. (Org.). Guia de promoção dos direitos para pessoas com surdocegueira e famílias. São Paulo: AHIMSA/SEDH/CORDE, 2008, v. I. p. 67-133. 33 RAMOS, André de Carvalho. Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. REICHER, Stella C. Diversidade humana e assimetrias: uma releitura do contrato social sob a ótica das capacidades. Revista SUR, v. 8, n. 14, jun. 2011. Disponível em: . Acesso em: 10 ago. 2017. Relatório Mundial sobre a Deficiência. World Health Organization, The World Bank. Tradução Lexicus Serviços Lingüísticos. São Paulo: SEDPcD, 2012. Disponível em: . A efetividade (ou a falta de efetividade) da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU Luiz Alberto David Araujo1 Maurício Maia 2 Nossa Constituição permite que o rol de direitos e garantias fundamentais trazido em seu texto seja formalmente ampliado mediante a incorporação no ordenamento jurídico brasileiro, com equivalência de emenda constitucional, de tratados e convenções internacionais de direitos humanos, desde que observada a forma prescrita no art. 5º, § 3º, da Lei Maior. Até hoje, porém, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas (ONU) e seu Protocolo Facultativo foram os únicos instrumentos internacionais aprovados nesse formato, de maneira a lhes garantir equivalência de emendas constitucionais. Considerando que, de acordo com os dados do último censo divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de pessoas com deficiência no Brasil equivale a quase um 1 Procurador Regional da República aposentado. Professor Titular de Direito Constitucional na Faculdade de Direito da PUC-SP. Mestre, Doutor e Livre Docente em Direito Constitucional. 2 Procurador Federal. Mestre e Doutorando em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Introdução 35 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA quarto da população nacional 3, ou seja, um grupo de quase cinquenta milhões de pessoas, de fato devemos entender que uma convenção internacional que trate dos direitos dessa parcela tão significativa de nossa população deverá ter um tratamento diferenciado por nosso Direito, justificando-se a adoção do procedimento previsto no art. 5º, § 3º, da Constituição para sua incorporação ao ordenamento jurídico brasileiro. No entanto, notamos que, apesar de tratar de direitos fundamentais de parcela tão considerável da população brasileira, bem como a despeito de ter sido incorporada ao Direito brasileiro de forma até agora única, com equivalência de emenda constitucional e, pois, de estar no topo do sistema jurídico pátrio, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU tem pouca efetividade, sendo desconhecida de grande parte da população e dos operadores do Direito, bem como quase ignorada pelo Estado no estabelecimento de suas políticas públicas, ou mesmo na sua atuação como Estado-Juiz. O cenário de baixa efetividade da Convenção da ONU, suas possíveis razões e a possibilidade de uma mudança desse cenário constituem o objeto deste estudo. 1 A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU como parte integrante da Constituição brasileira Desde 2008, a Constituição brasileira conta com um detalhado sistema de proteção às pessoas com deficiência. Isso decorre da internalização, com equivalência de emenda à Constituição, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU e 3 Dados do Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Disponível em: . Acesso em: out. 2017. 36 de seu Protocolo Facultativo, nos termos do previsto no art. 5º, § 3º, da Lei Maior. Tal Convenção foi incorporada ao Direito brasileiro de maneira a integrar não apenas materialmente, mas também formalmente, o texto da Constituição Federal, encontrando-se, assim, no ápice do ordenamento jurídico constitucional de nosso país, sendo de rigor que toda a legislação infraconstitucional deva ser produzida de acordo com seus ditames, revogada, por evidente, a legislação anterior que contrarie os seus termos. Vejamos. O art. 5º da Constituição Federal, ao estabelecer um rol de direitos fundamentais, foi expresso ao dispor, em seu § 2º, que o rol ali contido não é exaustivo, podendo ser acrescido por outros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Lei Maior, bem como de tratados internacionais de que o Brasil seja parte. Em razão dessa disposição contida no art. 5º, § 2º, da Constituição, seguiu-se uma profunda discussão doutrinária e jurisprudencial acerca da possibilidade de se considerarem os tratados internacionais de direitos humanos celebrados pelo Brasil como normas integrantes da Constituição Federal, ao menos em seu aspecto material. Em resumo, passou-se a discutir se os direitos reconhecidos em tratados internacionais de direitos humanos celebrados pelo Brasil teriam ou não natureza de normas constitucionais. Com vistas à solução dessa discussão, no bojo da Emenda Constitucional n. 45, de 8 de dezembro de 2004, conhecida como a emenda da reforma do Poder Judiciário, o Constituinte Reformador acresceu ao art. 5º da Constituição o seu § 3º, dispondo que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos aprovados na forma ali prevista, de modo muito semelhante à forma pre- MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA 1.1 A Emenda Constitucional n. 45/2004 37 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA vista para a aprovação de emendas à Constituição, consistente na aprovação em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos seus respectivos membros, seriam equivalentes às emendas constitucionais4. Foi, assim, instituída uma cláusula de abertura formal em nossa Constituição, permitindo que os tratados e convenções internacionais de direitos humanos fossem considerados formalmente integrantes da Constituição, equivalentes às emendas constitucionais, desde que observassem a forma de aprovação ali prevista5. Dessa forma, desde a promulgação da Emenda Constitucional n. 45, em 8 de dezembro de 2004, os tratados e convenções internacionais de direitos humanos celebrados pelo Brasil podem ser internalizados de duas diferentes formas, quais sejam, a forma regular, mediante a aprovação simples de seu texto pelo Congresso Nacional, bem como a forma prevista no art. 5º, § 3º, que exige a votação pelas duas Casas do Congresso Nacional, em dois turnos, com a aprovação de três quintos dos seus respectivos membros. Segundo jurisprudência do Supremo Tribunal Federal6, os tratados e convenções internacionais que versem sobre direitos humanos e que forem aprovados sem a observância do procedimento disposto no art. 5º, § 3º, da Constituição não terão natureza constitucional, mas terão um caráter de supralegalidade, é dizer, as leis deverão ser editadas observando seu conteúdo que, no entanto, não tem o condão de alterar o disposto na Constituição, devendo-lhe observância. 4 A incorporação, por maioria simples do Parlamento, defendida antes da mencionada emenda, causava uma certa perplexidade da doutrina, já que seria uma forma simplificada de mudança da Constituição. 5 Essa abertura não altera e nem diminui a já existente, constante do § 2º do art. 5º: que outras normas decorrentes do sistema e mesmo tratados internacionais façam parte dos direitos fundamentais. No entanto, com o grau de hierarquia especial, apenas os aprovados na forma do art. 5º, § 3º. 6 Supremo Tribunal Federal, Tribunal Pleno, Recurso Extraordinário n. 466.343/SP, Relator Ministro Cezar Peluso, julgado em 3.12.2008, publicado no DJe 104, de 5 jun. 2009. 38 Assim, podemos entender que, conforme sua forma de internalização, desde a Emenda Constitucional n. 45/2004, os tratados e convenções internacionais de direitos humanos têm naturezas normativas diversas, podendo ser considerados como normas supralegais (hierarquicamente inferiores às normas constitucionais, mas superiores às leis), ou como normas equivalentes às emendas constitucionais, no ápice de nosso ordenamento constitucional, desde que tenham observado o procedimento previsto no art. 5º, § 3º, da Lei Maior. A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU e seu Protocolo Facultativo foram, até hoje, os únicos instrumentos internacionais incorporados ao Direito brasileiro na forma prevista pelo art. 5º, § 3º, da Constituição Federal. De fato, a referida Convenção foi internalizada mediante o Decreto Legislativo n. 186, de 9 de julho de 2008, que foi votado em dois turnos e aprovado por três quintos dos integrantes de cada uma das Casas do Congresso Nacional. Houve, ainda, de parte do Poder Executivo, a promulgação da Convenção por intermédio do Decreto n. 6.949, de 25 de agosto de 20097. 7 Dizemos que a Constituição foi alterada em 2008, data do Decreto Legislativo editado pelo Congresso Nacional, aprovado na forma do art. 5º, § 3º, da Constituição Federal, tendo em vista que entendemos haver séria dúvida acerca da necessidade do decreto do Poder Executivo promulgando um tratado internacional aprovado nessa forma especial. Devemos notar que o art. 5º, § 3º, da Constituição Federal prevê uma forma de aprovação dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos exatamente igual à forma de aprovação no Congresso Nacional das emendas constitucionais, que dispensa qualquer manifestação do Poder Executivo, bastando para sua vigência a promulgação pelo Poder Legislativo, investido no Poder Constituinte Reformador, bem como sua publicação. Se para as emendas constitucionais não há necessidade de promulgação pelo Poder Executivo, não seria de se exigir tal promulgação em instrumentos aprovados pelo Congresso Nacional da mesma forma, e que têm força normativa equivalente à de emenda à Constituição. Ademais, MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA 1.2 A internalização da Convenção da ONU sobre os Diretos da Pessoa com Deficiência na forma prevista pelo art. 5º, § 3º, da Constituição e suas consequências para o ordenamento jurídico 39 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Dessa forma, temos que a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU tem, em nosso ordenamento jurídico, equivalência de emenda à Constituição, e, assim, está no seu ápice. Como consequência dessa forma de internalização, temos que, tal qual ocorre com qualquer norma constitucional, a legislação infraconstitucional lhe deve observância, não podendo contrariá-la. Assim, todo o direito anterior à Convenção que contrarie suas disposições deve ser tido por revogado, e toda a legislação posterior deve ser consentânea com seus preceitos, sob pena de padecer de vício de inconstitucionalidade e, dessa forma, ser inválida. A Convenção traz, por exemplo, como principal alteração nas diretrizes de proteção ao grupo vulnerável, um novo conceito acerca de quem pode ser considerado como pessoa com deficiência. De acordo com a Convenção, não mais se pode tomar em consideração apenas um critério médico para identificar os integrantes desse grupo vulnerável, tendo o novo conceito um caráter social. Segundo o artigo 1º da Convenção, são pessoas com deficiência aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, impedimentos esses que, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições para com as demais pessoas. Nota-se, claramente, que na definição de pessoas com deficiência trazida pela Convenção da ONU, foi adotado um conceito social de pessoas com deficiência, sendo o critério médico (que a Convenção chama de impedimento), único até então utilizado pelo Direito brasileiro, apenas um dos elementos da definição que permite identificar os integrantes do grupo vulnerável. Para que alguém seja considerado como pessoa com deficiência, deverá haver a interação questionamos se poderia o presidente da República deixar de promulgar um tratado ou convenção internacional aprovado por maioria qualificada do Congresso Nacional, votado em dois turnos. Entendemos, assim, não haver necessidade de que os tratados ou convenções internacionais aprovados na forma do art. 5º, § 3º, da Constituição sejam promulgados por decreto do Poder Executivo. 40 Tal definição social de pessoa com deficiência trazida pela Convenção, outrossim, não é consentânea com a definição que o Direito brasileiro adotava até então, de caráter exclusivamente médico, que consistia unicamente no enquadramento ou não da pessoa no rol de situações previsto no art. 4º do Decreto n. 3.298/1999 (posteriormente alterado pelo Decreto n. 5.296/2004). O Direito brasileiro, então, utilizava-se de uma definição estritamente médica, com um rol fechado de situações a permitir a inclusão de alguém no grupo das pessoas com deficiência. A Convenção da ONU, por sua vez, trouxe uma definição social, aberta, que exige uma avaliação mais ampla para a identificação dos integrantes do grupo vulnerável. Ora, face ao caráter constitucional da nova definição, já que a Convenção da ONU foi introduzida em nosso ordenamento jurídico na forma prevista no art. 5º, § 3º, da Constituição Federal, não mais poderia ser utilizada a definição prevista no Decreto n. 3.298/1999, que foi posteriormente alterado pelo Decreto n. 5.296/2004. Se há uma norma de hierarquia constitucional apontando que o grupo das pessoas com deficiência deverá ser identificado de acordo com um critério social e aberto, não se pode admitir a utilização de uma norma que disponha acerca de um critério exclusivamente médico e com um rol fechado de situações. Temos, assim, que a introdução de uma nova definição de pessoas com deficiência pela Convenção da ONU, MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA do impedimento com as diversas barreiras, das mais diversas naturezas (sociais, ambientais, arquitetônicas, por exemplo), de modo que o resultado dessa interação seja uma desigualdade de oportunidades de participação plena e efetiva na sociedade em desfavor das pessoas com deficiência. Segundo tal conceito, a deficiência não está na pessoa, que tem o impedimento de longo prazo, mas na sociedade, que apresenta diversas barreiras que impedem o efetivo acolhimento dessa pessoa em igualdade de oportunidades para com as demais pessoas. Assim, agora, além da avaliação médica, deverá ser feita uma avaliação social, sem a qual não se poderá considerar alguém como pessoa com deficiência. 41 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA face a sua equivalência constitucional, alterou substancialmente a proteção desse grupo vulnerável, já que importou na alteração da composição do grupo das pessoas com deficiência e, dessa forma, nenhuma norma do Direito brasileiro que destoe de tal definição poderá ser validamente utilizada. Devemos notar, ainda, que a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência versa sobre direitos e garantias individuais dos integrantes desse grupo vulnerável e, assim, tendo sido incorporada formalmente à Constituição Federal em virtude de sua aprovação na forma prevista em seu art. 5º, § 3º, passou a integrar as chamadas cláusulas pétreas de nossa Lei Maior, não se admitindo deliberação pelo Congresso Nacional de proposta que tenda à sua abolição, conforme podemos extrair do art. 60, § 4º, IV, da Constituição da República. 2 A falta de efetividade da Convenção Como acabamos de demonstrar, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU tem, em nosso ordenamento jurídico, equivalência de emenda à Constituição, já que houve sua aprovação na forma prevista no art. 5º, § 3º, da Lei Maior. Podemos dizer assim que a referida Convenção é parte formalmente integrante de nossa Constituição Federal. Entretanto, notamos que ainda não há a percepção generalizada dessa situação, ou seja, não está, ainda, difundido na comunidade jurídica que a Convenção da ONU integra formalmente nossa Constituição, é parte integrante dela assim como qualquer de suas emendas. A Convenção da ONU ainda não tem a desejada efetividade como parte integrante formal de nossa Constituição. Essa falta de percepção da Convenção como parte integrante da Constituição pode ser notada em diversas situações, que indicam sua pouca efetividade. Vejamos. 42 As editoras simplesmente desconsideram a existência da Convenção ao publicarem o texto impresso da Constituição, limitando-se à publicação das emendas constitucionais. Os editores de tais obras não se deram conta de que, ao assim procederem, publicam de forma incompleta o arcabouço constitucional brasileiro, deixando de fora de suas edições normas que possuem exatamente a mesma hierarquia que as demais normas constitucionais e às quais todo o direito infraconstitucional deve obediência. O mais intrigante é que não há qualquer justificativa para tal conduta, não havendo sequer uma reclamação dos operadores do direito (ou mesmo dos consumidores, já que se está adquirindo uma obra notadamente incompleta, sem qualquer alerta) para que tal situação seja corrigida. Há quase uma década as edições impressas da Constituição Federal vêm sendo publicadas pelas principais editoras nacionais de forma incompleta, e não há qualquer reclamação ou explicação para tal fato. Isso demonstra, em boa medida, a falta de efetividade da Convenção, sendo um claro sinal de que não há a percepção generalizada de que ela faz parte formalmente de nossa Constituição. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Embora no sítio oficial da Presidência da República na Internet, ao acessarmos a Constituição da República, seja possível notar que há a possibilidade de acesso ao conteúdo da Convenção e seu Protocolo Facultativo mediante o atalho “Atos decorrentes do disposto no § 3º do art. 5º”, da mesma forma como é possível o acesso às emendas constitucionais e às emendas constitucionais de revisão, o que também é possível no sítio eletrônico do Senado Federal (“Atos internacionais equivalentes às Emendas Constitucionais”) e na edição publicada pela Câmara dos Deputados, notamos que, na maioria, senão na totalidade, das edições impressas da Constituição publicadas pelas principais editoras nacionais, não há qualquer referência ao texto da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, embora constem todas as emendas à Constituição e até mesmo as súmulas vinculantes dos Tribunais Superiores. 43 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Outro sinal de que a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU carece de efetividade é a ausência de alteração das passagens da Constituição Federal com ela incompatíveis, a ser realizada no corpo do texto da Constituição, como ocorre no caso das emendas, notadamente no que toca à nomenclatura do grupo vulnerável. A Convenção adota a nomenclatura “pessoas com deficiência” para se referir ao grupo vulnerável; já a Constituição utiliza-se da expressão “portadores de deficiência” (vide, por exemplo: art. 7º, XXXI; art. 37, VIII; art. 40, § 4º, I; art. 201, 1º; art. 203, IV e V; art. 208, III; art. 227, § 1º, II; art. 227, § 2º; art. 244). À época da promulgação do texto constitucional, possivelmente esta, “portadores de deficiência”, era a nomenclatura mais utilizada e mais avançada, consentânea, à época, com a realidade tratada. No entanto, tal expressão é desatualizada e não mais condiz com o atual tratamento deferido ao grupo vulnerável, que enfatiza estar-se tratando de pessoas, denotando um caráter social da questão, apontando para a deficiência como algo pertinente à sociedade e não ao indivíduo, e, dessa forma, prefere utilizar a expressão “pessoas com deficiência”. Havendo nova norma, de hierarquia constitucional, que adota novo conceito e nova nomenclatura, tão significativa, seria de rigor a revisão dos dispositivos constitucionais que contam com a expressão desatualizada para referência ao grupo vulnerável, inclusive como forma de reforçar a Convenção como parte integrante da Constituição, dando congruência e uniformidade à Lei Maior. Notamos, assim, que não há uma consciência da comunidade jurídica de que a Convenção da ONU é parte integrante formal de nossa Constituição, o que denota sua baixa efetividade, implicando, inclusive, ações do Poder Público que desconsideram sua existência e sua hierarquia no ordenamento jurídico pátrio, como passaremos a expor no próximo tópico. 44 3 O Estado e a efetividade da Convenção da ONU A falta de efetividade da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU é notada principalmente na atuação do Poder Público, especialmente no âmbito do Poder Judiciário. 3.1 A ausência de utilização do novo conceito de pessoas com deficiência É notadamente na ausência de utilização adequada do novo conceito de pessoas com deficiência trazido pela Convenção da ONU que podemos verificar como tal Convenção não vem conseguindo impor sua normatividade em nosso ordenamento jurídico, deixando o Estado costumeiramente de observá-la. Vejamos. 3.1.1 O estabelecimento de políticas públicas adequadas ao novo conceito O novo conceito de pessoas com deficiência, de caráter social e aberto, como anteriormente apresentado, é uma das grandes inovações trazidas pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU ao Direito brasileiro e influencia todo o sistema protetivo estabelecido para esse grupo vulnerável. De fato, a adoção do novo conceito, que exige a interação do impedimento de longo prazo (aspecto médico) com as barreiras exis- MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Em havendo um novo regramento constitucional acerca da proteção às pessoas com deficiência, de rigor que o Poder Público faça valer a superior hierarquia que essas normas têm em relação à legislação infraconstitucional, adotando suas disposições na interpretação e aplicação que faz do ordenamento jurídico. No entanto, não é o que ocorre, como passamos a demonstrar. 45 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA tentes, de forma que o resultado de tal interação implique a redução das oportunidades de participação plena e efetiva na sociedade em igualdade para com as demais pessoas, trouxe a abertura do conceito de pessoas com deficiência, já que não mais se pode fixar um rol exaustivo de situações em que alguém será ou não considerado como pessoa com deficiência. O Poder Público, assim, à vista do novo conceito, não pode limitar suas políticas ao estabelecimento de ações que objetivem apenas o tratamento de saúde das pessoas com deficiência (o que, ademais, é obrigação do Estado para com todas as pessoas, com ou sem deficiência, nos termos do art. 196 da Constituição), ou apenas o estabelecimento de políticas assistencialistas (que também devem ser oferecidas a todos aqueles, com ou sem deficiência, que necessitarem, nos termos do art. 203 da Constituição), mas deve concentrar seus esforços principalmente na eliminação das barreiras, com o objetivo de adequadamente incluir as pessoas com deficiência e lhes oferecer as mesmas oportunidades que são gozadas pelas demais pessoas, em igualdade de condições. Infelizmente, o estabelecimento de tais políticas de inclusão mediante a eliminação de barreiras não tem sido implementado da forma esperada. 3.1.2 O Poder Judiciário e a falta de efetividade da Convenção No âmbito do Poder Judiciário, a pequena efetividade da Convenção também se faz notar, especialmente no que toca à utilização do novo conceito de pessoas com deficiência nas decisões judiciais. São raras as decisões que demonstram proximidade com o novo sistema de proteção ao grupo vulnerável instituído pela Convenção, havendo grande insistência na utilização do regramento anterior, principalmente no que diz respeito ao novo conceito de pessoas com deficiência, do qual decorre a nova definição que, como vimos, tem equivalência constitucional e é comumente desconsiderada pelos tribunais pátrios. 46 Em abril de 2009, já com a Convenção da ONU aprovada pelo Congresso Nacional nos termos do art. 5º, § 3º, da Constituição Federal11, como acima anotado, foi editada a Súmula n. 377 do Superior Tribunal de Justiça, que dispõe que pessoas com visão monocular serão sempre consideradas pessoas com deficiência para fins de vagas reservadas em concursos públicos, desconsiderando o conceito social de pessoas com deficiência e considerando o critério exclusivamente médico para inclusão no grupo vulnerável, já que não se pode dizer, 8 Nesse sentido: Superior Tribunal de Justiça, AgRg no REsp n. 1379284/SE (Primeira Turma, relator ministro Benedito Gonçalves, julgado em 18.11.2014, publicado no DJe em 26 nov. 2014), AgRg no RMS 43230/SP (Segunda Turma, relator ministro Herman Benjamin, julgado em 23.10.2014, publicado no DJe de 27 nov. 2014), AgRg no AREsp 510378/PE (Segunda Turma, relator ministro Humberto Martins, julgado em 5.8.2014, publicado no DJe de 13 ago. 2014), RMS 36081/PE (Primeira Seção, relator ministro Herman Benjamin, julgado em 28.5.2014, publicado no DJe de 23 set. 2014), MS 18.966/DF (Corte Especial, relator ministro Humberto Martins, julgado em 2.10.2013, publicado no DJe de 20 mar. 2014). 9 Ao menos nesse particular, a Súmula n. 552 do STJ já usou a terminologia adequada: pessoa com deficiência (apesar de ter se baseado nos critérios desenhados no decreto antigo). 10 Supremo Tribunal Federal, Ag no MS 29.910 (Segunda Turma, relator ministro Gilmar Mendes, julgado em 21.6.2011, publicado no DJe de 1º ago. 2011). 11 Não havia ocorrido, ainda, a promulgação da Convenção por Decreto do Chefe do Poder Executivo Federal, o que se deu em 25.8.2009 (Decreto n. 6.949/2009); outrossim, conforme entendimento que esposamos acima (nota n. 7), cremos que, no caso de instrumento internacional aprovado na forma do art. 5º, § 3º, da Constituição, tal promulgação não é necessária para a vigência da norma em nosso ordenamento jurídico. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Nota-se no Superior Tribunal de Justiça a utilização reiterada da definição de pessoas com deficiência trazida pelo Decreto n. 3.298/1999, com a redação que lhe foi dada pelo Decreto n. 5.296/2004, para a definição dos integrantes do grupo vulnerável. Tal entendimento é nítido quando o citado tribunal decide que alguém que tenha algum impedimento não constante do rol trazido pelo Decreto n. 3.298/1999, como no caso da surdez unilateral, não pode ser considerado como pessoa com deficiência8-9. O Supremo Tribunal Federal também expressou tal entendimento, o que demonstra a pouca proximidade do Poder Judiciário com o conceito trazido pela Convenção da ONU, bem como a pequena efetividade que até o momento tem tal texto normativo, que não é percebido como parte integrante de nossa Constituição10. 47 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA em vista do novo conceito, que tal ou qual impedimento sempre dará (ou nunca dará) azo ao enquadramento de alguém como pessoa com deficiência, sendo sempre necessária a verificação da presença da diminuição de oportunidade de participação plena e efetiva na sociedade, em igualdade com as demais pessoas, como resultado da interação do impedimento de longo prazo existente com as diversas barreiras. Uma súmula apontando que determinado impedimento (no caso a visão monocular) sempre dará azo ao reconhecimento de alguém como pessoa com deficiência é diametralmente oposta ao conceito adotado pela Convenção da ONU e, consequentemente, pela Constituição brasileira. Mesmo que se admita que a Convenção não havia ainda integrado de forma perfeita o sistema, a utilização da expressão “deficiente” nos remete ao texto da constituição anterior. Nem mesmo a expressão “pessoa portadora de deficiência” foi utilizada na Súmula. 3.2 O Estatuto da Pessoa com Deficiência Recentemente foi editada a Lei n. 13.146/2015, denominada de Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), cujo art. 1º, parágrafo único, expressamente dispõe que essa legislação tem por base a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU e seu Protocolo Facultativo, internalizados no Direito brasileiro em conformidade com o procedimento previsto no art. 5º, § 3º, da Constituição Federal. Primeiramente, devemos ressaltar que a demora de sete anos para a edição de lei que pretende minudenciar e possibilitar a melhor aplicação do disposto na Convenção da ONU já é outro indicativo acerca de como a questão da pessoa com deficiência vem sendo vista no Brasil; em se tratando da efetivação dos direitos fundamentais de quase um quarto da população nacional, não é de se admitir o decurso de período tão longo de tempo para a edição de uma lei. Trata-se de outra indicação da baixa efetividade da Convenção, que, ademais, teve que ser expressamente mencionada como fundamento constitu48 Foge do escopo do presente estudo detalhar as disposições do Estatuto da pessoa com Deficiência, bastando anotar que tal lei preocupa-se em conferir mais efetividade àquilo que já está previsto no plano Constitucional (e deveria já estar em implementação), desde a aprovação da Convenção da ONU na forma prevista no art. 5º, § 3º, da Lei Maior. Questões como a fixação legal da nova definição de pessoas com deficiência, bem como dos direitos à igualdade, à vida, à habilitação e reabilitação, à saúde, à educação, à moradia, ao trabalho, à assistência e previdência social, à cultura, esporte, turismo e lazer, ao transporte, à acessibilidade, ao acesso à informação e à comunicação, à participação na vida pública e política, ao acesso à justiça, e ao reconhecimento igual perante a lei, são tratadas e minudenciadas no Estatuto, que, ademais, promove importantes alterações em diversas outras leis, como a Consolidação das Leis do Trabalho, o Código de Defesa do Consumidor, a Lei de Improbidade Administrativa, a Lei Geral de Licitações e Contratos, o Código Civil e o Estatuto da Cidade. A lei previu um vacatio legis de 180 dias, contados de sua publicação oficial (art. 127), o que postergou sua entrada em vigor apenas para o início de 2016. Se por um lado, como acima anotado, a demora na elaboração de tal legislação e a necessidade de expressamente apontar em seu texto a Convenção da ONU como seu fundamento constitucional nos indicam a falta de conhecimento da Convenção e sua baixa efetividade, por outro lado, porém, a edição de tal lei traz alguma expectativa de um movimento de início de reversão dessa baixa efetividade, para que finalmente se possa caminhar para a implementação das disposições da Constituição brasileira que procuram incluir as pessoas com deficiência. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA cional da edição da Lei n. 13.146/2015, o que foge ao padrão comum da legislação nacional, que raramente indica em seu corpo qual o fundamento constitucional que lhe sustenta; outro indicativo de que a Convenção é praticamente desconhecida pelo Direito brasileiro. 49 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA 4 Diagnóstico: as razões da falta de efetividade da Convenção da ONU Como demonstramos até aqui, a despeito de ter havido a introdução no ordenamento jurídico brasileiro da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, na forma prevista no art. 5º, § 3º, da Constituição Federal, e, pois, com equivalência de norma constitucional, tal convenção não tem sido dotada da imprescindível e esperada efetividade, necessária à inclusão das pessoas com deficiência na sociedade, em igualdade de oportunidades para com as demais pessoas, implementando, assim, o comando de igualdade contido em nossa Lei Maior. Quais poderiam ser as razões dessa falta de efetividade da Convenção? As possíveis respostas (ou algumas das possíveis respostas) a essa questão serão o objeto de nossa investigação a partir de agora. 4.1 Novidade A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU e seu Protocolo Facultativo foram os primeiros, e únicos até agora, instrumentos internacionais internalizados na forma prevista no art. 5º, § 3º, da Constituição Federal, ganhando equivalência de emenda à Constituição. Tal circunstância, por si só, já é suficiente para gerar alguma reserva quanto à aplicação da Convenção e seu reconhecimento como norma formalmente integrante da Constituição brasileira, visto que é equivalente a emenda constitucional. A novidade assusta e, tratando-se de um instrumento que não encontra paradigma até então em nosso ordenamento jurídico, e que não teve seu formato repetido após sua promulgação, é até natural que haja uma certa resistência a sua implementação, com a hierarquia que lhe foi atribuída pela forma de sua internalização. Não estão os operadores de nosso sistema jurídico acostumados com essa figura, podendo haver alguma dúvida acerca do caminho a seguir. 50 A proteção ao grupo das pessoas com deficiência sofreu grande transformação, especialmente em razão do novo conceito de pessoas com deficiência adotado pela Convenção, que, como já tivemos oportunidade de referir (item 3.1.1), mudou o foco de políticas de saúde a de assistencialismo para medidas de inclusão de maneira plena e efetiva das pessoas com deficiência na sociedade, mediante a eliminação de barreiras, de forma que essas pessoas possam gozar das mesmas oportunidades, em igualdade de condições, de que gozam as demais pessoas. Passou-se de um sistema em que se entendia que a deficiência era algo inerente ao indivíduo (que era “portador” de uma deficiência) para um sistema em que a deficiência é vista como algo que está na sociedade que, em razão de diversas barreiras, não é capaz de acolher a todas as pessoas da mesma forma, propiciando, como deveria, as mesmas oportunidades de inclusão. A pessoa com deficiência é vista como parte da diversidade humana, sendo que a sociedade deve estar preparada para acolhê-la, como acolhe as demais pessoas. A sociedade é que apresenta uma deficiência, que conta com barreiras, de diversas ordens, que impedem a plena e efetiva participação das pessoas com deficiência, e, dessa forma, devem ser eliminadas. Não são mais admitidas, pois, políticas segregacionistas ou meramente assistencialistas dirigidas às pessoas com deficiência, sendo exigidas medidas que objetivem sua efetiva inclusão na sociedade. Trata-se de uma mudança significativa no sistema de proteção ao grupo vulnerável, que rompe com os paradigmas anteriores e cria novos pressupostos, o que pode gerar alguma resistência em sua efetiva e necessária implementação. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Outrossim, não é apenas na forma que a Convenção da ONU inova em nosso ordenamento jurídico, mas a inovação é bastante significativa com relação ao seu conteúdo. Tal novidade, também, ainda não foi bem absorvida por aqueles que têm a responsabilidade por sua implementação (e mesmo por aqueles que são destinatários dos direitos na Convenção contidos). 51 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA A nova forma de identificação dos integrantes do grupo vulnerável, que não mais admite uma simples avaliação médica e a consulta a um rol constante de um decreto, mas impõe uma avaliação médica e social, de forma a verificar se há algum prejuízo à inclusão, assim como definições como a “adaptação razoável” e o “desenho universal” (artigo 2 da Convenção), as determinações destinadas à efetiva inclusão das pessoas com deficiência na sociedade, as novas diretrizes acerca de sua capacidade jurídica (artigo 12, § 2, da Convenção), implicam uma mudança de conceitos que há muito tempo faziam parte de nosso universo jurídico e, dessa forma, geram resistência à sua implementação. A novidade do sistema de proteção, que implica a necessidade de se vencer a acomodação provocada por muitos anos de políticas meramente assistencialistas ou segregacionistas, bem como a novidade de sua forma explicam em parte a falta de efetividade que até hoje se nota na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU. 4.2 Dificuldade de entender o outro e a falta de ensino inclusivo Ao longo da história, as pessoas com deficiência foram objeto de políticas segregacionistas, como a internação em instituições de saúde ou de ensino especializadas, assim como de políticas meramente assistencialistas, preocupadas em assegurar-lhes a subsistência, mas sem preocupação de que isso fosse feito de forma a incluir-lhes efetivamente na sociedade, propiciando sua participação plena e efetiva. Não é novidade, outrossim, que a segregação gera mais exclusão. Isolar determinado grupo de pessoas, independentemente das intenções que se tenha, que poderão ser as mais nobres, faz com que essas pessoas percam a oportunidade de conviver em sociedade e, consequentemente, faz com que a sociedade perca a oportunidade de conviver com essas pessoas; perde-se a oportunidade de promoção da convivência com a diversidade, tirando das pessoas a possibilidade de conhecerem e entenderem o próximo. 52 Ciente da importância da educação inclusiva para a efetiva inclusão das pessoas com deficiência na sociedade, o Constituinte brasileiro expressamente determinou que é dever do Estado garantir atendimento educacional especializado às pessoas com deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino (Constituição Federal, art. 208, III). O mandamento constitucional de implementação do ensino inclusivo foi veementemente reforçado pelas disposições da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, que, em seu artigo 24, traz o compromisso dos Estados-Partes com a educação inclusiva, dispondo expressamente que o Estado deverá assegurar que “as pessoas com deficiência não sejam excluídas do MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Essa convivência com a diversidade deve se iniciar desde a mais tenra idade, desde os bancos escolares, pois assim são aumentadas as oportunidades de que as pessoas se desenvolvam com o conhecimento e o entendimento do outro. A educação inclusiva é, pois, essencial para o desenvolvimento das crianças com ou sem deficiência. Se, desde cedo, a criança é acostumada a conviver com um coleguinha com deficiência, certamente estará mais preparada para pensar no outro e em suas necessidades durante toda sua vida. Quando se tornar, na vida adulta, um profissional, seja de que área for, estará mais preparada para também pensar no outro quando do desenvolvimento de suas atividades. O engenheiro que conviveu desde cedo com alguém com deficiência certamente levará em conta sua percepção para projetar prédios acessíveis, independentemente de qualquer prescrição legal; o mesmo se pode dizer do profissional do Direito, que estará mais apto para atuar se tiver consciência da diversidade e das necessidades das outras pessoas. Também os agentes públicos, de quaisquer dos Poderes, estariam mais aptos a atuarem de acordo com a necessidade de incluir as pessoas com deficiência se tivessem presente a consciência da diversidade, propiciada pelo ensino inclusivo; as políticas públicas seriam elaboradas pelo legislador de forma mais humana, voltadas à inclusão, e assim seriam executadas pelo administrador público, bem como entendidas pelos juízes, nos casos que lhes fossem levados. 53 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA sistema educacional geral sob alegação de deficiência” (artigo 24, § 2, a, da Convenção). Pretendendo dar efetividade à disposição da Convenção (e, por consequência, da Constituição brasileira), o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei n. 13.146/2015) também cuidou da necessidade de implementação do ensino inclusivo. O art. 28, I, do referido Estatuto aponta que incumbe ao poder público assegurar, criar, desenvolver, implementar, incentivar, acompanhar e avaliar o sistema educacional inclusivo em todos os níveis e modalidades. O § 1º do mencionado art. 28 do Estatuto da Pessoa com Deficiência, inclusive, prevê que também as instituições privadas de ensino, de qualquer nível e modalidade, deverão implementar a educação inclusiva, com oferecimento de atendimento educacional especializado, na forma prescrita na lei, vedada a cobrança de valores adicionais de qualquer natureza em suas mensalidades, anuidades e matrículas no cumprimento dessas determinações. E justamente esse dispositivo do Estatuto da Pessoa com Deficiência, o art. 28, § 1º, que determina a implementação do atendimento educacional especializado pelas instituições particulares de ensino sem a possibilidade de cobrança de qualquer valor adicional, pode ser utilizado para que notemos a resistência que a questão da pessoa com deficiência enfrenta, mas também para nos trazer a expectativa de que haja possibilidade de mudança do cenário acerca da efetividade da Convenção em nossos tribunais. Tal dispositivo foi impugnado pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino, mediante o ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal (ADI n. 5.357/DF). O ajuizamento de tal ação demonstra a resistência às diretrizes trazidas pela Convenção da ONU, que expressamente garante às pessoas com deficiência o direito ao atendimento educacional especializado. Por outro lado, o que nos traz a expectativa de uma possível mudança de cenário acerca da efetividade da Convenção da ONU, pelo menos no âmbito do Supremo Tribunal Federal, é a decisão 54 do ministro relator, Ministro Edson Fachin, que, ao indeferir a medida cautelar pleiteada, expressamente aponta que o dispositivo impugnado do Estatuto da Pessoa com Deficiência é consentâneo com a Constituição da República, tendo em vista, inclusive, que a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU foi incorporada ao Direito brasileiro com equivalência de emenda constitucional; é o reconhecimento pela Suprema Corte Brasileira da hierarquia constitucional da Convenção da ONU em nosso ordenamento jurídico12. O Plenário da Corte, por expressiva maioria (vencido apenas o min. Marco Aurélio) não só ratificou a decisão como já apreciou o mérito, entendendo que o Estatuto na parte impugnada era constitucional13. A Constituição brasileira, desde a publicação da Emenda Constitucional n. 45/2004, prevê a possibilidade de que tratados e convenções internacionais versando acerca de direitos humanos sejam incorporados ao nosso ordenamento jurídico com equivalência de emenda à Constituição, desde que aprovados na forma prevista pelo art. 5º, § 3º, da Lei Maior, ou seja, mediante a aprovação, nas duas Casas do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos de seus respectivos membros. Trata-se, assim, de cláusula de abertura formal da Constituição Federal. Até hoje, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU e seu Protocolo Facultativo foram os únicos instrumentos internacionais aprovados com observância do procedimento previsto no art. 5º, § 3º, da Constituição, tendo recebido, dessa forma, status normativo equivalente ao das emendas constitucionais. A refe12 Supremo Tribunal Federal, Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.357/DF, relator ministro Edson Fachin, Decisão Monocrática de 18.11.2015, publicada no DJe n. 234, de 19 nov. 2015. Disponível em: . Acesso em: out. 2017. 13 Conferir site do STF: . Acesso em: out. 2017. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Conclusão 55 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA rida Convenção da ONU, assim, por sua equivalência constitucional, é norma que está no topo da hierarquia do ordenamento jurídico brasileiro, e, dessa forma, revogou todo o Direito anterior que fosse incompatível com suas disposições, bem como condiciona a produção de todo o Direito posterior à sua internalização, que deverá observar os seus preceitos, sob pena de invalidade por inconstitucionalidade. Não só a produção do Direito está condicionada à observância dos ditames da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, mas também sua aplicação, o que impõe ao Estado, por seus três Poderes, atuação consentânea com as disposições da Convenção, de forma a promover a efetiva inclusão das pessoas com deficiência na sociedade. Nota-se, entretanto, que a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU é norma dotada de baixa efetividade, que sua implementação não está sendo levada a efeito, a despeito de sua equivalência de norma constitucional. Tal situação é percebida, por exemplo, na falta de anexação do texto da Convenção às edições da Constituição Federal publicadas pelas principais editoras brasileiras, que adicionam os textos das Emendas Constitucionais, mas sequer mencionam a Convenção. Ademais, sequer cuidou o Constituinte Reformador brasileiro de adaptar o texto do corpo da Constituição ao texto da Convenção (norma que, lembremos, tem equivalência de emenda à Constituição), para adotar a nomenclatura atualmente utilizada para referência ao grupo vulnerável, qual seja, “pessoas com deficiência”, preferindo manter em nossa Constituição a ultrapassada expressão “portadores de deficiência”. A atuação do Estado, por todos os seus Poderes, também vem desconsiderando a existência da Convenção e sua hierarquia constitucional, em outra demonstração de baixa efetividade de tal instrumento normativo. Notamos a ausência de políticas públicas consentâneas com as diretrizes trazidas pela Convenção, que não mais admite que a questão das pessoas com deficiência seja limitada a políticas meramente assistencialistas ou de saúde pública, mas exige a atuação concreta do Estado no sentido da inclusão das pessoas com 56 Também no âmbito do Poder Judiciário, notamos a baixa efetividade da Convenção da ONU, já que grande parte das decisões judiciais insiste em utilizar o conceito ultrapassado de pessoa com deficiência, estritamente médico e consistente em um rol fechado de situações em que alguém poderia ser considerado como pessoa com deficiência, o que não é compatível com a Convenção da ONU, que adota um conceito social e aberto, que impõe a necessidade do reconhecimento da interação de uma situação médica com as diversas barreiras sociais existentes, de forma a gerar uma desigualdade de oportunidades, para que se considere alguém como pessoa com deficiência. Mesmo os tribunais superiores assim procedem, tendo sido inclusive editada Súmula pelo Superior Tribunal de Justiça (Súmula n. 377) que expressamente adota a antiga definição de pessoa com deficiência, ao considerar um critério exclusivamente médico para determinar a inclusão de pessoas com visão monocular no grupo vulnerável. Muitas são as razões para essa baixa efetividade da Convenção da ONU, dentre as quais destacamos a novidade trazida por tal instrumento normativo, tanto em relação à sua forma de incorporação ao Direito brasileiro como em relação ao seu conteúdo, que contrariam paradigmas utilizados em nosso ordenamento por muito tempo, o que leva a uma resistência à sua efetivação. Também se pode encontrar na ausência de ensino inclusivo outro elemento que contribui fortemente para a baixa efetividade da Convenção, já que, com a exclusão das pessoas com deficiência da convivência com as demais pessoas, desde o ambiente escolar, não se cria nos indivíduos a percepção do outro, o reconhecimento da diversidade e, dessa forma, se produz resistência ao enfrentamento da questão da inclusão das pessoas com deficiência. No entanto, cumpre ressaltar a recente decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Direta de Inconsti- MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA deficiência, mediante a eliminação das diversas barreiras existentes na sociedade, de forma a propiciar sua participação plena e efetiva, em igualdade condições para com as demais pessoas. 57 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA tucionalidade n. 5.357/DF, que expressamente reconhece a Convenção da ONU como norma com equivalência constitucional, tendo em vista a utilização da forma prevista no art. 5º, § 3º, da Constituição, para sua incorporação ao Direito brasileiro, o que cria a expectativa de mudança no cenário retratado de baixa efetividade da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU. Referências ARAUJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional das pessoas com deficiência. 4. ed. Brasília: Corde, 2011. . Barrados. Pessoas com deficiência sem acessibilidade: como, o que e de quem cobrar. Petrópolis: KBR, 2011. ARAUJO, Luiz Alberto David; MAIA, Maurício. O novo conceito de pessoa com deficiência e a aplicação da Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência pelo Poder Judiciário no Brasil. Revista Inclusiones, v. 2, n. 3, p. 9-17, jul./set. 2015. Disponível em: . Acesso em: 7 abr. 2016. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed., 20ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2011. DIAS, Joelson; FERREIRA, Laíssa da Costa; GUGEL, Maria Aparecida; COSTA FILHO, Waldir Macieira da (Coords.). Novos comentários à Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. 3. ed. revisada e atualizada. Brasília: Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência – SNPD, 2014. 58 A importância da atuação articulada entre sociedade civil e o poder constituído, em especial, com o Ministério Público Gonzalo Lopez1 O nascimento de um filho com alguma diversidade funcional (deficiência) já produz efeitos intensos e indeléveis. Imagine de dois? Seus únicos filhos. Nosso primogênito, Gabriel, nasceu com síndrome de Down, uma deficiência intelectual. E Tiago, com surdez bilateral profunda, portanto, uma deficiência auditiva. Ambas por razões genéticas, mas sem conexões diretas causais entre si. Ou seja, minha esposa, Roberta, e eu vivemos por duas vezes a experiência de sermos aqueles “casos que não acontecem” em termos de estatísticas sociais. A notícia do primeiro nascimento despertou uma necessidade premente de informações, e o conhecimento do atual cenário das pessoas com deficiência em nosso País se desdobrou num projeto de vida: atuar, enquanto sociedade civil, na luta pela efetividade dos direitos. Assim, diante do nascimento de dois filhos com deficiência, a sociedade civil engajada foi descortinada na vida de minha família 1 Advogado e Professor. Mestre pela UFRJ. Membro da Câmara Legislativa do Fórum UFRJ Acessível e Inclusiva. Membro da Comissão Nacional de Defesa das Pessoas com Deficiência do Conselho Federal da OAB. Delegado da Comissão de Defesa das Pessoas com Deficiência da OAB/RJ. Secretário-Geral da Comissão OAB Vai à Escola da OAB/RJ. Coordenador da Comissão de Prerrogativas da OAB/RJ. Membro do Comitê Jurídico da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down (FBASD). Consultor Institucional do MAIS (Movimento Down/Movimento Zika). Moderador do RJ Down. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Introdução 59 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA e, por isso, a temática do presente artigo, o qual fui, honrosamente, convidado a escrever pela admirável e estimada amiga, Dra. Eugênia Augusta Gonzaga (minha referência e autora de um livro que foi minha primeira – e constante – leitura sobre direitos da pessoa com deficiência). As normas brasileiras sobre os direitos da pessoa com deficiência são robustas, garantistas e tidas como referência em boa parte do mundo. Incorporamos a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência e seu Protocolo Facultativo com status de Emenda Constitucional2, e o STF já a utilizou como parâmetro de controle de constitucionalidade3, confirmando, na mais alta corte do País, tal status. Por outro lado, a efetividade (no plano de seu real cumprimento) e a eficiência (no plano de atingimento de suas finalidades) cotidianas dessas normas são questionadas. A melhor forma de atuação do Poder Público também revela-se um desafio em constante construção. Neste cenário há um grave risco, pois a possível reduzida eficácia da Convenção produz o fortalecimento de argumentos que consideram o Bloco de Constitucionalidade inoperante em sua aplicabilidade e eficiência. 2 A Convenção e o Protocolo adquiriram status de Emenda Constitucional com a aprovação do Decreto Legislativo n. 186/2008 na forma do art. 5º, § 3º, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. O Decreto Executivo n. 6.949/2009 promulgou a Convenção e seu Protocolo facultativo, submetendo o Brasil ao Comitê Internacional sobre os Direitos da pessoa com Deficiência. 3 A utilização da Convenção como parâmetro de controle ocorreu no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.357. Nas brilhantes fundamentações do ministro relator Edson Fachin, “[p]osta a questão nestes termos, foi promulgada pelo Decreto nº 6.949/2009 a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, dotada do propósito de promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência, promovendo o respeito pela sua inerente dignidade (art. 1º). A edição do decreto seguiu o procedimento previsto no art. 5º, § 3º, da Constituição da República, o que lhe confere status equivalente ao de emenda constitucional, reforçando o compromisso internacional da República com a defesa dos direitos humanos e compondo o bloco de constitucionalidade que funda o ordenamento jurídico pátrio.” [Original sem grifo]. 60 Todavia, data maxima venia, mesmo diante de possíveis inegáveis situações de ineficácia e ineficiência, se o Bloco de Constitucionalidade4 garante e as reivindicações são justas, devemos nos mobilizar para efetivar tais dispositivos. Nesse sentido, as associações e coletivos da sociedade civil significam excelente escolha e caminho de ação na luta por direitos. Dessa maneira, releva-se a capacidade dos segmentos civis de se auto-organizarem em prol de um agir com o objetivo de buscar a efetividade das normas constitucionais na vida cotidiana das pessoas, seja de forma autônoma e exclusivamente associativa, seja em parceria com o poder constituído. Sobre esse ponto, necessário relevar que um caminho produtivo tem-se apresentado por meio de articulações com o Poder Público, sobretudo em relação à possibilidade de concretização dos direitos na prática mediante políticas públicas e pelo poder do Estado. Particularmente no que tange à capacidade da sociedade civil de gerar debates diretos com órgãos públicos, merece destaque a possibilidade de, ao discutir e reivindicar, tensionar com o Estado para exigir o cumprimento da legislação vigente, permitindo a efetividade e a eficiência das políticas públicas voltadas para um segmento específico. Portanto, o presente artigo pretende tecer uma breve análise sobre essa estratégia por meio de ações concretas já realizadas, 4 Para maiores informações sobre Bloco de Constitucionalidade, vide o Informativo n. 258 do Supremo Tribunal Federal (STF), com especial destaque para o trecho relacionado à ADIn 595-ES (em suas transcrições ao final do informativo), disponível em: . Acesso em: 20 set. 2017. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Em tal contexto, a sociedade civil pode exercer significativa pressão sobre as políticas públicas, contribuindo para uma articulação organizada e bem direcionada na cobrança dos direitos existentes e, consequentemente, proporcionando efeitos concretos sobre a vida das pessoas com deficiência e outros segmentos civis associados e em luta. 61 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA as quais pessoalmente pude vivenciar, e, assim, tecer alguns comentários. Os apontamentos que ora são delineados, em realidade, baseiam-se em vivências concretas que buscam fortalecer a estratégia de parceria entre sociedade civil e Poder Público. Nesse contexto, partiremos de uma reflexão sobre o conceito de sociedade civil e seu papel nas considerações conexas à ação dos movimentos sociais. Na sequência, o presente artigo versará sobre a construção de possíveis formas de agir com ponderações acerca dos mecanismos potencialmente viáveis de articulação com o Poder Constituído (Poderes Legislativo, Executivo, Judiciário e, em especial, com o Ministério Público), baseadas em experiências já concretizadas. Em derradeiro, serão apresentadas algumas vivências práticas mediante relatos com reflexões sobre os meios utilizados, fins atingidos e resultados dessa articulação entre sociedade civil e Estado, em especial, na atuação com o apoio do Ministério Público. 1 Conceito de sociedade civil Uma análise de recortes da história possibilita a percepção de que conceitos podem ser relativizados, tendo em perspectiva que refletem momentos históricos e seus ambientes culturais, bem como status coletivos e individuais de suas construções teóricas. Decerto, o conceito de sociedade civil se enquadra em certa miríade de construções ao longo do tempo por ter sido amplamente utilizado na teoria política aplicada ao discurso social construído no decurso da história, e continua vivamente utilizado nos dias e debates contemporâneos. Pela riqueza conceitual da ideia de sociedade civil, faz-se necessária uma breve introdução teórica acerca do tema antes de se adentrar em suas articulações e ações no contexto mais atual. Todavia, importante relevar que a presente exposição não se destina a definir um padrão conceitual a ser utilizado, mas apenas a 62 apresentar caminhos possíveis. Insta considerar ainda que os objetivos e desdobramentos oriundos do conceito a ser adotado para definir sociedade civil não serão esmiuçados no presente artigo, embora as nuances do significado conceitual de sociedade civil sejam importantes na compreensão da forma em que se entende e se pretende agir enquanto coletivo ou associação civil. Filósofos políticos ocidentais de destaque, como Hobbes, Locke e Rousseau (KALDOR, 2003), aplicaram o conceito de sociedade civil como sinônimo de Estado, mas em oposição ao “estado de natureza”, e não na tomada contemporânea em que, diante da noção neoliberal, aplica-se em “oposição” ou “complementariedade” ao Estado, sobretudo numa perspectiva de “terceiro setor”. Os autores clássicos refletiam sobre as condições em que os seres humanos poderiam se desvencilhar do “estado de natureza” na busca por um novo estágio social de convivência da civilidade humana. Essa construção conceitual almejava a consolidação de uma sociedade civil, sendo intimamente relacionada ao termo civilidade e constituída como uma comunidade política concebida nos princípios da cidadania. Como regra, essa nova forma se fundaria num contrato com regras legais. Na construção conceitual, Hegel tem significativa relevância ao incorporar associações, comunidades e corporações nas relações entre indivíduos e o Estado. O ponto crucial de Hegel foi reconhecer um papel estratégico das organizações sociais (corporações, associações e comunidades) na mediação política entre o indivíduo e o Estado (COLÁS, 2002). Para o autor, os elementos associativos da sociedade civil possibilitam a aproximação dos indivíduos em comunidades mais amplas e enquadradas em determinados valores éticos da vida cívica. Assim, Hegel confere um papel de mediação entre os indivíduos e o Estado às associações independentes da sociedade ci- MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA 1.1 Breve reflexão histórica 63 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA vil. Para Hegel, “a sociedade constitui o momento intermediário entre a família e o Estado” (BOBBIO, 1987). Mesmo sem mencionar o conceito de sociedade civil, Alexis de Tocqueville o influenciou fortemente, com a relevância atribuída ao associativismo e à auto-organização em seus estudos. Ao analisar a democracia dos Estados Unidos, Tocqueville destacou o alcance fundamental das associações na vida civil enquanto instrumentos para resguardar as liberdades individuais no próprio regime democrático. Basicamente, na medida em que o Estado amplia suas atividades e seu controle sobre a vida dos indivíduos e a concentração de renda se amplia refletindo mais desigualdade social e fragilização de alguns segmentos, essa “vida em associações”, com coletivos ativos e voluntários, se fortalece e consegue até mesmo realizar oposição aos poderes em expansão como o próprio Estado e o poder hegemônico de forma ampla (KALDOR, 2003). Nas impressões de Tocqueville, [a]mericanos de todas as idades, de todas as posições na vida e de todos os tipos de disposição estão sempre formando associações. Não há apenas associações comerciais ou industriais nas quais todos tomam parte, mas outros milhares de tipos diferentes – religiosas, morais, sérias, fúteis, muito genéricas e muito limitadas, imensamente grandes e muito pequenas. (TOCQUEVILLE, 1969 apud PUTNAM, p. 6, 1995. Tradução livre.) 1.2 Reflexões e usos recentes A construção teórica do conceito de sociedade civil é árdua e com matizes distintos e, por vezes, antagônicos. Todavia, é inegável a evolução de ideais e reflexões que subsidiam os caminhos e pensamentos recentes. Para os defensores das associações como elementos cruciais no bom funcionamento de democracias nos moldes ocidentais, os estudos de Tocqueville sobre a democracia estadunidense são cen64 Na esteira da linha neotocquevilliana de pensamento, a rede de engajamento cívico promoveria a ideia de reciprocidade e confiança social com o fortalecimento de um “capital social” que facilitaria a coordenação e cooperação visando benef ícios mútuos. Esse “capital social”, calcado em redes de interação, ampliaria o sentido de “pertencimento” de cada indivíduo ao respectivo coletivo associativo, valorizando, assim, os bens coletivos, as reputações, o histórico de resoluções em moldes bem-sucedidos por essa coletividade previamente e, por via de consequência, facilitaria a resolução de problemas, possibilitando um melhor convívio harmônico em sociedade. Nesse sentido, a participação associativa intensa e ativa garante a estabilidade e força necessárias para manutenção das democracias liberais, expondo que a sociedade civil deve ser preenchida, espontaneamente, por organizações de associação livre, em que os cidadãos participem na defesa de seus interesses privados, mas articulados em redes de engajamento, para agir de forma coletiva e com benefícios mútuos. Na linha neoliberal, a sociedade civil seria mais passiva, menos como uma contraposição ao Estado e ao mercado e mais como um complemento ou até substituto para ambos. Seria um ambiente, aparentemente, fora do contexto de luta e inserido numa lógica estável de confiança e responsabilidade social. Os atores da sociedade civil seriam materializados em organizações sem fins lucrativos (ou organizações não governamentais). Hodiernamente, a sociedade civil tem sido tratada como Terceiro Setor pelos neoliberais. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA trais na percepção da relação entre sociedade civil e ambientes/regimes democráticos, tendo em vista que a associação pode funcionar como ferramenta de contraponto ao processo legislativo majoritário e, por vezes, perverso com grupos não hegemônicos. Nessa perspectiva, a sociedade civil, articulada em rede, marcada pelo verdadeiro engajamento cívico ativo, influencia, decisivamente, na qualidade da vida pública e performance das instituições. 65 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Reiteradamente, o Banco Mundial e outras instituições internacionais atuam articulados com essa concepção neoliberal de sociedade civil. De acordo com o Banco Mundial, “a constituição de capital social e o surgimento de uma sociedade civil forte são os ingredientes essenciais para a consecução do desenvolvimento sustentável no longo prazo” (GARRISON, p. 18-19, 2000). Dentro dessa lógica de responsabilidade social, a concepção de bem-estar social é limitada e vinculada ao âmbito privado. A sociedade civil deveria ser capaz de proteger os mais pobres por meio de uma “rede de solidariedade” composta pela comunidade, por famílias, fundações de empresas, instituições religiosas, beneficentes, profissionais, organizações sociais não governamentais e coletivas em geral. Sendo assim, a sociedade civil substituiria outros atores, como os governos nacionais, mediante a descentralização e privatização de serviços públicos, tendo em mente que, para esses pensadores, o Estado possui uma ineficiência inerente à burocracia das políticas públicas do aparelho estatal. A lógica neoliberal pretende a composição de três setores: o Público e o Privado, concedendo-lhes autonomia e estimulando o surgimento de um setor com traços mistos entre público e privado, denominado Terceiro Setor. O Primeiro Setor seria o Estado, o Segundo Setor seria o mercado e o Terceiro Setor, a sociedade civil. Esse Terceiro Setor absorveria cada vez mais a atuação em áreas de função pública, mas a partir de espaços e iniciativas privadas. Para os defensores da linha neoliberal de sociedade civil, o Terceiro Setor reforçaria as associações civis pela diminuição da ingerência estatal na esfera privada, propiciando o desenvolvimento baseado nos laços de solidariedade local e voluntária, compensando políticas sociais abandonadas pelo Estado. Andrew Arato e Jean Cohen (1994) propuseram um conceito de sociedade civil que passeia por ideias de Habermas, por isso, recebe a denominação de linha habermasiana. Para os autores, movimentos 66 sociais e instituições podem se situar tanto na esfera privada quanto na pública para deter o mercado ou o Estado em suas interseções com a sociedade civil. Inclusive, posicionados de forma que permitiria a mediação entre subsistemas e o “mundo da vida”. Arato e Cohen enxergam a sociedade civil como uma forma de dificultar o que Habermas definiu como “colonização do mundo da vida”. Sobretudo, mediante a sua construção como um projeto emancipatório estruturado na deliberação pelos indivíduos para validação de reivindicações construídas na realidade da discordância e do debate experimentado na própria sociedade civil. Daniel Capecchi Nunes, com base na perspectiva da teoria do agir comunicativo capitaneada por Jungen Habermas, assim esclarece: A função da sociedade civil, nesse cenário, por um lado, é garantir a independência desse espaço de constituição das relações espontâneas e comunicativamente mediadas diante da lógica do poder e do dinheiro e, por outro, direcionar os sistemas para cumprir os objetivos construídos através da comunicação democrática no âmbito de uma esfera pública inclusiva (NUNES, p. 23, 2017). Aproximando a perspectiva da sociedade civil com a realidade de regimes democráticos e, sobretudo, das formas e finalidades da atuação civil, Nunes prossegue: A própria ampliação da legitimidade de uma ordem constitucional no tempo e sua consequente efetividade dependem de sua absorção e releitura pelos setores externos ao núcleo do poder político. É MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Nessa linha de desenvolvimento, a sociedade civil seria composta por todas as formas associativas e instituições que demandem interação comunicativa e atuem coordenadamente com base na integração social. Esse caráter concederia maior autonomia à sociedade civil, ao passo que suas ações decorreriam de normas extraídas do mundo da vida e reproduzidas por meio da comunicação. Dessa maneira, a natureza comunicativa seria o aspecto definidor de sociedade civil. 67 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA que, sob a perspectiva constitucional, a sociedade civil, por meio da atuação dos movimentos sociais e organizações civis, tem a função de se inserir nas disputas para atualizar os sentidos da Constituição e dar vida ao conteúdo dos direitos (NUNES, p. 23, 2017). Já para a linha gramsciana (COUTINHO, 2003), sociedade civil seria um conjunto de organismos designados vulgarmente como privados, formado por organizações responsáveis pelas ideologias, compreendendo os sistemas de ensino, religiosos, sindicais, partidários (políticos), profissionais, culturais e de comunicação (mídias), e outras coletividades inseridas na ideia de aparelhos privados de hegemonia, autônomas em relação à sociedade política. Por sua vez, a sociedade política seria um conjunto de mecanismos para manutenção do monopólio legal da repressão e da violência da classe dominante, sobretudo identificada com o sistema de coerção e segurança do Estado no complexo policial-militar e nas burocracias estatais. Sociedade civil e política atuariam no sentido de promoção de uma determinada base econômica, mas com diferenças na função exercida por cada uma delas dentro da organização de vida social e nas relações de poder. A sociedade civil busca exercer a hegemonia pela direção política e consenso, enquanto a política, pela coerção e dominação. 2 Organizações de sociedade civil e possibilidades de articulação Nos dias atuais, o papel preponderante das organizações de sociedade civil é reflexo do modelo econômico hegemônico, bem como de seus desdobramentos sobre as políticas priorizadas pelo poder político e, assim, majoritariamente, enquadradas nos conceitos neotocquevillianos e neoliberais, com algumas exceções habermasianas. Nesse cenário de hegemonias, a linha gramsciana adquire concretude em parte de suas críticas. 68 Dentro dessa lógica “de hegemonias” estabelecida e da vivência cotidiana, basicamente, as associações civis possuem como papel central a mobilização de indivíduos com motivações e finalidades comuns na luta pela ampliação da visibilidade de determinados segmentos sociais. Essa mobilização tem o intuito de conquistar mais representatividade por intermédio de coletivos e outros mecanismos de associação que possam pressionar e dialogar com o Poder Público constituído, ou mesmo entre as próprias coletividades e movimentos sociais. O Brasil tem consagrado um mecanismo fundamental de articulação entre a sociedade civil e o Poder Judiciário nas audiências públicas promovidas, em especial, no Supremo Tribunal Federal. São momentos em que diferentes e diversos segmentos sociais, muitas vezes antagônicos, possuem a possibilidade de apresentar seus argumentos acerca de determinado tema, como ocorreu em caso específico de que tratou a recente ADI n. 5.357 sobre educação inclusiva, assunto que será melhor detalhado adiante. Todavia, indispensável perceber que o “dia da audiência”, como regra, funciona apenas como data de desdobramentos de pressões, articulações e convicções prévias entre sociedade civil e Poder Judiciário, detentor da decisão final. No entanto, no presente artigo, o enfoque pretendido se direciona para as articulações da sociedade civil diretamente com o Ministério Público, na forma do art. 127 e do inciso II do art. 129, ambos da Constituição da República. A Carta Magna, por meio dos artigos nomeados, consagra que o Ministério Público tem o dever institucional de defender a ordem jurídica e o regime democrático e de zelar pelo efetivo respeito dos poderes públicos e dos serviços de rele- MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA As possibilidades de atuação são muitas e com todas as esferas do poder. A sociedade civil pode se articular com o Poder Executivo para a produção de um decreto presidencial, por exemplo. Assim como uma articulação recorrente ocorre entre segmentos da sociedade civil e o Poder Legislativo na produção de projetos de lei. 69 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA vância pública, destinados à efetivação dos direitos assegurados às crianças e adolescentes pela lei e pela Constituição Federal. A partir desse dever institucional, o Ministério Público deve, por tradição e função, agir de forma incisiva na garantia de direitos constitucionais, atuando, inclusive, como “fiscal da lei” para que ela seja efetiva, uma vez que possui ferramentas específicas para isso. Dentro dessa perspectiva, a atuação conjunta entre sociedade civil e Ministério Público é inerente ao ambiente democrático, tendo em vista que este efetiva o que aquela tem direito. Partindo dessa concepção de articulação, alguns relatos de atuação conjunta entre sociedade civil e Ministério Público serão descritos abaixo. 3 Relato de casos O relato que segue busca demonstrar a enorme relevância da atuação de associações da sociedade civil junto ao Poder Constituído, com a finalidade de ampliar a visibilidade e promover ou garantir direitos de coletividades e segmentos sociais. A articulação da sociedade civil produz efeitos práticos concretos no cotidiano da sociedade, conforme reflexão que se desenvolverá nas próximas linhas. Em diferentes circunstâncias, a sociedade civil se mobiliza por meio de movimentos sociais específicos e pontuais. Como regra, são movimentos organizados por diversas coletividades excluídas ou afastadas do exercício pleno da cidadania e que, a partir da construção de uma identidade coletiva de exclusão, sobretudo por identificação reciproca de lutas com interesses convergentes, constroem entre si uma identidade comum ou uma pauta afim. Nesse sentido, as lutas e as causas são coletivas, e não de um indivíduo ou outro apenas. Dentro dessa perspectiva, interessante trazer para registro alguns episódios em que o movimento social atuou com estratégias 70 correlatas ao ativismo político, assim como instituições e associações da sociedade civil buscaram construir soluções mediando ou redefinindo a própria atuação estatal. Nesse esforço de registro dos episódios, a anotação será baseada em ações que pude vivenciar e com as quais interagi pessoalmente. A Ordem dos Advogados do Brasil, cuja atividade constitui serviço público, dotada de personalidade jurídica e forma federativa, de acordo com o art. 44 do Estatuto da Advocacia (Lei Federal n. 8.906/1994), tem por finalidade defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado Democrático de Direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas. Dessa forma, partindo de sua finalidade e das ações concretas desenvolvidas por todo território nacional por meio das seccionais e da OAB Federal, pode ser considerada como uma das principais instituições da sociedade civil para articulação, visando a efetividade dos dispositivos normativos pátrios. Observando essas premissas axiológico-legais institucionais e os princípios da proteção integral e da prioridade absoluta para a criança, o adolescente e o jovem, o Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Tutela Coletiva de Proteção à Educação do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (CAO EDUCAÇÃO/ MPERJ) e a Comissão OAB Vai à Escola, da Ordem dos Advogados do MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Episódios de atuação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), sobretudo da seccional do Rio de Janeiro, da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down (FBASD), do grupo de pais RJ Down e de diversas instituições envolvidas na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.357, recentemente julgada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), revelam-se importantes recursos de exemplificação e eventuais instrumentos de reflexão para reprodução de possíveis formas do “agir” pela sociedade civil. 71 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Brasil – seccional do Rio de Janeiro – firmaram um convênio de colaboração para realização de eventos a partir da produção conjunta de uma publicação com orientações sobre direitos e deveres educacionais na perspectiva inclusiva. A parceria desdobrou-se em fala conjunta da OAB/RJ e do MP/RJ em deliberação sobre educação inclusiva no Conselho Estadual de Educação do Estado do Rio de Janeiro (que resultou em influência direta nos artigos da Resolução n. 355/2016 sobre educação especial), na participação de representantes de ambas instituições, por meio de seus advogados e promotoras, no programa MP Cidadão, de veiculação nacional, através do canal TV Justiça, bem como em eventos (com destaque para o lançamento na sede da OAB e para o evento anual do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, de 2016) que consagraram a temática da educação inclusiva. Para além dos eventos, as instituições, articuladas, atuam continuamente na defesa do direito à educação de todos pela conscientização, e também por intermédio de construções coletivas de ações e recomendações ou termos de ajuste de conduta, se necessários, no contexto do projeto “Paz nas Escolas” do MPERJ. O projeto, com potencial significativo para efetivação de direitos fundamentais, tem como escopo maior a conscientização da sociedade civil para a cultura da diversidade e dos ganhos oriundos da matrícula de todas as pessoas nas escolas. A vivência na diversidade propicia o desenvolvimento coletivo para uma comunidade harmônica e que respeita o próximo pelo que ele é, e não pela projeção que se possa fazer dele. O processo de inclusão em educação possibilita a construção de uma sociedade mais consciente e humana, calcada na defesa e compreensão dos direitos humanos enquanto pertencentes a todos, com alguma deficiência ou não. Nessa parceria pela difusão dos ideais e valores da educação inclusiva, calcada em dispositivos legais (como a Lei Brasileira da Inclusão – Lei Federal n. 13.146/2015 – e a Convenção sobre Direitos da 72 Um fato significativo conexo à articulação acima descrita entre sociedade civil e Poder Público pode ser retratado na atuação de alguns pais do Rio de Janeiro reunidos no grupo RJ Down. O grupo, formado no ano de 2005, passou a promover todos os anos uma caminhada de visibilidade na luta pelos direitos das pessoas com síndrome de Down. Em 2015, a partir da conversa com membros do Ministério Público do Rio de Janeiro, consolidou-se a aproximação e participação do MP/RJ na referida caminhada (denominada “CaminhaDown”). Exatamente dessa aproximação entre familiares, promotoras e promotores que se desenvolveu o projeto de orientações sobre educação inclusiva, materializado na parceria OAB/RJ e MP/RJ, que consagra o direito de todos os estudantes, com ou sem deficiência. A ideia inicial tem-se consolidado a cada ano. O RJ Down, seus eventos e a caminhada compõem um exemplo de articulação da sociedade civil, inicialmente sem apoio de instituições públicas ou mesmo privadas. A partir do ano de 2015, o CaminhaDown (como é denominada a caminhada que, por volta do dia 21 de março5, também com auxílio de outro agente da sociedade civil, o Movimento Down, ocorre atualmente em diversas cidades do País, como Brasília e São Paulo) passou a contar com a presença de diversos outros segmentos 5 O Dia Internacional da Síndrome de Down é o dia 21.3, em alusão aos 3 cromossomos número 21n que pessoas com a síndrome possuem. A ideia partiu do geneticista Stylianos E. Antonarakis, da Universidade de Genebra, e foi defendida, em 2005, no Congresso Internacional de Síndrome de Down, em Mallorca, na Espanha. A data emplacou na ONU a partir de uma solicitação brasileira em que o conselheiro João Lucas Quental e a representante da Down Syndrome International e da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down, Patrícia Almeida, apresentaram a proposta e viabilizaram a adoção, por consenso, pela plenária da Terceira Comissão. Mais em: . Acesso em: 18 jul. 2016. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Pessoa com Deficiência – Decreto n. 6.949/2009), MP e OAB atuaram a partir dos constantes apelos de inúmeras pessoas com deficiência e seus familiares, que se frustravam exatamente com a falta de efetividade e eficiência dos dispositivos legais que garantiriam educação para todos, ou seja, a sociedade civil atingiu de diferentes formas o cenário educacional, em consonância com o Ministério Público. 73 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA sociais. A caminhada, planejada por pais num grupo que sequer possui CNPJ e se organiza apenas por meio de redes sociais e um grupo de e-mails virtuais para auxiliar as famílias com informações, passou a contar com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil do Rio de Janeiro, do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, do Coletivo de Advogados do Rio de Janeiro, da Banda Oficial da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro e do Movimento Down, e tem o patrocínio da empresa White Martins, tradicional parceira há anos. O evento conta com ampla divulgação de mídias e com a participação voluntária de dezenas de alunos de ensino médio de escolas da cidade do Rio de Janeiro, centenas de pais e familiares, assim como de empresas que auxiliam no dia do evento e nas preparações. Os ativistas Breno Viola e Fernanda Honorato estão sempre presentes e falando como autodefensores das pessoas com síndrome de Down para os participantes. Segundo estimativas da Polícia Militar, em 2016 foram cerca de três mil pessoas caminhando nas orlas da cidade. Com a participação cada vez maior de segmentos da sociedade civil e de instituições como o Ministério Público, a tendência é de crescente relevância para o evento e, consequentemente, aumento da visibilidade de pessoas com síndrome de Down, assim como das dificuldades e preconceitos enfrentados por toda pessoa com deficiência, em especial intelectual, nos dias de hoje. Mais uma vez, a presença do MP, inclusive com toda a estrutura de sua ouvidoria, amplifica os necessários e bem-sucedidos laços entre sociedade civil e Poder Público. A Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down (FBASD), também pertencente à sociedade civil, conglomerando dezenas de associações em diversos estados do País, tem demonstrado incansável atuação junto às esferas de Poder no Brasil. Em 2015, a FBASD atuou de forma intensa junto aos deputados federais e senadores que votariam a Lei n. 13.135/2015, com regras previdenciárias que impactariam sobremaneira a vida de pessoas, não somente com síndrome de Down, mas com qualquer tipo de deficiência intelectual. 74 A atuação consistiu em possibilitar que a pessoa com deficiência intelectual severa não necessitasse ser interditada para fazer jus à condição de beneficiário em possível pensão deixada no caso de morte de seus responsáveis. Após a produção de material de conscientização e informação para ser entregue aos parlamentares pelo Comitê Jurídico da FBASD e a intensa atuação junto aos gabinetes de parlamentares das lideranças partidárias no Congresso Nacional, uma importante vitória foi obtida, com a aprovação, conforme solicitado no material, do dispositivo previdenciário. No ano de 2015, outro momento foi modelar no que tange à atuação da sociedade civil junto ao Poder Judiciário, permeada pela presença da Procuradoria-Geral da República e da AMPID: o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.357 (ADI 5357). A ação se iniciou com o questionamento da constitucionalidade de dispositivos da Lei n. 13.146/2015 (Lei Brasileira da Inclusão) que garantem aos estudantes com deficiência o direito fundamental à educação em todas as escolas, sejam públicas ou privadas. A Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen) pleiteava a inconstitucionalidade dos dispositivos, buscando, assim, eximir a responsabilidade das escolas privadas com o direito fundamental à educação de parcela da sociedade civil, especificamente, nesse caso, de estudantes com deficiência. Diante de tal pedido da Confenen, a sociedade civil articulou-se em resposta e formou um dos maiores e mais engajados grupos de articulação na defesa do direito à educação para todos. Instituições de múltiplos perfis e até do próprio Poder Público, como a Defensoria do Estado de São Paulo, manifestaram interesse em 6 O guia está disponível em: . MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Nesse sentido, na atuação da FBASD, da qual pude participar, o uso de um guia sobre interdição parcial elaborado pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) foi de crucial importância no diálogo com os parlamentares6. 75 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA ingressar como amigos da corte (amicus curiae) na defesa da constitucionalidade dos dispositivos. A lista de amigos da corte na defesa da constitucionalidade dos dispositivos é amplamente representativa, como se evidencia abaixo7: - Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB); - Associação Nacional do Ministério Público de Defesa dos Direitos dos Idosos e Pessoa com Deficiência (AMPID); - Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down (FBASD); - Associação Movimento de Ação e Inovação Social (MAIS – Movimento Down/Movimento Zika); - Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas com Autismo (Abraça); - Federação Nacional das APAES (Fenapaes); - Organização Nacional de Cegos do Brasil (ONCB); - Federação das Fraternidades Cristãs de Pessoas com Deficiência do Brasil (FCD/BR); - Organização Nacional de Entidades de Deficientes Físicos no Brasil (ONEDEF); - Associação de Pais, Amigos e Pessoas com Deficiência, de Funcionários do Banco do Brasil e Comunidade (APABB); - Federação Nacional das Associações Pestalozzi; e - Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DP/SP). O Conselho Federal da OAB aprovou, por unanimidade, o ingresso, ao lado da defesa pela constitucionalidade, dos dispositivos da Lei Brasileira de Inclusão. A articulação para o ingresso mobilizou seccionais de diferentes estados e se materializou na solicitação de 7 Disponível em: . Acesso em: 18 ago. 2016. 76 pauta e votação pela seccional do estado do Piauí, com relatoria da seccional do Acre. A Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Ampid) promoveu o pedido de ingresso com petição digna de nota e reprodução. A Ampid tem sido incansável na defesa e promoção dos direitos das pessoas com deficiência e outros segmentos da sociedade civil. O Instituto Alana, que se destaca pela brava luta na defesa dos direitos da criança com absoluta prioridade no cenário constitucional pátrio, em construção coletiva, articulou-se com o Movimento Down e com a Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência da OAB/RJ para elaboração do pedido de ingresso, que contou com a participação voluntária e dedicada de diversos advogados e colaboradores. O pedido de ingresso com colaboração de todos foi representado pela Associação Movimento de Ação e Inovação Social (MAIS). O Instituto Brasileiro de Defesa dos Direitos das Famílias (IBDFAM) também manifestou, mediante petição, o desejo de participar, mas teve seu pedido negado devido ao não preenchimento de requisitos e exigências legais necessárias. Assim, embora, não tenha ingressado, restou evidente que a defesa da constitucionalidade era pauta a que todas as famílias do País estavam atentas. A elaboração do pedido de ingresso foi construída em conjunto com o Coletivo de Advogados do Rio de Janeiro (CDA/RJ), que atua na defesa dos direitos humanos e da democracia desde as manifestações de 2013. Foi um momento em que advogados se uniram coletivamente, imbuídos apenas pelo desejo de proteger e garantir os dispositivos constitucionais de liberdade de expressão e manifestação, num MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA A Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down (FBASD), com efetiva e contínua atuação há anos na defesa das pessoas com deficiência intelectual, solicitou ingresso na ADI a partir de iniciativas de seu Comitê Jurídico. 77 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA belo episódio de atuação da sociedade civil em prol de valores constitucionais, através da articulação dos segmentos civis frente ao desrespeito de garantias constitucionais por parte do aparato de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro, com episódios de prisões arbitrárias e dispersão violenta das manifestações. O presente artigo visa ressaltar não apenas o potencial de articulação com o poder constituído, em especial com o Ministério Público, mas também a atuação voluntária e altruísta (pro bono) de milhares de colaboradores, centenas de advogados e dezenas de escritórios na defesa de garantias constitucionais, como, por exemplo, o direito à educação ou manifestação para todas as pessoas, com ou sem deficiência. São pessoas que atuaram de forma absolutamente voluntária, motivadas apenas pelo senso de justiça e sentimento de igualdade material. Essas articulações da sociedade civil evidenciam o que há de melhor na natureza humana: a empatia, a alteridade e a atuação calcada na solidariedade e no amor. Considerações finais A conclusão resta evidente: a sociedade civil possui profunda relevância na efetivação de valores democráticos e constitucionais no Brasil. Há premente necessidade de se despertar a sociedade civil para um “empoderamento”, às vezes desconhecido por segmentos dessa mesma sociedade e de cujo alcance não têm consciência. Nesse sentido, a atuação do Ministério Público e de outros poderes constituídos é de grande relevância, por possibilitar uma ação mais efetiva e concreta. As associações e os coletivos estão crescendo e precisam seguir nesse tom, sobretudo num cenário de baixa efetividade e eficiência dos direitos constitucionais. Os direitos somente se consolidam de fato quando seus destinatários possuem consciência de que podem exigir seu cumprimento. 78 A falta de informação e a reduzida articulação da sociedade civil podem provocar perdas irreparáveis no ambiente democrático devido à descrença social e ao abandono da luta pela efetivação dos direitos, em especial, dos direitos humanos. O Ministério Público detém papel central no empoderamento da sociedade civil e posterior atuação coletiva com ela articulada. Essa centralidade decorre da possibilidade de efetivação de ferramentas como as recomendações, os ajustes de conduta e as ações civis públicas, que podem ser construídos com a mediação da sociedade civil em seus segmentos conexos à pauta específica. ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgilio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros. 2008. ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In: GENTILI, Pablo; SADER, Emir. Pós-neoliberalismo – as políticas sociais e o estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. ARATO, Andrew; COHEN, Jean. Sociedade civil e teoria social. In: AVRITZER, Leonardo (Coord.). Sociedade civil e democratização. Belo Horizonte: Livraria Del Rey, 1994. ARATO, Andrew. Uma reconstrução da teoria hegeliana da sociedade civil. In: AVRITZER, Leonardo (Coord.). Sociedade civil e democratização. Belo Horizonte: Livraria Del Rey, 1994. ARAÚJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional das pessoas portadoras de deficiência. Brasília: Corde, 1994. . (Coord.). Defesa dos direitos das pessoas portadoras de deficiência. São Paulo: RT, 2006. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. São Paulo: Malheiros, 1993. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Referências 79 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA BARROSO, Luís Roberto. O novo direito constitucional brasileiro. 2. reimpr. Belo Horizonte: Fórum, 2013. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. . O conceito de sociedade civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1987. BUEY, Francisco Fernández. Gramsci no mundo de hoje. In: COUTINHO, Carlos Nelson; TEIXEIRA, Andréa de Paula. Ler Gramsci, entender a realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. CAMPOY CERVERA, Ignacio. Los derechos de las personas con discapacidad: perspectivas sociales, políticas, jurídicas y filosoficas. Instituto de Derechos Humanos “Bartolomé de las Casas”. Universidad Carlos III de Madrid. Madrid: Dykinson, 2004. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1998. CHAMBERS, Simone. A critical theory of civil society. In: CHAMBERS, Simone; KYMLICKA, Will (Eds.). Alternative conceptions of civil society. Princeton: Princeton University Press, 2002. CHAMBERS, Simone; KYMLICKA, Will (Eds.). Alternative conceptions of civil society. Princeton: Princeton University Press, 2002. CHOMSKY, Noam. 11 de setembro. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. COHEN Jean; ARATO, Andrew. Sociedad civil y teoría política. México: Fondo de Cultura Económica, 2000. 80 COLÁS, Alejandro. International civil society: social movements in world politics. Cambridge: Polity Press, 2002. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. COUTINHO, Carlos Nelson; TEIXEIRA, Andréa de Paula. Ler Gramsci, entender a realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. FÁVERO, Eugênia Augusta Gonzaga. Direitos das pessoas com deficiência, garantia de igualdade na diversidade. 2. ed. Rio de Janeiro: WVA, 2007. FRADE, Carlos. La sociedad civil: una arena en disputa. In: BENEYTO, José Vidal (ed.). Hacia una sociedad civil global. Madrid: Taurus, 2003. FROST, Mervin. Constituting human rights: global civil society and the society of democratic states. London: Routledge, 2002. GARRISON, John W. Do confronto à colaboração: relações entre sociedade civil, o governo e o banco mundial no Brasil. Brasília: Banco Mundial, 2000. GIDDENS, Anthony. A terceira via: reflexões sobre o impasse político atual e o futuro da social-democracia. Rio de Janeiro: Record, 1999. GÓMEZ, José María. Política e democracia em tempos de globalização. Petrópolis: Vozes, 2000. . Entre potencialidades e limites, temores e esperanças – notas sobre a sociedade civil e a globalização. In: GARCIA, MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA COX, Robert W. Civil society at the turn of the millennium: prospects for an alternative world order. Review of international studies, v. 25, 1999. 81 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Joana et al. Sociedade e políticas: novos debates entre ONGs e universidade. Rio de Janeiro: Revan, 2003. GUGEL, Maria Aparecida; MACIEIRA, Waldir; RIBEIRO, Lauro. Deficiência no Brasil: uma abordagem integral dos direitos das pessoas com deficiência. Florianópolis: Obras Jurídicas, 2007. HAYEK, Friedrich August von. Direito, legislação e liberdade. São Paulo: Visão, 1985. 3 v. KALDOR, Mary. Global civil society: an answer to war. Cambridge: Polity Press, 2003. KEANE, John. Democracia y sociedad civil. Madrid: Alianza Editorial, 1992. . Global civil society? Cambridge: Cambridge University Press, 2003. LAVALLE, Adrián Gurza. Crítica ao modelo da nova sociedade civil. Lua Nova, v. 44, 1999. MADRUGA, Sidney. Pessoas com deficiência e direitos humanos: ótica da diferenciação e ações afirmativas. São Paulo: Saraiva, 2013. NUNES, Daniel Capecchi. Minorias no Supremo Tribunal Federal: entre a impermeabilidade constitucional e os diálogos com a cidadania. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017. PINHEIRO, Paulo Sérgio. Sociedade civil: a mágica e a sedução do conceito. In: AVRITZER, Leonardo (Coord.). Sociedade civil e democratização. Belo Horizonte: Livraria Del Rey, 1994. PRZEWORSKI, Adam. Capitalismo e social-democracia. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. PUTNAM, Robert D. Bowling alone: America’s declining social capital. Journal of Democracy, v. 6, n. 1, 1995. 82 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica: dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais e proibição do retrocesso social no direito constitucional brasileiro. In: MELLO, Celso Albuquerque; TORRES, Ricardo Lobo (Orgs.). Arquivos de Direitos Humanos. Rio de Janeiro, Renovar, v. 6, 2006. SASSAKI, Romeu Kazumi. Terminologia sobre deficiência na era da inclusão. Revista Nacional de Reabilitação, São Paulo, ano 5, n. 24, jan./fev. 2002. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA VIEIRA, Liszt. Os argonautas da cidadania: a sociedade civil na globalização. Rio de Janeiro: Record, 2001. 83 Pessoas com deficiência e seu direito fundamental à capacidade civil Ana Cláudia Mendes de Figueiredo1 Eugênia Augusta Gonzaga 2 A Lei n. 13.146/2015, que institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBIPD), também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, implementou importantes alterações e inovações no âmbito dos direitos das pessoas com deficiência, com o fim de adequar o ordenamento jurídico interno às diretrizes e aos princípios da Convenção da Organização das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) e seu Protocolo Facultativo. Tais documentos foram aprovados pelo Congresso Nacional mediante o Decreto Legislativo n. 186, de 9 de julho de 2008, conforme o procedimento previsto no § 3º do art. 5º da Constituição Federal – o que torna os seus preceitos equivalentes a emenda constitucional –, e promulgados por meio do Decreto n. 6.949, de 25 de agosto de 2009. Entre as significativas mudanças impostas por essa lei, são dignas de nota aquelas alusivas à disciplina da capacidade das pessoas, norteada, essa disciplina, pelo disposto no artigo 12 da Con1 Advogada e ex-assessora de Ministro no Supremo Tribunal Federal e Tribunal Superior do Trabalho. Graduada em Letras e Direito pelo UniCEUB – DF e pós-graduada em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade Cândido Mendes – RJ. 2 Procuradora Regional da República. Mestre em Direito Constitucional pela PUC/SP. Autora do livro Direitos das pessoas com deficiência, pela WVA Editora. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Introdução 85 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA venção em tela. Ele estatui expressamente que “as pessoas com deficiência gozam de capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida”. Com efeito, a LBIPD, em cumprimento aos tais termos da Convenção da ONU, não admite que as pessoas com deficiência sejam consideradas como incapazes civilmente unicamente em razão da deficiência. Nesse sentido, alterou preceitos do Código Civil e introduziu dispositivos nesse diploma legal que conferem capacidade civil plena à pessoa com deficiência 3 , cujo conceito, a partir da Convenção, deixou de ser pautado pelo modelo médico para ser orientado por um modelo social, “que incorpora na tipificação das deficiências, além dos aspectos f ísicos, sensoriais, intelectuais e mentais, a conjuntura social e cultural em que o cidadão com deficiência está inserido, vendo nestas o principal fator de cerceamento dos direitos humanos que lhe são inerentes”4 . A deficiência passa a ser compreendida a partir de avaliação biopsicossocial (LBIPD, art. 2º, § 1º) – realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar – dos impedimentos nas estruturas e funções do corpo, das limitações no desempenho das atividades da pessoa e da restrição da sua participação social 5 em igualdade de condições com as demais pessoas. A revolução havida, então, nesse âmbito, não decorreu de simples opção legislativa, mas da imprescindibilidade do estrito cumprimento do disposto na CDPD, a qual, além de determinar a observância, no plano interno, das suas normas, em face do seu caráter de norma constitucional, obriga o Brasil perante a comunidade internacional, uma vez que ratificada sem ressalvas pelo País. 3 De acordo com a Convenção – e a LBIPD –, consideram-se pessoas com deficiência “aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas” (artigo 1). 4 FONSECA, [s.d.]. Acesso em: 30 ago. 2016. 5 MAIOR, 2015, p. 32-43. Acesso em: 30 ago. 2016. 86 1 Síntese das alterações impostas à capacidade jurídica das pessoas com deficiência no ordenamento jurídico pátrio Também o art. 83 da mesma lei, destinado aos serviços notariais e de registro, afirma constituir discriminação em razão de deficiência a negativa ou a criação de óbices ou condições diferenciadas à prestação de seus serviços em razão de deficiência do solicitante, devendo ser reconhecida a sua capacidade legal plena e garantida a acessibilidade, tanto arquitetônica quanto a relativa à informação sobre o conteúdo do documento6. Esse novo paradigma, de reconhecimento da capacidade de direito e de fato às pessoas com deficiência, foi estendido, pela Lei n. 13.146/2015, aos arts. 3º e 4º do Código Civil, que dispõem, respectivamente, sobre as hipóteses de incapacidade absoluta e relativa. Para efetivar essa extensão, foram revogados os itens II e III do art. 3º da Lei n. 10.406/2002 (“os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos” 6 O acesso à informação e à comunicação deve ser assegurado por meio, por exemplo, da Língua Brasileira de Sinais (Libras), do Braille, do texto com linguagem simples e de todas as espécies de tecnologia assistiva ou ajuda técnica, consideradas como tais os “produtos, equipamentos, dispositivos, recursos, metodologias, estratégias, práticas e serviços que objetivem promover a funcionalidade, relacionada à atividade e à participação da pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida, visando à sua autonomia, independência, qualidade de vida e inclusão social” (LBIPD, art. 3º, III). MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Foi registrado categoricamente na LBIPD que “[a] deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa” (art. 6º) e que “[a] pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas” (art. 84). Desse modo, ela pode exercer todos os atos da vida civil, inclusive casar-se e constituir união estável, exercer o direito de decidir sobre o número de filhos, de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar, de exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção e de testemunhar, entre outros. 87 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA e “os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade”) e revogada também a segunda parte do inciso II do art. 4º dessa lei (“os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido”), bem como o inciso III desse mesmo preceito legal (“os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo”). A par dessas modificações, foram feitas mudanças também em relação à curatela (arts. 84 e 85 da LBIPD e 1.767 e seguintes do Código Civil) e introduzido, mediante os arts. 115 e 116 da LBIPD, o instituto da tomada de decisão apoiada (art. 1.783-A do Código Civil). 2 Valores e princípios fundantes do direito das pessoas com deficiência à capacidade civil plena As novas regras legais, que romperam com a identificação histórica entre deficiência e incapacidade civil, foram pautadas essencialmente nos princípios da CDPD, entre os quais o respeito à dignidade, que é inerente à autonomia individual e à liberdade de fazer as próprias escolhas. O direito à capacidade civil também está em consonância com os princípios da não discriminação, da plena e efetiva participação e inclusão na sociedade, da igualdade de oportunidades e da acessibilidade. Ocorre que essa mudança de paradigma vem sofrendo várias críticas e questionamentos no âmbito interno, não faltando iniciativas, inclusive legislativas, para promover um equivocado e inconstitucional retrocesso nesse campo. Vale, portanto, fazer constar aqui alguns esclarecimentos sobre esse reconhecimento do direito à capacidade das pessoas com deficiência. A luta pela capacidade plena é antiga e de vários grupos (escravos, pessoas sem patrimônio, analfabetos, mulheres, mulheres casadas), aos quais foi paulatinamente sendo reconhecido esse direito. 88 Isso não significou o desamparo absoluto de tais pessoas. Significou a elaboração, ainda que gradual, de normas que lhes asseguraram o exercício desse direito sem perda de outros e, principalmente, a conquista do direito humano fundamental de ser “moralmente livre”, de poder fazer valer a sua vontade interior, que é um componente ligado à própria dignidade das pessoas. Esse desejo de respeito às suas escolhas não é diferente para as pessoas com deficiência: A autonomia individual está associada com o “princípio de uma vida independente”, isto é, com a capacidade de homens e mulheres com deficiência controlarem pessoalmente seus múltiplos aspectos de vida tomando decisões e assumindo responsabilidades de modo a ascender aos bens materiais e imateriais inerentes a todos8. No caso das pessoas com deficiência e seus familiares, porém, essa luta tão cara é muito incompreendida e pouco divulgada. Ainda de acordo com Sidney Madruga, apenas em 1972 é que se registraram as primeiras iniciativas na defesa pela “capacidade das pessoas com deficiência”, vindas do Movimento de Vida Independente, segundo o qual “[…] a pessoa com deficiência é capaz, como qualquer outra, de administrar sua própria vida, tomar decisões, fazer escolhas e assumir seus desejos; tem, portanto, o poder, para fazer-se representar e ter voz própria nas questões que lhe dizem respeito”9. O mesmo autor explicita em outra oportunidade: vida independente, contudo, não se traduz em autonomia absoluta, senão autonomia moral. Não significa querer fazer tudo individual7 MADRUGA, 2013, p. 111. Há grifos também no original, pois o termo “moralmente livre” se refere à citação de Rafael de Lorenzo. 8 MADRUGA, 2013, p. 113. 9 MADRUGA, 2013, p. 113. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA O valor da autonomia […] se apoia na imagem implícita de uma pessoa moralmente livre 7. […] 89 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA mente, não necessitar de ninguém ou querer viver em isolamento, mas pleitear as mesmas opções e o mesmo controle de vida diária que os homens e mulheres sem deficiência. É querer, por exemplo, utilizar o transporte público, frequentar escolas, trabalhar, enfim exercer plenamente o exercício da cidadania, mediante a prática de atos da vida civil, dentre eles ascender a um cargo eletivo ou participar de qualquer processo de escolha10. Portanto, a CDPD, ao consagrar o reconhecimento da igualdade no campo da capacidade (artigo 12) e ao reconhecer, já no seu preâmbulo, “a importância, para as pessoas com deficiência, de sua autonomia e independência individuais, inclusive da liberdade para fazer as próprias escolhas”, albergou algo cuja necessidade era urgente para as pessoas com deficiência e seus familiares. É preciso, pois, impedir qualquer retrocesso nesse campo e buscar garantir que as instituições e políticas públicas sejam adaptadas e revistas para atender ao novo paradigma que, por seu turno, não implica retirar das pessoas com deficiência a proteção de que eventualmente necessitem, nem os benefícios historicamente conquistados. Como será visto, é plenamente possível conciliar capacidade com proteção. 3 Concretização, no direito interno, dos princípios e propósitos da Convenção da ONU Acerca das alterações inauguradas pela LBIPD, o civilista Flávio Tartuce afirma terem surgido duas correntes: de um lado, a da dignidade-vulnerabilidade, que abriga os que condenam a inclusão civil das pessoas com deficiência, assegurada pela nova Lei, “pois a dignidade de tais pessoas deveria ser resguardada por meio de sua proteção como vulneráveis”; de outro lado, a da dignidade-liberdade, perfilhada pelos defensores das inovações havidas em relação 10 MADRUGA, 2016. Acesso em: 24 jul. 2016. 90 Pensamos que a solução para a controvérsia instaurada não se encerra na opção por uma das correntes componentes da dicotomia apresentada, porquanto ao tempo em que a aludida Convenção anuncia o referido propósito – de promover, proteger e assegurar o exercício de todos os direitos humanos das pessoas com deficiência (artigo 1) –, afirma também que os Estados-Partes reconhecem o direito dessas pessoas à proteção social e “tomarão as medidas apropriadas para salvaguardar e promover a realização desse direito” (artigo 28), impondo a esses membros, ainda, como uma das obrigações gerais, “[l]evar em conta, em todos os programas e políticas, a proteção e a promoção dos direitos humanos das pessoas com deficiência” (artigo 4, item 1, letra “c”). Objetivando, então, as modificações realizadas pelo legislador nacional, a materialização dos referidos princípios e propósitos da Convenção de New York, em todos os seus matizes, não se pode compreender que o reconhecimento de capacidade às pessoas com deficiência – em igualdade de condições com as demais pessoas – implique a retirada da proteção legal até então concedida. 3.1 O direito à capacidade civil e suas implicações Um dos argumentos que se coloca frequentemente para se negar às pessoas com deficiência o reconhecimento da capacidade civil é o de que, como “incapazes”, seriam destinatárias de benef ícios legais e teriam uma proteção legal maior, necessária para evitar que viessem a ser ludibriadas em negócios jurídicos. Isso porque, nessa condição, estariam acobertadas por normas que es11 TARTUCE, 2015. Acesso em: 15 jul. 2016. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA à temática da capacidade, em razão, acima de tudo, do propósito estabelecido na CDPD, de “promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente”11. 91 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA tabelecem benef ícios e garantias – como o direito à pensão por morte, não contagem de prazo prescricional e outros –, implicando o reconhecimento do direito à capacidade civil, assim, a perda de tais benef ícios e proteção. 3.1.1 A desnecessidade de interdição para o recebimento de benefícios previdenciários ou assistenciais No que tange ao primeiro aspecto, não tem sido levado em conta que toda a legislação envolvendo a pessoa com deficiência já vinha sendo paulatinamente alterada para afastar a necessidade de decreto de “incapacidade” para o acesso a muitos benef ícios legais. As normas aplicáveis à concessão de benefícios previdenciários ou assistenciais, pagos pelo INSS, não mais se reportam a incapacidade, mas a deficiência. A Lei n. 8.742/1993 (LOAS), em seu art. 20, já não define como incapaz pessoa com deficiência12, pois foi alterada para se amoldar à Convenção da ONU. A Lei n. 8.213/1991, ao indicar quem são os “dependentes” dos segurados, no Regime Geral de Previdência, arrola, além das pessoas “inválidas” para o trabalho, as pessoas com deficiência intelectual, mental ou com deficiência grave, independentemente de declaração judicial. Portanto, não há mais a menor coincidência entre deficiência e incapacidade para fins de recebimento de pensão por morte no âmbito do Regime Geral de Previdência. Assim, as autoridades que ainda exigem decreto de interdição para que uma pessoa com deficiência obtenha um dos benefícios mencionados estão em rota de colisão com todas essas alterações legislativas e com as normas constitucionais introduzidas no ordenamento jurídico pátrio a partir da ratificação da CDPD. 12 Desde a Lei n. 12.435/2011, a LOAS não mais considera como critério de elegibilidade para a percepção do benefício de prestação continuada a incapacidade para a vida independente e para o trabalho. 92 3.1.2 Autonomia e proteção: compatibilidade em situações de vulnerabilidade Há de se delinear aqui algumas distinções que permitem estender com justiça e equidade as mencionadas normas protetivas. A LBIPD permite que se avistem no seu texto três cenários no tocante ao exercício da capacidade civil: 2) pessoas com deficiência que, por precisarem de apoio, promovem, perante o Judiciário, o procedimento de tomada de decisão apoiada; 3) pessoas com deficiência que não conseguem expressar a sua vontade e que, por essa razão, precisam se submeter à curatela, limitada pelo juiz, cumpre lembrar, ao “menor tempo possível” e às questões patrimoniais e negociais. As primeiras, que independem do veredito do Judiciário, em procedimento de tomada de decisão apoiada ou de curatela, não serão destinatárias dos benefícios reservados à proteção daqueles dois outros grupos de pessoas com deficiência, denominadas, até a edição da LBIPD, de “incapazes” civilmente. As pessoas do primeiro grupo continuarão a fazer jus tão somente aos benefícios tradicionalmente assegurados a elas, quando atendidos, além da condição da deficiência, outros requisitos (como o da miserabilidade). São exemplos o benefício da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) e o da Lei do Passe Livre. As demais pessoas com deficiência, submetidas à tomada de decisão apoiada (item 2) ou à curatela (item 3), necessitam do amparo do Estado – e de pessoas próximas – para o exercício da sua capaci- MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA 1) pessoas com deficiência que não se socorrem do Judiciário para a obtenção de apoio ao exercício da capacidade civil, por não necessitarem, e que tampouco são submetidas à curatela; 93 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA dade plena. Como buscam a tutela do Poder Público em razão da sua vulnerabilidade, são merecedoras da especial proteção legal. Conforme nos esclarece o magistério de Arlene Kanter, se a pessoa precisa de proteção, que seja dado o apoio, mas sem lhe retirar o direito à capacidade13. Também Wederson Santos reporta-se à inovação das concepções da Convenção, assinalando o reconhecimento da “autonomia com apoio” como uma das razões para tal inovação14. Enfim, ambos os instrumentos, aplicados e interpretados em sintonia com os princípios do não retrocesso e da igualdade, não podem afastar garantias legais já conferidas às pessoas com deficiência anteriormente consideradas “incapazes civilmente”, sendo plenamente compatível, nas duas últimas hipóteses, a manutenção de tais garantias com o direito fundamental das pessoas com deficiência à capacidade civil. Compreensão distinta significaria esvaziar o instituto da tomada de decisão apoiada, uma vez que a maioria das famílias das pessoas com deficiência desestimularia a opção por esse procedimento. De fato, afastadas as normas protetivas, ficariam à própria sorte aquelas pessoas com deficiência que até pouco tempo eram passíveis de ser acobertadas pela proteção que acompanhava a “interdição” parcial ou total. Também o reconhecimento da capacidade plena não impede a intervenção do Ministério Público. Essa é imprescindível se o processo tem como uma das partes uma pessoa com deficiência e o mérito da ação tem algum tipo de relação com a deficiência. Essa intervenção já era exigida desde 1989, independentemente da existência de curatela, nos termos do art. 5º da Lei n. 7.853/1989, mantido pela LBIPD: “O Ministério Público intervirá obrigatoriamente nas ações públicas, coletivas ou individuais, em que se discutam interesses relacionados à deficiência das pessoas”. Ou seja, tal intervenção, em 13 KANTER, 2015. 14 SANTOS, 2010, p. 133. 94 se tratando de pessoas com deficiência, não decorre do disposto no art. 82, inciso I, do Código de Processo Civil (ou do art. 178, inciso II, do Código de Processo Civil de 2015, que se refere a causas em que há interesses de incapazes), mas da legislação específica. Por fim, mas não menos importante, é imprescindível a formulação do pedido de tomada de decisão apoiada, pelas pessoas com deficiência referidas no item 2, a fim de que possam exercer, devidamente apoiadas, sua capacidade civil e de que, em face da condição de vulnerabilidade, sejam contempladas pelas normas legais a que fariam jus caso houvessem sido submetidas à curatela. 4 O apego à curatela e a resistência à tomada de decisão apoiada É importante nos determos, nessa quadra, nos argumentos de alguns doutrinadores de que a curatela asseguraria maior proteção à pessoa com deficiência e de que a tomada de decisão apoiada somente seria passível de ser adotada, no caso da deficiência intelectual e mental, se as limitações fossem pouquíssimas. É fato que as legislações civil e processual civil ainda precisam de ajustes e complementos que as tornem plenamente consentâneas com o novo paradigma da capacidade. Não obstante a existência de lacunas e inconsistências nas normas relativas ao tema, seria possível aos operadores do Direito conferir a tais normas uma interpretação progressiva, alinhada com os princípios da CDPD. Entretanto, o que vem ocorrendo na prática é a extensão da curatela a qualquer caso de “discernimento reduzido” e não a sua MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Por todos esses argumentos, não há razão para privar as pessoas com deficiência do direito à capacidade plena, do direito de serem consideradas moralmente autônomas, como todos os demais seres humanos. 95 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA aplicação, como medida excepcional, apenas a pessoas com impossibilidade de manifestação da vontade. Tais operadores do Direito, mesmo que por razões altruístas, estão desconectados dos objetivos mundiais de reconhecimento do direito de todas as pessoas com deficiência à capacidade15. Até mesmo a opção do legislador brasileiro pela curatela – nos casos em que a pessoa não pode exprimir a vontade – já foi severamente criticada no âmbito da ONU, em seu respectivo comitê de acompanhamento. Esse comitê foi criado exatamente para debater os progressos alcançados e as lacunas existentes na aplicação das normas atinentes às pessoas com deficiência, previstas nos países que ratificaram a CDPD. O Brasil teve seu relatório inicial avaliado em 4 de setembro de 2015, ou seja, após a promulgação da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, e, com base em tal norma, o comitê assim se manifestou: Referente ao previsto no art. 12, o Comitê demonstrou grande preocupação que, mesmo com a Lei Brasileira de Inclusão, houve poucos avanços no reconhecimento pleno da capacidade das pessoas com deficiência […]. O Comitê está preocupado que a legislação do Estado Parte ainda preveja a tomada substitutiva de decisão em algumas circunstâncias. Isto é contrário ao artigo 12 da Convenção, conforme explicação no Comentário Geral N. 1 do Comitê (2014) sobre igual reconhecimento perante a lei. O Comitê também está preocupado que os procedimentos de tomada de decisão apoiada requeiram aprovação judicial e não deem primazia à autonomia, vontade e preferências das pessoas com deficiência. O Comitê insta o Estado Parte a retirar todas as disposições legais que perpetuem o sistema de tomada de decisão substitutiva. 15 Cf. posição da International Disability Alliance acerca da implementação, pelos EstadosMembros, do artigo 12 da CDPD. Disponível em: . Acesso em: 7 set. 2016. 96 Também recomenda que, em consulta com as organizações de pessoas com deficiência e outros prestadores de serviços, o Estado Parte adote medidas concretas para substituir o sistema de tomada de decisão substitutiva por um modelo de tomada de decisão apoiada, que defenda a autonomia, vontade e preferências das pessoas com deficiência em plena conformidade com o artigo 12 da Convenção. Insta ainda que todas as pessoas com deficiência que estejam atualmente sob tutela sejam devidamente informadas sobre o novo regime legal e que o exercício do direito de tomada de decisão apoiada seja garantido em todos os casos16. Logo, é de rigor que operadores do Direito e executores das políticas públicas – e por que não dizer toda a sociedade – abracem o novo modelo e encontrem, na legislação em vigor, as soluções que a vida diária exige, sem retrocessos quanto às proteções legais já existentes ou negação do direito fundamental ao exercício da capacidade civil. Esse exercício, como visto, pode se dar de forma apoiada e a manifestação da pessoa com deficiência ocorrer por meio de impressões digitais, de comunicação alternativa ou por qualquer outra forma que demonstre a sua ciência e concordância, enfim, a sua participação no ato. 5 Caminhos para o exercício da capacidade plena O legislador pátrio assegurou, em sintonia com a CDPD (artigo 12), a tomada de decisão apoiada e salvaguardas “apropriadas e efetivas”, destinadas à proteção de pessoas com deficiência, optando por manter, em caráter extraordinário, a curatela. 16 Íntegra das observações do Comitê em: . Acesso em: 29 jul. 2016. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Como se vê, as alterações produzidas pela LBIPD, tão contestadas no âmbito interno, são, na verdade, tímidas de acordo com as observações do Comitê da ONU. 97 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Independentemente da medida adotada, tanto o apoiador quanto o curador precisam agir de acordo com a vontade da pessoa com deficiência, porque o artigo 12, item 4, da Convenção da ONU exige o respeito aos direitos, à vontade e às preferências da pessoa. A referida orientação não é inexequível. Mesmo uma pessoa sem condições de manifestar a sua vontade tem uma história de vida que pode demonstrar suas inclinações e permitir que se saiba o que gostaria que fosse feito nesta ou naquela hipótese. Portanto, inclusive nesses casos, o curador precisará, sempre que solicitado, explicar a coerência das suas decisões com os potenciais desejos do curatelado. 5.1 A tomada de decisão apoiada A CDPD determina, no item 3 do sempre citado artigo 12, que os “Estados-Partes tomarão medidas apropriadas para prover o acesso de pessoas com deficiência ao apoio que necessitarem no exercício de sua capacidade legal”. Nessa linha, a legislação criou o instituto da “tomada de decisão apoiada”. A tomada de decisão apoiada consiste em instrumento hábil a permitir que as pessoas com deficiência possam decidir por si mesmas os rumos da sua vida, com o auxílio, para tanto, de apoiadores de sua preferência. Trata-se de instrumento apto a garantir protagonismo a essas pessoas. É um instituto bastante amplo17 – cujos termos e prazo de vigência podem ser negociados – e suscetível de ser utilizado por pessoas com deficiência intelectual e mental, ainda que grave, desde que, consoante o Estatuto, consigam exprimir (de qualquer modo) a vontade. 17 A ausência de limites subjetivos no texto legal, contudo, não pode amparar o pleito de pessoas com deficiência que, visando apenas à incidência de normas protetivas, ingressem com pedido de tomada de decisão apoiada sem efetivamente necessitar de apoio para o exercício da capacidade civil, o que será decerto avaliado na audiência em que apreciado o pedido. 98 Esse procedimento18, facultado às pessoas com deficiência (art. 84, § 2º, da LBIPD), encontra-se previsto no art. 116 da LBIPD, que acrescenta ao Código Civil o art. 1.783-A, de seguinte teor: Art. 1.783-A - A tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade. § 2º O pedido de tomada de decisão apoiada será requerido pela pessoa a ser apoiada, com indicação expressa das pessoas aptas a prestarem o apoio previsto no caput deste artigo. § 3º Antes de se pronunciar sobre o pedido de tomada de decisão apoiada, o juiz, assistido por equipe multidisciplinar, após oitiva do Ministério Público, ouvirá pessoalmente o requerente e as pessoas que lhe prestarão apoio. § 4º A decisão tomada por pessoa apoiada terá validade e efeitos sobre terceiros, sem restrições, desde que esteja inserida nos limites do apoio acordado. § 5º Terceiro com quem a pessoa apoiada mantenha relação negocial pode solicitar que os apoiadores contra-assinem o contrato ou acordo, especificando, por escrito, sua função em relação ao apoiado. 18 Não obstante a LBIPD faça alusão a processo, a tomada de decisão apoiada não configura, no sentido técnico do termo, consoante doutrina tradicional, um “processo”. Para Carreira Alvim, adepto dessa corrente tradicional, na tomada de decisão apoiada “não existe exercício de jurisdição, tratando-se de mero procedimento entre pessoas interessadas (não partes) e o Estado juiz, encarregado de fazer o papel de verdadeiro administrador judicial em assunto de interesse privado, verdadeira ‘administração pública de interesses privados’”. (ALVIM, 2015, p. 8396). MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA § 1º Para formular pedido de tomada de decisão apoiada, a pessoa com deficiência e os apoiadores devem apresentar termo em que constem os limites do apoio a ser oferecido e os compromissos dos apoiadores, inclusive o prazo de vigência do acordo e o respeito à vontade, aos direitos e aos interesses da pessoa que devem apoiar. 99 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA § 6º Em caso de negócio jurídico que possa trazer risco ou prejuízo relevante, havendo divergência de opiniões entre a pessoa apoiada e um dos apoiadores, deverá o juiz, ouvido o Ministério Público, decidir sobre a questão. § 7º Se o apoiador agir com negligência, exercer pressão indevida ou não adimplir as obrigações assumidas, poderá a pessoa apoiada ou qualquer pessoa apresentar denúncia ao Ministério Público ou ao juiz. § 8º Se procedente a denúncia, o juiz destituirá o apoiador e nomeará, ouvida a pessoa apoiada e se for de seu interesse, outra pessoa para prestação de apoio. § 9º A pessoa apoiada pode, a qualquer tempo, solicitar o término de acordo firmado em processo de tomada de decisão apoiada. § 10. O apoiador pode solicitar ao juiz a exclusão de sua participação do processo de tomada de decisão apoiada, sendo seu desligamento condicionado à manifestação do juiz sobre a matéria. § 11. Aplicam-se à tomada de decisão apoiada, no que couber, as disposições referentes à prestação de contas na curatela. O presente texto da lei é consentâneo com os princípios constitucionais e deve ser aplicado à luz de princípios de vanguarda que regem o processo civil, segundo os quais o processo é um instrumento de cooperação entre todos os sujeitos19 e um meio para o resguardo e a promoção da dignidade da pessoa humana. Em tal modelo, o juiz, em audiência preferencialmente concentrada, ouvirá, além do requerente e dos dois apoiadores eleitos, o Ministério Público e uma equipe multidisciplinar20. Nessa audiência, será objeto de apreciação o termo do acordo pelo qual serão definidos os limites do apoio (os atos para os quais ele será necessário), 19 Sobre esse vetor cooperativo, cf. DIDIER JUNIOR, 2010. 20 É importante que componham essa equipe multidisciplinar também os profissionais que acompanham a saúde da pessoa com deficiência. 100 o prazo de vigência21, os apoiadores e os respectivos compromissos, entre os quais o relativo ao “respeito à vontade, aos direitos e aos interesses da pessoa que devem apoiar”. Assim, um ato negocial, abrangido no citado termo, não poderia ser reputado válido se praticado sem os apoiadores porque, embora a pessoa detenha, por força da lei, capacidade plena, o apoio idealizado pela Convenção e pela LBIPD, justamente para resguardar os interesses da pessoa com deficiência, estaria sendo ignorado. Ainda que seja dispensável a contra-assinatura dos apoiadores (art. 1.783-A, § 5º, do Código Civil), é imprescindível a presença destes, por ocasião da celebração do negócio, para tornar inequívoco o imprescindível fornecimento “de elementos e informações necessários” ao exercício, pela pessoa com deficiência, da capacidade (caput do art. 1.783-A do Código Civil). Entendimento diverso implicaria esvaziar o valor desse apoio legal, tornando inútil essa medida protetiva. Também é recomendável, embora não explicitado na lei, que conste do termo de tomada de decisão apoiada a especificação, 21 A periodicidade da revisão da medida tem sido tratada de forma variada pelas leis dos diferentes países. No Brasil, o legislador optou por incluir no âmbito dos aspectos passíveis de serem acordados o período de vigência, pelo que o prazo respectivo pode ser fixado pelos acordantes, inclusive como medida duradoura naqueles casos em que é reduzida a possibilidade de a pessoa com deficiência vir a praticar, sem apoio, os atos abrangidos no termo. Reforça a compreensão quanto à possibilidade de estabelecimento de prazo indeterminado para a tomada de decisão apoiada o disposto no artigo 405 do Código Civil italiano, lembrado por Maurício Requião (2015): “[V]. Il decreto di nomina dell’amministratore di sostegno deve contenere l’indicazione: […] 2. della durata dell’incarico, che può essere anche a tempo indeterminato” (artigo 405, V, 2). Acesso em: 5 set. 2016. 22 Perfilha entendimento diverso Flávio Tartuce in Parecer ao Projeto de Lei do Senado Federal n. 757/2015. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Uma vez homologado o termo da tomada de decisão apoiada, é muito importante que se proceda ao seu registro, e respectivos limites, no Registro Civil das Pessoas Naturais22. Desse modo, terceiros interessados em negociar com pessoas com deficiência teriam ciência, fácil e antecipadamente, sobre os atos para os quais se faz ou não necessária a presença dos apoiadores. 101 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA sempre com a inequívoca ciência da pessoa com deficiência interessada, das pessoas que substituirão os apoiadores indicados na hipótese de ausência desses, bem como a especificação também de detalhes delicados, tais como a vontade do requerente em situações de possível internação ou de tratamentos mais invasivos (como transfusão de sangue, eletrochoque etc.), em caso de absoluta e justificada necessidade23. Não há delimitação na LBIPD, igualmente, quanto aos atos civis em relação aos quais é viável estabelecer apoio, podendo o termo definir, por exemplo, um ato específico, como a venda de um imóvel, ou vários atos negociais, como transações financeiras acima de determinado valor, bem como a autorização para uma cirurgia ou tratamento de maior complexidade. Reiteramos que limitar a adoção da tomada de decisão apoiada apenas às pessoas com deficiência que têm discernimento quanto às consequências dos atos civis implicaria desprezo aos princípios da igualdade e da dignidade humana, orientadores de toda a Convenção, e desvalorização de parte significativa do rol de direitos assegurados na CDPD – a exemplo do direito de votar e de ser votado, de exercer cargo público, de casar etc. –, os quais pressupõem, para seu exercício, a capacidade de agir. Considerados, em uma interpretação sistêmica, os princípios e objetivos da CDPD, não resta dúvida de que a capacidade plena é a regra para as pessoas com deficiência e de que a tomada de decisão apoiada – tanto porque mantida a plenitude da capacidade da pessoa, quanto porque privilegiada sua autonomia nos atos decisórios –, deve, nos casos em que imprescindível o apoio, ter primazia em relação à curatela, situação em que a capacidade do curatelado, conforme o Código Civil, é relativa e a sua decisão substituída. A maior conscientização das pessoas com deficiência e das suas famílias, bem como 23 Cf. item 14 do documento da International Disability Alliance: Principles for Implementation of CRPD Article 12. Disponível em: . Acesso em: 7 set. 2016. 102 dos advogados, defensores e membros do Ministério Público, aliada à atuação jurisdicional, tende a conduzir à ineficácia social da curatela, apesar de vigente, por desuso24. Ausente a opção pela tomada de decisão apoiada, é imperativo compreender os termos da curatela decretada, sob a vigência da legislação anterior, em conformidade com as novas disposições da LBIPD. A esse respeito assenta Pablo Stolze: Não sendo o caso de se intentar o levantamento da interdição ou se ingressar com novo pedido de tomada de decisão apoiada, os termos de curatela já lavrados e expedidos continuam válidos, embora a sua eficácia esteja limitada aos termos do Estatuto, ou seja, deverão ser interpretados em nova perspectiva, para justificar a legitimidade e autorizar o curador apenas quanto à prática de atos patrimoniais25. 5.2 A curatela A curatela – tradicionalmente conhecida como instrumento pelo qual o curador, nomeado pelo juiz na ação de interdição, representa o interditado, substituindo-lhe nas manifestações de vontade nos limites em que decretada a incapacidade desse – constitui hoje, após a vigência da LBIPD, “medida protetiva, extraordinária, propor- 24 DINIZ, 2016, p. 263-288. 25 STOLZE, 2016. Acesso em: 25 jul. 2016. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Como o procedimento de tomada de decisão apoiada, por diversas razões, ainda não tem sido utilizado largamente – diferentemente do que ainda ocorre com os processos de interdição/curatela –, é imprescindível a suspensão desses processos em andamento para que seja concedida às pessoas com deficiência a oportunidade de optar pela tomada de decisão apoiada. A mesma oportunidade de opção deve ser paulatinamente assegurada àqueles que já tiveram decretada a sua interdição parcial ou total. 103 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA cional às necessidades e às circunstâncias de cada caso, e durará o menor tempo possível” (art. 85, § 3º, da LBIPD). O instituto foi completamente alterado, tendo se tornado absolutamente provisório e excepcional, reservado aos casos de impossibilidade de expressão da vontade. Além disso, a curatela, a ser adotada quando necessário, diz respeito apenas a “atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial” (art. 85), não alcançando mais, como antes, o direito ao trabalho, ao matrimônio, ao voto, entre outros (art. 85, § 1º, da LBIPD). Reveste-se, por expressa disposição legal, além do referido caráter extraordinário (art. 85, § 2º, da LBIPD), também de natureza protetiva (art. 84, § 3º, da LBIPD), norteada unicamente pelo dever de respeito aos interesses do curatelado, que se concretiza, entre outros aspectos, pela isenção de conflito de interesses e de influência indevida (artigo 4 da CDPD). Impõe-se considerar, ainda, a proporcionalidade da medida “às necessidades e às circunstâncias de cada caso”. Por essa razão, a curatela referente às pessoas com deficiência assumiu, na LBIPD, o caráter de “medida extraordinária”, a ser adotada apenas nos casos em que a pessoa não puder exprimir sua vontade (art. 4º, III), confirmada a citada excepcionalidade pelo § 1º do art. 84, ao estabelecer que, “[q]uando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela, conforme a lei”. Apenas, portanto, na hipótese de os potenciais apoiadores – familiares ou outras pessoas da confiança – não conseguirem apreender a vontade da pessoa com deficiência, no sentido de requerer a tomada de decisão apoiada, é que a curatela será utilizada e ainda assim pelo menor tempo possível. A nova roupagem conferida ao instituto demanda, pois, um olhar mais rigoroso para as hipóteses de seu cabimento. Nem se alegue que a impossibilidade de expressão da vontade pode se confundir com “discernimento reduzido” ou falta de “discer104 O discernimento é, em sua essência, subjetivo, não se admitindo que o discernimento de um ser humano possa ser considerado superior ao do outro. Quando a CDPD e a LBIPD exigem que sejam respeitadas a vontade e as escolhas da pessoa com deficiência – sempre lhes garantindo apoios e o direito ao erro27 –, é porque houve significativa mudança do modelo de capacidade e de paradigma, conforme já esclarecido nos itens de introdução deste estudo. Entre as alterações introduzidas pelo estatuto, citamos, finalmente, a inclusão da possibilidade de promoção do processo que define os termos da curatela pela própria pessoa (art. 1.768, inciso IV, do CC); a curatela compartilhada (art. 1.775-A do CC); a participação de equipe multidisciplinar no processo (art. 1.771 do CC); e, sempre, a prevalência da vontade e das preferências da pessoa com deficiência, bem como a preponderância da convivência familiar e comunitária (art. 1.777 do CC). 26 A solução para os vários problemas apontados por renomados civilistas para situações que envolvem pessoas que se encontram, independentemente da condição de deficiência, “impossibilitadas de expressar sua vontade por algum motivo de saúde, a exemplo de um estado de coma hospitalar” – referidas, tais situações, na justificação ao PLS n. 757/2015 –, há de ser encontrada em esfera não abrangida por aquela em que albergadas, pela CDPD, as pessoas com deficiência. 27 O direito de aprender com os próprios erros é o que ocorre em relação a bens e valores menores, cuja eventual dilapidação não afetaria significativamente o patrimônio da pessoa com deficiência, que teria os atos de disposição dos seus bens de maior valor resguardados, por exemplo, por termo de tomada de decisão apoiada. Para tanto, é imprescindível fazer constar do aludido termo a necessidade de apoio às questões negociais e patrimoniais de maior relevo, consoante o entender da pessoa com deficiência e dos seus apoiadores. Agreguem-se a essa proteção o abrigo legal propiciado ao pródigo e o proporcionado por outros instrumentos tradicionais de proteção do patrimônio. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA nimento”. Se o legislador não quisesse fazer distinção entre vontade e discernimento, não teria alterado o Código Civil para excluir das hipóteses ensejadoras do reconhecimento da incapacidade absoluta a ausência de discernimento (excluída do art. 3º da Lei n. 10.406/2002) e das hipóteses relativas à incapacidade relativa o discernimento reduzido (excluído do art. 4º da Lei n. 10.406/2002)26. A adoção daquele entendimento lança por terra todos os princípios mencionados, albergados pela CDPD. 105 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Conclusão: a mudança de paradigma e seus desafios Inequivocamente, a profunda reforma implementada pela LBIPD na teoria das capacidades e o reerguimento de nova disciplina, no que tange à pessoa com deficiência, dignificante e igualitária, reclama a desconstrução da incrustada percepção social – vigente no Brasil durante tão longo tempo – de que a deficiência se encontra intrinsecamente vinculada à invalidez e à incapacidade. Tal desconstrução, por sua vez, somente é suscetível de acontecer mediante a compreensão das razões do consenso entre os Estados subscritores da CDPD em torno do seu artigo 12 e subsequente sensibilização e conscientização da sociedade, pelo Poder Público, a fim de que essa, imbuída do seu dever de solidariedade, contribua para a efetivação dos direitos assegurados às pessoas com deficiência. O contexto inédito delineado pela LBIPD impõe ao Poder Público conscientizar a sociedade, especialmente as pessoas com deficiência, inclusive intelectual e mental, e suas famílias, acerca das implicações das mudanças advindas quanto a essa temática, a partir da ratificação da CDPD, para que essas pessoas, que sempre estiveram à margem do direito ao exercício da capacidade, possam exercer esse direito com segurança. O êxito na aplicação das novas regras depende da informação plena dos envolvidos. Cabe ainda ao Estado promover a compatibilização da LBIPD com o Código de Processo Civil, conformando às previsões da CDPD as normas que, ainda vigentes, inviabilizam o exercício da capacidade jurídica por parte das pessoas com deficiência ou impedem essas pessoas de usufruir direitos, praticar atos jurídicos ou assumir responsabilidades em razão da deficiência. 106 O novo cenário também demanda empenho dos advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, no sentido de vindicar ao Poder Judiciário que confira à LBIPD interpretação harmô- nica com os princípios da autonomia, independência, dignidade da pessoa humana e isonomia gravados na CDPD. O regramento recentemente inaugurado requer, por outro lado, intenso esforço das pessoas com deficiência, organizações representativas, familiares e profissionais vinculados ao tema, no sentido de buscar vencer os grandes desafios que se desenharão na prática e de se apropriar de toda a gama de direitos surgida com a edição da LBIPD. Referências ALVIM, José Eduardo Carreira. Tomada de decisão apoiada. Revista Brasileira de Direito Penal, Belo Horizonte, ano 23, n. 92, p. 8396, out./dez. 2015. DIDIER JUNIOR, Fredie. Fundamentos do princípio da cooperação no direito processual civil português. Coimbra: Wolters Kluwer, 2010. DINIZ, Maria Helena. A nova teoria das incapacidades. Revista Thesis Juris, São Paulo, v. 5, n. 2, p. 263-288, maio/ago. 2016. FONSECA, Ricardo Tadeu Marques da. O conceito revolucionário da pessoa com deficiência. Porto Alegre: Smacis, [s.d.]. Disponível em: . KANTER, Arlene. The development of disability rights under international law: from charity to human rights. Syracuse: Routledge, 2015. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA O contexto inaugurado pela CDPD, disciplinado recentemente pela LBIPD, requer, pois, uma atuação firme e proativa de todos – governo, sociedade, famílias e pessoas com deficiência –, no sentido de, em homenagem ao princípio da solidariedade social, efetivar os direitos dessas pessoas, a fim de que possam exercer a capacidade plena que lhes foi conferida. 107 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA MADRUGA, Sidney. A Lei Brasileira de Inclusão e a capacidade eleitoral das pessoas com deficiência mental grave. Jota, Brasília, 22 jul. 2016. Disponível em: . . Pessoas com deficiência e direitos humanos: ótica da diferença e ações afirmativas. São Paulo: Saraiva, 2013. MAIOR, Izabel de Loureiro. Quem são as pessoas com deficiência: novo conceito trazido pela convenção da ONU. Revista Científica Virtual da Escola Superior de Advocacia da OAB-SP, n. 20, p. 32-43, 2015. Disponível em: . REQUIÃO, Maurício. Conheça a tomada de decisão apoiada, novo regime alternativo à curatela. Consultor Jurídico, São Paulo, 14 set. 2015. Disponível em: . SANTOS, Wederson. Deficiência, desigualdade e assistência social. In: DINIZ, Debora (Org.). Deficiência e discriminação. Brasília: Letras Livres; UnB, 2010. STOLZE, Pablo. É o fim da interdição? Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 21, n. 4.605, 9 fev. 2016. Disponível em: . TARTUCE, Flávio. Alterações no Código Civil pela Lei 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Repercussões para o Direito de Família e confrontações com o novo CPC. Parte II. Migalhas, 26 ago. 2015. Disponível em: . 108 Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e o paradigma da inclusão André de Carvalho Ramos1 Este artigo objetiva analisar os principais delineamentos normativos da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (também chamada de Convenção de Nova Iorque, de 2006)2. Esse tema deve ser prioridade nacional e internacional: calcula-se que 10% da população mundial possua alguma deficiência (aproximadamente 700 milhões de pessoas)3. As pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de natureza física, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas4. A “deficiência” significa uma restrição física, mental ou sensorial, de natureza permanente ou transitória, que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades essenciais da vida diária, causada ou agravada pelo 1 Procurador Regional da República. Professor do Departamento de Direito Internacional e Comparado e do Programa de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da USP (Largo São Francisco). Doutor e Livre-Docente em Direito Internacional (USP). 2 Este artigo baseia-se, com atualização, em estudo anterior do autor publicado em: CARVALHO RAMOS, André. Linguagem dos direitos e a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. In: ANJOS FILHO, Robério Nunes dos (Org.). Direitos humanos e direitos fundamentais. Diálogos contemporâneos. Salvador: JusPodivm, 2013, p. 11-37. 3 Disponível em: . Acesso em: 13 jun. 2016. 4 Art. 1º da Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Introdução 109 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA ambiente econômico e social 5. Os dados sobre a situação social das pessoas com deficiência são alarmantes, uma vez que a deficiência agrava eventual situação de vulnerabilidade já existente. Como lembra Mckay, a ONU considera as pessoas com deficiência “the world´s largest minority”6. Não basta, então, simplesmente consagrar a igualdade formal de todos: é indispensável que haja previsões normativas específicas para suplantar situações graves de desigualdade e vulnerabilidade. Por isso, desde os anos sessenta do século XX, com a Convenção das Nações Unidas sobre a Eliminação de Toda Forma de Discriminação Racial (1965), os Estados reconhecem a necessidade de elaboração normativa específica para determinados grupos vulneráveis, para dar (I) visibilidade à temática (primeiro passo para o agir social); (II) foco; e (III) corrigir situações históricas de trato desigual e discriminatório. A situação de vulnerabilidade é evidente para esse grupo de pessoas, historicamente marginalizadas ou mesmo perseguidas. Na atualidade da realidade brasileira, há vários exemplos de desrespeito à igualdade material e discriminação das pessoas com deficiência: os inúmeros relatos de pais que recebem da escola a recusa de matrícula ou mesmo o “convite” para retirar o filho cuja deficiência foi detectada evidenciam que a “era das discriminações” não acabou. A falta de acesso educacional adequado marcará toda a vida da pessoa com deficiência, gerando outras exclusões (do mercado de trabalho, da vida social etc.), em um ciclo vicioso de segregação e inferiorização. 5 Art. 1º, 1, da Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência, incorporada internamente pelo Decreto n. 3.956/2001. Ver ainda a Standard Rules em Normas Uniformes sobre Igualdade de Oportunidades para as Pessoas Portadoras de Deficiência da ONU (Resolução AG. 48/96, de 20.12.1993). 6 MCKAY, p. 323-332, em especial p. 325. 110 A desconsideração da pessoa com deficiência torna-se mais gritante quando comparamos seu tratamento com a atenção que os grupos majoritários recebem. Uma escola – pública ou privada – que não forneça cadeira, espaço mínimo na sala de aula, professores com preparo, entre outros, será certamente criticada – e com razão. Diante disso, vê-se a urgência de estabelecimento de dispositivos específicos para o trato desse grupo vulnerável. Se os grupos majoritários já percebem – há algum tempo – o trato discriminatório de gênero (v.g., mulheres), de raça (v.g., os afrodescendentes), de religião (v.g., os casos do antissemitismo e da islamofobia), o mesmo não ocorre, ainda, com o trato diferenciado e inferiorizante às pessoas com deficiência. Não é incomum, como já mencionei, a falta de políticas públicas específicas adequadas (vide o caso dos transtornos do espectro autista, que somente no final de 2012 foi objeto de regulamentação legal7) e o puro descumprimento de regras de acessibilidade básicas, como, por exemplo, em locais de votação eleitoral no Brasil. Assim, a proposta do artigo é analisar o modelo adotado pela Convenção de trato às pessoas com deficiência, que é o “modelo de direitos humanos”, em substituição ao chamado “modelo médico”. Após, abordaremos algumas facetas da Convenção, com ênfase nos direitos à igualdade e à educação. Por fim, trataremos do delineamento do sistema de supervisão e controle das obrigações do Estado, para que essa Convenção possa realmente fazer a diferença e dar um pouco mais de igualdade aos diferentes. 7 Lei n. 12.764, de 27 de dezembro de 2012, que institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Por que não tecer as mesmas críticas à escola que não se prepara para receber as crianças com deficiência? 111 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA 1 Rumo à ratificação brasileira da Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência 1.1 O passado do Direito Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência: entre a insuficiência e a soft law O Direito Internacional dos Direitos Humanos é entendido como o conjunto de direitos e faculdades que garante a dignidade da pessoa humana e se beneficia de garantias internacionais institucionalizadas8. No caso das pessoas com deficiência, havia, até a edição da Convenção da ONU sobre Direitos das Pessoas com Deficiência, em 2007, vários diplomas normativos específicos não vinculantes sobre os direitos das pessoas com deficiência, que compunham a chamada soft law, indicando o desejo dos Estados de, no futuro, aceitar seu caráter obrigatório. Por isso, a soft law é vista como “direito em formação” e não somente como normas de exortação moral9. Podem ser citados como exemplo, entre outros diplomas normativos, a Declaração das Nações Unidas dos Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiência10, o Programa Mundial de Ação para as Pessoas Portadoras de Deficiência, aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas11, as Normas Uniformes sobre Igualdade de Oportunidades para as Pessoas Portadoras de Deficiência12, a Declaração de Viena e o Programa de Ação aprovados pela Conferência Mundial sobre Direitos Humanos em 1993, a Resolução sobre a situação das pessoas por8 CARVALHO RAMOS, 2016a, p. 31. 9 Sobre a soft law e os direitos humanos, ver CARVALHO RAMOS, 2016b, p. 62. 10 Resolução n. 3.447, de 9 de dezembro de 1975. 11 Resolução n. 37/52, de 3 de dezembro de 1982. 12 Resolução n. 48/96, de 20 de dezembro de 1993 (Standard Rules). 112 tadoras de deficiência no Hemisfério Americano (Res. n. 1.356, da Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos – OEA) e, finalmente, o Compromisso do Panamá com as Pessoas Portadoras de Deficiência no Continente Americano. Por isso, uma convenção específica serve para confrontar a sociedade – inclusive com recurso a instâncias internacionais, no caso da omissão local – com a necessidade de implementação de direitos tidos como já assegurados a todos (direito de ir e vir, por exemplo) 14 . Além disso, a especificidade da situação das pessoas com deficiência também justifica a edição de uma Convenção própria. Não se trata apenas de repetir os direitos elencados nas convenções gerais, como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, mas de focar nas situações que as pessoas com deficiencia enfrentam para fazer valer tais direitos. Com a especificidade, vem também a clarificação do conteúdo aplicado dos direitos e até mesmo a 13 Houve a interposição de Mandado de Segurança Coletivo Preventivo, pela Associação dos Policiais Militares Deficientes Físicos do Estado de São Paulo, para combater o possível cerceamento do direito de votar das pessoas com deficiência. Entretanto, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) denegou a ordem, sustentando que a Resolução-TSE n. 21.920/2004 não impede a pessoa com deficiência de exercer o direito de votar; antes, faculta-lhe o de requerer, motivadamente, a dispensa da obrigação, dadas as peculiaridades de sua situação. Ver mais em Mandado de Segurança Coletivo n. 3.203, rel. min. Humberto Gomes de Barros, j. 3.11.2005, v.u., DJ 9 dez. 2005, p. 142. 14 Ver os mecanismos internacionais de proteção dos direitos humanos em CARVALHO RAMOS, 2016a. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Contudo, inexistia tratado geral específico sobre as pessoas com deficiência, o que em muito ajudaria para eliminar a invisibilidade das demandas envolvendo tais direitos. Mesmo quando há notícia pública da marginalização, o senso comum a considera como fruto da condição individual (modelo médico da deficiência) e não do contexto social. Por exemplo, no caso brasileiro, a inacessibilidade de alguns locais de votação no Brasil teve como resposta a edição de resolução do Tribunal Superior Eleitoral desonerando os eleitores com deficiência de votar, ao invés de exigir a adaptação desses locais13. 113 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA coleta de dados e estatísticas mais confiáveis sobre a situação das pessoas com deficiência. Foram necessários, todavia, quase vinte anos para que essa Convenção fosse finalmente redigida. O passo inicial foi dado em 1987, quando a Suécia e a Itália se tornaram os primeiros Estados a lançar a ideia de redação de uma convenção internacional específica sobre os direitos das pessoas com deficiência. Contudo, houve resistências de alguns Estados (Alemanha, Noruega, Japão, entre outros), que alegaram que um novo tratado de direitos humanos não seria necessário, pois os já existentes, mesmo que não específicos, forneceriam adequada proteção às pessoas com deficiência15. Apesar da resistência, o então relator especial da Organização das Nações Unidas, Leandro Despouy, ao analisar, no início dos anos noventa do século passado, a situação geral das pessoas com deficiência, apontou sua situação de vulnerabilidade e a urgência de implementação específica dos seus direitos. Em 1993, Despouy produziu relatório no qual denunciou que as pessoas com deficiência estavam em situação jurídica inferior, no plano internacional, à dos demais grupos vulneráveis (mulheres, refugiados, trabalhadores migrantes, crianças etc.). De fato, esses últimos grupos já possuíam a proteção de tratados internacionais específicos, bem como seus próprios órgãos internacionais de supervisão e tutela16. Apesar de o “Relatório Despouy” não ter advogado expressamente a favor da criação de uma nova convenção internacional, ficou claro, pelo seu teor, que as violações dos direitos das pessoas com deficiência possuíam peculiaridades que não eram levadas em consideração pelos mecanismos de monitoramento de direitos humanos existentes até o momento. Por isso, foi feita recomendação expressa na Conferência das Nações Unidas contra toda forma de discriminação e xenofobia 15 LAWSON, 2006-2007, p. 563-620, em especial p. 586. 16 DESPOUY, 1993, parágrafo 280. Ver o texto, ainda atual 25 anos depois, em . Último acesso em: 13 jun. 2016. 114 (DURBAN, 2001) para que fosse elaborada uma nova convenção internacional específica sobre os direitos das pessoas com deficiência. Em seguida, a ONU e o Governo do México convidaram especialistas, entre eles o autor deste artigo, para reunião preparatória de elaboração de projeto de convenção internacional voltada aos direitos das pessoas com deficiência (Cidade do México, junho de 2002). Houve intensa participação dos Estados, de especialistas em direitos humanos e ainda de representantes das organizações não governamentais de pessoas com deficiência, de acordo o lema “nothing about Us without Us” – “Nada sobre Nós sem Nós”17. Após cinco anos de negociação, em dezembro de 2006, a Assembleia Geral aprovou o texto do tratado e o colocou à disposição dos Estados para assinatura e ratificação. Finalmente, em 13 de dezembro de 2006, foi adotada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (UNCRPD, na sigla em inglês). A Convenção possui cinquenta artigos, não divididos em partes específicas, e seu Protocolo Facultativo, que diz respeito ao reconhecimento da competência do Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência para receber petições individuais, possui dezoito artigos. A Convenção entrou em vigor em maio de 2008, trinta dias após o depósito do 20º instrumento de ratificação ou adesão. Essa Convenção é o primeiro tratado universal de direitos humanos do século XXI, além de ser o primeiro tratado celebrado, sob os auspícios da ONU, sobre os direitos das pessoas com deficiência. A Convenção 17 Esse lema da Organização das Nações Unidas coroa o dia 3 de dezembro, que, em 1992, foi considerado pela ONU o Dia Internacional das Pessoas com Deficiência. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Inicialmente, a Assembleia Geral da ONU estabeleceu, em dezembro de 2001, o Comitê ad hoc para que fosse analisada a possibilidade de edição de um tratado específico para promover os direitos das pessoas com deficiência. 115 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA possui hoje 164 Estados-Partes (dados de 2016)18 e o Protocolo Facultativo possui 89 Estados-Partes19. 1.2 A aprovação da Convenção como equivalente a emenda constitucional no Brasil O Brasil assinou a Convenção e o Protocolo Facultativo em 30 de março de 2007 e os ratificou em 1º de agosto de 2008. A mensagem presidencial n. 711, que encaminhou o pedido de aprovação congressual ao texto da Convenção, solicitou que a aprovação fosse feita de acordo com o rito especial do art. 5º, parágrafo terceiro, da Constituição (introduzido pela EC n. 45/2004), o que foi atendido pelo Congresso Nacional. O Decreto Legislativo n. 186/2008 atestou, em seu art. 1º, que “fica aprovado, nos termos do § 3º do art. 5º da Constituição Federal, o texto da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova Iorque, em 30 de março de 2007”. Após, houve a promulgação pelo Decreto Presidencial n. 6.949, de 25 de agosto de 2009. O art. 5º, § 3º, da Constituição determina que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. Foge ao escopo deste artigo analisar, passo a passo, as consequências do estatuto equivalente a emenda constitucional do “modelo de direitos humanos” no trato às pessoas com deficiência. Serão, por certo, inúmeras: desde a possibilidade de provocação do Supremo Tribunal Federal no seu papel de guardião da Constituição (ofensa ao bloco de constitucionalidade) até a revogação (ou não recepção) pura e simples de normas infraconstitucionais atuais incompatíveis com o novo modelo. 18 Dados disponíveis em: . Acesso em: 13 jun. 2016. 19 Dados disponíveis em: . Acesso em: 13 jun. 2016. 116 2 O giro copernicano: do paradigma médico para o paradigma dos direitos No Brasil, a aprovação da Convenção, em 2008, pelo rito especial do art. 5º, § 3º, levando-a ao estatuto normativo equivalente a emenda constitucional, gerou uma atualização constitucional da denominação para “pessoa com deficiência”, que deve ser o termo utilizado. A luta pela implementação dos direitos das pessoas com deficiência desembocou, no século XXI, na fase da chamada “linguagem dos direitos”. Para Bengt Lindqvist, ex-relator especial sobre as pessoas com deficiência das Nações Unidas, a luta pela afirmação dos direitos das pessoas com deficiência passa pelo reconhecimento que a sua situação de desigualdade e exclusão é verdadeira violação de direitos humanos. Por isso, Lindqvist conclamava que “[d]isability is a human rights issue. I repeat: disability is a human rights issue”20. A frase critica veladamente o chamado medical model, ou modelo médico da abordagem da situação das pessoas com deficiência, que vê a deficiência como um “defeito” que necessita de tratamento ou cura. As pessoas com deficiência deveriam se adaptar à vida social e se preparar para serem “curadas”, e a atenção da 20 Bengt Lindqvist, ex-relator especial sobre as pessoas portadoras de deficiência das Nações Unidas, citado em QUINN; DEGENER, 2002, p. 20. Em reunião preparatória da futura Convenção da ONU sobre os direitos das pessoas com deficiência, Lindqvist, na presença do autor deste artigo, constantemente usava essa expressão. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Devemos aqui expor pequena observação sobre a terminologia utilizada. A expressão “pessoa portadora de deficiência” é usada pela Constituição brasileira (art. 7º, inc. XXXI; art. 23, inc. II; art. 24, inc. XIV; art. 37, inc. VIII; art. 203, inc. IV; art. 203, inc. V; art. 208, inc. III; art. 227, § 1º, inc. II; art. 227, § 2º; art. 244). O termo “portadora”, porém, realça o “portador” como se fosse possível deixar de ter a deficiência. Assim, o termo adotado pela Organização das Nações Unidas é “pessoas com deficiência” (persons with disabilities), conforme consta da Standard Rules e da Convenção da ONU de 2006. 117 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA sociedade e do Estado, então, voltava-se ao reconhecimento dos problemas de integração da pessoa com deficiência para que esta desenvolvesse estratégias para minimizar os efeitos da deficiência em sua vida cotidiana. A adoção deste modelo gerou falta de atenção às práticas sociais que agravavam as condições de vida das pessoas com deficiência, tendo como consequências pobreza, invisibilidade e perpetuação dos seus estereótipos como destinatárias da caridade pública (e piedade compungida), negando-lhes a titularidade de direitos como seres humanos. Além disso, como a deficiência era vista como “defeito pessoal”, a adoção de uma política pública de inclusão não era necessária. Nas palavras de Quinn e Degener, o modelo médico focuses on persons’ medical traits such as their specific impairments. This has the effect of locating the “problem” of disability within the person. The medical model encapsulates a broader and deeper social attitude – a tendency to problematize the person and view him/her as an object for clinical intervention21. Já o modelo de direitos humanos (ou modelo social) vê a pessoa com deficiência como ser humano, utilizando o dado médico apenas para definir suas necessidades. A principal característica desse modelo é sua abordagem de “gozo dos direitos sem discriminação”. Esse princípio de antidiscriminação acarreta a reflexão sobre a necessidade de políticas públicas para que seja assegurada a igualdade material, consolidando a responsabilidade do Estado e da sociedade na eliminação das barreiras à efetiva fruição dos direitos do ser humano. Não se trata mais de exigir da pessoa com deficiência a sua adaptação, mas sim de exigir, com base na dignidade humana, que a sociedade trate seus diferentes de modo a assegurar a igualdade 21 QUINN; DEGENER, 2002, p. 15. 118 material, eliminando as barreiras a sua plena inclusão. Ao referir-se ao modelo de direitos humanos, sustenta Kanter que [t]his model recognizes the inherent equality of all people, regardless of disabilities or differences. It also recognizes society’s obligation to support the freedom and equality of all individuals, including those who may need appropriate social supports22. [t]he links between poverty and disability go two ways – not only does disability add to the risk of poverty, but conditions of poverty add to the risk of disability. Poor households do not have adequate food, basic sanitation, and access to preventive health care. They live in lower quality housing, and work in more dangerous occupations23. Por isso, estabelecer políticas de inclusão focadas nos direitos das pessoas com deficiência leva à redução da pobreza e, especialmente, ao aumento da produtividade social dessas pessoas que, outrora, ficariam à margem da sociedade. Como pontua Stienstra, em outro estudo do Banco Mundial, [w]ith disabled people invisible in development initiatives, hundreds of thousands of people who see themselves as potential and willing contributors to family and national economic activity are instead relegated to the margins of society where they are a perceived and actual burden. The result can be devastating, both to the individual and to the economy24. 22 KANTER, 2003, p. 241-270, em especial p. 247. 23 Ver em ELWAN, 1999. 24 Ver STIENSTRA et al., 2002. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA O modelo de direitos humanos de trato às inúmeras questões envolvendo as pessoas com deficiência, além de ser o único compatível com a promoção da dignidade, igualdade e liberdade, é ainda economicamente adequado. Estudos do Banco Mundial revelam a estreita relação da pobreza com a deficiência, tanto em relação a eventuais riscos agregados quanto à dificuldade de sobrevivência no mínimo existencial. Para Elwan, em uma análise do Banco Mundial, 119 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Os esforços recentes da sociedade internacional revelam preferência pelo modelo de direitos humanos, como demonstra a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Esse modelo reafirma a igualdade inerente entre todos os seres humanos, estabelecida pela já sexagenária Declaração Universal de Direitos Humanos. Além disso, reconhece-se a obrigação do Estado e de toda a sociedade de promover a vida digna de todos os seres humanos, sem preconceitos ou estereótipos, para incluir especialmente os diferentes. No Direito Comparado, a adoção do modelo de direitos humanos também atingiu as legislações domésticas, em uma verdadeira globalização dos direitos das pessoas com deficiência. Não há consenso nessas leis locais, entretanto, sobre a abrangência dos direitos ou mesmo quanto à definição de deficiência25. Considerando a deficiência uma construção social gerada por comparação ao que é normalmente esperado, fica claro que as comunidades nacionais podem ter diferentes percepções jurídicas sobre o que vem a ser uma pessoa com deficiência. Assim, salutar o esforço da ONU e dos Estados que já ratificaram a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência no sentido de universalizar os direitos dessas pessoas. 3 A Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência: primeiras considerações 3.1 A adoção do modelo de direitos humanos e o conceito de pessoa com deficiência Consta do preâmbulo da Convenção que a deficiência é considerada um conceito social (e não médico) em evolução, resultante 25 KANTER, 2003, p. 241-270. 120 da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas (preâmbulo, item “e”). Na parte final do artigo 1º, por sua vez, a Convenção estabelece que pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de natureza física, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas. O conceito de deficiência adotado pela ONU na Convenção de 2006 afastou-se, então, daquilo que constava das Standard Rules da própria ONU, nas quais o termo “deficiência” significava uma restrição física, mental ou sensorial, de natureza permanente ou transitória, que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades essenciais da vida diária, causada ou agravada pelo ambiente econômico e social 26. Na leitura de Ricardo Fonseca, o novo conceito é revolucionário, pois não acata, de modo único, a chamada “conceituação clínica” das deficiências, que via a deficiência como uma incapacidade física, mental ou sensorial. De acordo com o autor citado, [a] intenção acatada pelo corpo diplomático dos Estados Membros, após longas discussões, consiste no deslocamento do conceito para a combinação entre esses elementos médicos com os fatores 26 Ver Standard Rules em Normas Uniformes sobre Igualdade de Oportunidades para as Pessoas Portadoras de Deficiência (Resolução AG. 48/96, de 20 de dezembro de 1993). MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Nesse sentido, na primeira parte do artigo 1º, a Convenção adota expressamente o modelo de direitos humanos visto acima, ao estabelecer que seu propósito é promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência, e promover o respeito pela sua dignidade inerente. 121 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA sociais, cujo efeito é determinante para o exercício dos direitos pelos cidadãos com deficiência. Evidencia-se, então, a percepção de que a deficiência está na sociedade, não nos atributos dos cidadãos que apresentem impedimentos físicos, mentais, intelectuais ou sensoriais. Na medida em que as sociedades removam essas barreiras culturais, tecnológicas, físicas e atitudinais, as pessoas com impedimentos têm assegurada ou não a sua cidadania 27. A menção ao novo conceito abrangente de pessoa com deficiência na Convenção foi adotada após superação de resistências. Alguns delegados dos Estados defenderam a adoção de um conceito específico, pois temiam que esse conceito amplo pudesse ocasionar, no futuro, interpretações locais que excluíssem determinadas pessoas do grupo de pessoas com deficiência. Prevaleceu, porém, a visão daqueles (inclusive do Chairman do Comitê, Don Mackay) que defenderam o conceito amplo como um modo de realçar a opção pelo “modelo de direitos humanos” e de permitir que novas inclusões no grupo de pessoas com deficiência fossem possíveis. 3.2 A Convenção em seu conjunto A espinha dorsal da Convenção é o seu compromisso com a dignidade e os direitos das pessoas com deficiência, que são tidas como titulares dos direitos e não como objeto ou alvo da compaixão pública. Já no preâmbulo da Convenção, ficou estabelecido que, com base na Declaração Universal dos Direitos Humanos e nos Pactos Internacionais sobre Direitos Humanos, toda pessoa faz jus a todos os direitos e liberdades ali estabelecidos, sem distinção de qualquer espécie, bem como que é necessário garantir que todas as pessoas com deficiência os exerçam plenamente, sem discriminação. Essa visão da Convenção das pessoas com deficiência como rights holders abrange os direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais, inclusive o direito a um padrão mínimo de vida, 27 FONSECA, 2012. 122 reafirmando as características da universalidade, indivisibilidade e interdependência do regime jurídico dos direitos humanos no plano internacional 28. Além dos 26 parágrafos de seu preâmbulo, a Convenção é regida pelos vários princípios estabelecidos no artigo 3º, em especial o princípio do respeito pela dignidade humana, pela autonomia individual e a independência das pessoas. A Convenção, em um claro desejo de reforço e explicitação, fez menção ainda ao princípio da não discriminação; à igualdade entre o homem e a mulher e à igualdade de oportunidades; à plena e efetiva participação e inclusão na sociedade; ao respeito pela diferença e pela aceitação das pessoas com deficiência como parte da diversidade humana e da humanidade; à acessibilidade e ao respeito pelo desenvolvimento das capacidades das crianças com deficiência, às quais é assegurado o direito de preservar sua identidade. Apesar da eventual redundância, os redatores preferiram a reiteração para estimular o cumprimento da convenção sem brecha ou lacuna. A aceitação dos princípios como fonte do Direito não é novidade no Direito Internacional. Os princípios gerais de Direito são considerados fontes do Direito Internacional e constam do rol do artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça. A estrutura principiológica das normas de direitos humanos exige, por si só, a concretização judicial para superar sua abstração e vagueza. Conforme sustenta Dauses, os princípios representam normas vinculantes, embora de caráter geral e altamente abstrato, sendo que delas podem ser derivados, pela via judicial, direitos e obrigações em um caso concreto29. Com isso, vê-se que os princípios da Convenção 28 Sobre as características do regime jurídico dos direitos humanos no plano internacional, ver CARVALHO RAMOS, 2016b. 29 DAUSES, 1984, p. 401-424, em especial p. 409. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA 3.3 Os princípios diretivos da Convenção 123 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA de 2006 têm inegável força normativa, em especial para direcionar o aplicador a interpretar todo o ordenamento jurídico (dado o caráter constitucional da Convenção no Brasil) no sentido da inclusão das pessoas com deficiência. 3.4 As obrigações dos Estados O Direito Internacional dos Direitos Humanos é caracterizado pela sua natureza objetiva: os Estados devem ou deveriam saber que assumem deveres, pois os direitos são dos indivíduos. Assim, não há a natureza sinalagmática tradicional do Direito dos Tratados. A Convenção em análise não foge à regra geral30. De acordo com o texto, os Estados contratantes assumirão as duas obrigações tradicionais em tratados de direitos humanos: (I) a obrigação de respeito; e (II) a obrigação de garantia. A obrigação de respeito consiste no compromisso do Estado em não violar os direitos da Convenção. Conforme já sustentei em obra anterior, [e]ssa obrigação de respeito concretiza uma obrigação de não-fazer, que se traduz na limitação do poder público face aos direitos do indivíduo. Como já assinalou a Corte Interamericana, o exercício da função pública tem limites que derivam dos direitos humanos, atributos inerentes à dignidade humana e, em conseqüência, superiores ao poder do Estado. Ainda segundo a Corte Interamericana, trata-se de dever de caráter eminentemente negativo, um dever de abster-se de condutas que importem em violações de direitos humanos 31. [Grifos no original]. A obrigação de garantia, por sua vez, consiste no compromisso dos Estados em assegurar e promover o pleno exercício de todos os 30 Sobre a natureza objetiva de um tratado de direitos humanos, ver mais em CARVALHO RAMOS, 2016b, em especial p. 123. 31 CARVALHO RAMOS, 2016b, em especial p. 276-277. 124 Assim, cabe ao Brasil adotar todas as medidas legislativas, administrativas e de qualquer outra natureza, necessárias para a realização dos direitos reconhecidos, bem como eliminar os dispositivos e práticas que constituírem discriminação contra pessoas com deficiência. Em síntese, deve o Estado abster-se de participar em qualquer ato ou prática incompatível com a Convenção e assegurar que as autoridades públicas e instituições atuem em conformidade com o seu texto, além de tomar todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação baseada em deficiência, por parte de qualquer pessoa, organização ou empresa privada. Assim, dada a natureza de norma constitucional da Convenção no Brasil, os direitos das pessoas com deficiência agora possuem eficácia imediata perante particulares, sem qualquer necessidade de intermediação legislativa (eficácia mediata). 3.5 O direito à igualdade e o combate à discriminação O artigo 5º da Convenção estabelece que todas as pessoas são iguais perante e sob a lei, e que fazem jus, sem qualquer discri32 Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Velásquez Rodríguez - Mérito, sentença de 29 de julho de 1988, Série C, n. 4, parágrafo 166. Ver mais comentários sobre esse caso em CARVALHO RAMOS, 2001. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência, sem qualquer tipo de discriminação. Sobre esse tema, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao analisar a Convenção Americana de Direitos Humanos, determinou que a obrigação de garantia manifesta-se de forma preponderantemente positiva, tendo por conteúdo o dever dos Estados-Partes de organizarem o “aparato governamental e, em geral, todas as estruturas através das quais se manifesta o exercício do poder público, de maneira tal que sejam capazes de assegurar juridicamente o livre e pleno exercício dos direitos humanos”32. 125 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA minação, a igual proteção e igual benefício da lei. Além disso, os Estados devem proibir qualquer discriminação baseada na deficiência e garantirão às pessoas com deficiência igual e efetiva proteção legal contra a discriminação por qualquer motivo. Assim, a Convenção alinha-se com a tradição humanista de defesa da igualdade. De fato, a consagração filosófica da igualdade entre os homens tem antecedentes históricos remotos na Antiguidade grega e, como expoentes mais recentes, os iluministas, de Locke a Rousseau, cujos ensinamentos relativos à liberdade e igualdade dos homens até hoje repercutem em textos normativos de direitos humanos. Um exemplo desse legado teórico está expresso na primeira afirmação da sexagenária Declaração Universal dos Diretos Humanos – todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos –, muito similar à frase inicial do Capítulo I do clássico Do Contrato Social, de Rousseau, na qual afirma que o homem nasceu livre 33. Todavia, em que pese o intenso esforço de positivação, a afirmação dos direitos humanos enfrenta desafios neste século XXI, que é marcado pela globalização e pelo aumento das tensões entre, de um lado, o delineamento de uma cidadania pós-nacional e, de outro, o acirramento da xenofobia e discriminações das mais diversas espécies, notadamente contra as pessoas com deficiência. Neste século XXI, a Convenção zela pelo reconhecimento de direitos para todos (a igualdade formal dos clássicos do século XIX), mas sem se descurar dos instrumentos de promoção da igualdade material em uma sociedade plural. Esta sociedade plural é marcada pela afirmação das diferenças, que não pode, no entanto, gerar guetos e incomunicabilidade entre grupos ou culturas, sob pena de naturalizar a desigualdade de trato. No Brasil, cabe sempre lembrar que a Constituição de 1988 estruturou um Estado Democrático e Social de Direito, com a missão de construir uma sociedade livre, justa e solidária e promover o bem33 ROUSSEAU, 1996, p. 17. 126 -estar de todos, sem qualquer forma de preconceito e discriminação. Ao tratar da Constituição e do direito à igualdade das pessoas com deficiência, Luiz Alberto David Araújo ensina que, Na sociedade deste Estado Democrático e Social de Direito, busca-se que todas as pessoas tenham acesso equânime às oportunidades, e que a igualdade na diferença constitua um vetor de elaboração normativa e execução de políticas públicas. Nesse sentido, merecem destaque os trabalhos de Boaventura de Sousa Santos, que caracteriza a ordem igualitária como sendo aquela na qual “as pessoas têm o direito a ser iguais quando a diferença os inferioriza e direito a ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza”35. Se não há nenhuma razão suficiente para a permissão de um tratamento desigual, então está ordenado o tratamento igual. Por isso a Convenção estabelece que, a fim de promover a igualdade e eliminar a discriminação, os Estados-Partes adotarão todas as medidas apropriadas para garantir que a adaptação razoável seja oferecida. Consequentemente, as medidas específicas que forem necessárias para acelerar ou alcançar a efetiva igualdade das pessoas com deficiência não serão consideradas discriminatórias. Nesse contexto, a Convenção reconhece a possibilidade de os Estados adotarem as chamadas ações afirmativas. Para Joaquim Barbosa Gomes, as ações afirmativas podem ser definidas como sendo um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à dis34 ARAUJO, 2006, p. 207-219, em especial p. 208. 35 SANTOS, 2001, p. 89. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA […] ao lado da igualdade formal, trouxe a igualdade material, demonstrando que determinadas pessoas, categorias, enfim, alguns grupos mereceriam uma proteção especial […]. O sistema, portanto, tratou de proteger determinados grupos para que, assim agindo, equiparasse ou, ao menos, tentasse diminuir as diferenças desses grupos com os demais 34. 127 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA criminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego36. Como salienta o citado autor, as ações afirmativas diferem das tradicionais políticas governamentais antidiscriminatórias baseadas em leis de conteúdo meramente proibitivo, em geral de caráter penal, que são caracterizadas por oferecerem às respectivas vítimas tão somente instrumentos jurídicos de caráter reparatório e de intervenção post facto. Pelo contrário, as ações afirmativas objetivam fornecer condições estruturais de mudança social, evitando que a discriminação continue por meio de mecanismos informais, enraizados nas práticas culturais e no imaginário coletivo. Em síntese, nas palavras de Joaquim Barbosa, é imprescindível a adoção de políticas e de mecanismos de inclusão concebidos por entidades públicas, privadas e por órgãos dotados de competência jurisdicional, com vistas à concretização de um objetivo constitucional universalmente reconhecido – o da efetiva igualdade de oportunidades que todos os seres humanos têm direito37. Por essa razão, para dar efetividade à igualdade, há a necessidade de uma conduta ativa visando a diminuição das desigualdades e a inclusão dos grupos vulneráveis. Ao afirmar a meta da igualdade material, a Convenção faz clara opção pela sociedade inclusiva. 3.6 Direito à educação e a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.357 No artigo 24 da Convenção, ficou consagrado o direito das pessoas com deficiência à educação. Para efetivar esse direito sem discriminação e com base na igualdade de oportunidades, os Estados 36 GOMES, 2001, p. 40-41. 37 GOMES, 2001, p. 41. 128 Para tanto, a Convenção é explícita em estabelecer que as pessoas com deficiência não podem ser excluídas do sistema educacional geral sob alegação de deficiência. Assim, as crianças com deficiência não podem ser excluídas do ensino primário gratuito e compulsório ou do ensino secundário, sob as tradicionais (e infelizes) alegações de que “não acompanham” e que “atrapalham o desenvolvimento da matéria e os demais alunos”. Consequentemente, as pessoas com deficiência devem ter acesso ao ensino fundamental inclusivo, de qualidade e gratuito, e ao ensino médio, em igualdade de condições com as demais pessoas na comunidade em que vivem, tendo que ser garantidas as adaptações de acordo com as necessidades individuais. Por isso, consta da Convenção que as pessoas com deficiência devem receber o apoio necessário, no âmbito do sistema educacional geral, com vistas a facilitar sua efetiva educação, devendo ser adotadas as medidas de apoio individualizadas e efetivas em ambientes que maximizem o desenvolvimento acadêmico e social, de acordo com a meta de inclusão plena. A aplicação desses comandos da Convenção será tarefa hercúlea. De fato, conforme demonstra a experiência, tem-se observado graves ofensas a esse direito. São frequentes as recusas de matrículas sob o argumento de que a escola não está “preparada” para as necessidades de aluno com deficiência. A alegada falta de preparação vai desde a parte MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA assegurarão sistema educacional inclusivo em todos os níveis, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida, para que seja obtido: 1) o pleno desenvolvimento do potencial humano e do senso de dignidade e autoestima, além do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pela diversidade humana; 2) o máximo desenvolvimento possível da personalidade, dos talentos e da criatividade das pessoas com deficiência, assim como de suas habilidades físicas e intelectuais; e, finalmente, 3) a participação efetiva das pessoas com deficiência em uma sociedade livre. 129 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA arquitetônica até a falta de recursos didáticos e inadequação do método de ensino. Por outro lado, muitas vezes, as pessoas com deficiência, principalmente a mental, são matriculadas em escolas regulares, que as recebem com a expectativa que elas tenham um desempenho o mais próximo possível do aluno dito “normal”. Caso esse desempenho não ocorra, a criança é “convidada” a retirar-se e encaminhada para a chamada escola especial. Na maioria das vezes, na escola especial, a criança ou adolescente com deficiência fica isolado da sociedade em geral. Tais condutas violam a nova Convenção da ONU. Os alunos com deficiência têm o direito de matricular-se em escolas regulares (regular schools), devendo o Estado assegurar o preparo material e humano para tanto. Mesmo as antigas Standard Rules da ONU (soft law, como vimos acima) estabelecem que “States should recognize the principle of equal primary, secondary and tertiary educational opportunities for children, youth and adults with disabilities, in integrated settings”. Com isso, não é mais possível negar a qualquer pessoa com deficiência o acesso à escola regular38. Como defende Eugênia Gonzaga, a diversidade na sala de aula é possível, e o mais importante, salutar, pois todos ganham: os alunos com deficiência e os alunos sem qualquer necessidade especial, que percebem, já na escola, a diversidade da sociedade à qual pertencem39. Assim, a Convenção garante a educação para todos, em todos os níveis e de forma igualitária (em um mesmo ambiente), de modo a atingir o pleno desenvolvimento humano e o preparo para a cidadania das pessoas com ou sem deficiência. Para que as pessoas com deficiência possam exercer esse direito em sua plenitude, é indispensável, portanto, que a escola (e não o aluno!) se adapte às mais diversas situações. Nesse 38 Ver cartilha sobre educação inclusiva, elaborada pelo Ministério Público Federal, sob a coordenação de FÁVERO, Eugênia Augusta Gonzaga. Brasília: PFDC, 2003. 39 Ver mais em FÁVERO, 2012. 130 sentido, por exemplo, o aluno com deficiência auditiva matriculado em uma escola, ainda que particular, tem o direito de ter intérprete e demais adequações necessárias, a expensas da escola40. Em 2015, foi editada a Lei n. 13.146, de 6 de julho de 2015, que institui o Estatuto da Pessoa com Deficiência – também denominada “Lei Brasileira da Inclusão” (LBI) –, buscando atualizar a legislação doméstica com o modelo de direitos humanos introduzido pela Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. A reação foi imediata: a Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen) ingressou com a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.357 no Supremo Tribunal Federal (STF), questionando a aplicação, às escolas privadas, do direito à educação inclusiva sem que os custos adicionais fossem repassados aos responsáveis pelos alunos com deficiência. Foram impugnados os arts. 28, § 1º41, e 30 42 da Lei n. 13.146/2015, que teriam ofendido o princípio constitucional da livre 40 FÁVERO, 2006, p. 152-174, em especial p. 161. 41 “Art. 28 [...] § 1º Às instituições privadas, de qualquer nível e modalidade de ensino, aplica-se obrigatoriamente o disposto nos incisos I, II, III, V, VII, VIII, IX, X, XI, XII, XIII, XIV, XV, XVI, XVII e XVIII do caput deste artigo, sendo vedada a cobrança de valores adicionais de qualquer natureza em suas mensalidades, anuidades e matrículas no cumprimento dessas determinações.” 42 “Art. 30. Nos processos seletivos para ingresso e permanência nos cursos oferecidos pelas instituições de ensino superior e de educação profissional e tecnológica, públicas e MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA A luta dos empresários do ensino pela exclusão dessas despesas assemelha-se à luta (fracassada, diga-se) dos planos de saúde pela limitação de gastos em determinados casos, como o limite de dias na internação em unidades de terapia intensiva. Ora, tal qual ocorreu na área da saúde, aquele que busca lucros na educação deve saber que não pode ofertar um serviço discriminatório ou incompleto (depois de X dias na UTI, caso o paciente ainda necessite de tratamento, o que fazer?). Tais custos devem ser computados nos custos gerais da instituição de ensino, pois esta é obrigada a oferecer a estrutura adequada a todos os seus alunos, todos mesmo. 131 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA iniciativa (art. 209 da CF/1988 43) e a função social da propriedade (arts. 5º, XXII e XIII44 , e 170, II e III, da CF/1988 45). A entidade autora defendeu também que a educação inclusiva de pessoas com deficiência seria apenas dever do Estado e que sua imposição às escolas particulares vulneraria os arts. 208, caput e III46 , e 227, caput e § 1º, II47, ambos da CF/1988. privadas, devem ser adotadas as seguintes medidas: I - atendimento preferencial à pessoa com deficiência nas dependências das Instituições de Ensino Superior (IES) e nos serviços; II - disponibilização de formulário de inscrição de exames com campos específicos para que o candidato com deficiência informe os recursos de acessibilidade e de tecnologia assistiva necessários para sua participação; III - disponibilização de provas em formatos acessíveis para atendimento às necessidades específicas do candidato com deficiência; IV - disponibilização de recursos de acessibilidade e de tecnologia assistiva adequados, previamente solicitados e escolhidos pelo candidato com deficiência; V - dilação de tempo, conforme demanda apresentada pelo candidato com deficiência, tanto na realização de exame para seleção quanto nas atividades acadêmicas, mediante prévia solicitação e comprovação da necessidade; VI - adoção de critérios de avaliação das provas escritas, discursivas ou de redação que considerem a singularidade linguística da pessoa com deficiência, no domínio da modalidade escrita da língua portuguesa; VII - tradução completa do edital e de suas retificações em Libras.” 43 “Art. 209. O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições: [...].” 44 “Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindose aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XXII – é garantido o direito de propriedade; XXIII – a propriedade atenderá a sua função social; [...].” 45 “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] II – propriedade privada; III – função social da propriedade; [...].” 46 “Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: [...] III – atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino; [...].” 47 “Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. § 1º. O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança, do adolescente e do jovem, admitida a participação de entidades não governamentais, mediante políticas específicas e obedecendo aos seguintes preceitos: [...] II – criação de programas de prevenção e atendimento especializado para as pessoas portadoras de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do adolescente e do jovem portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de obstáculos arquitetônicos e de todas as formas de discriminação.” 132 A Procuradoria-Geral da República manifestou-se pela total improcedência da ADI, sustentando que não viola o direito de propriedade e a função social desta determinação de que escolas particulares matriculem alunos com deficiência, em observância ao sistema educacional inclusivo, adotado pela ordem constitucional, convencional e legal, com aprovação da Convenção Internacional sobre Direitos das Pessoas com Deficiência (Convenção de Nova York – Decreto 6.949/2009), que possui status de norma constitucional. [...] determinação de que instituições privadas de ensino adotem providências para efetivar sistema educacional inclusivo e aceitem matrícula de pessoas com deficiência promove valores caros à ordem constitucional, como igualdade material, cidadania e dignidade humana48 . O Supremo Tribunal Federal, por maioria, considerou a ADI improcedente, uma vez que, embora o serviço público de educação tenha sido facultado à iniciativa privada, independentemente de concessão ou permissão, seu exercício exige o cumprimento das normas gerais de educação nacional, além daquelas constantes da Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB (Lei n. 9.394/1996), o que abarca o direito à educação inclusiva prevista na Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Nessa linha, o ministro relator Edson Fachin, citando expressamente a Convenção, defendeu a obrigação das escolas privadas em observar o direito à educação inclusiva, não podendo “escolher, segregar, separar, mas é seu dever ensinar, incluir, conviver”49. 48 Ver texto integral da manifestação do ex-Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, em , manifestação de 30.11.2015. Acesso em: 13 jun. 2016. 49 Disponível em: . Acesso em: 13 jun. 2016. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Para a PGR, a 133 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA 4 A supervisão internacional 4.1 O mecanismo de supervisão e controle: o sistema dos relatórios A implementação da Convenção é monitorada pelo chamado sistema de relatórios periódicos, pelo qual os Estados obrigam-se a enviar informes, nos quais devem constar as ações que realizaram para a obtenção do respeito e garantia dos direitos humanos. Conforme já expus anteriormente, em obra específica sobre a tutela internacional dos direitos humanos, [o]s informes são examinados por especialistas independentes, sendo possível um diálogo entre estes especialistas e o Estado. O princípio informador do sistema de relatórios é o da cooperação internacional e a busca de evolução na proteção de direitos humanos, baseado no consenso entre o Estado e o órgão internacional 50. Atualmente, o sistema de relatórios é obrigação internacional assumida em vários tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, elaborados sob os auspícios da ONU, como forma de controle da obrigação internacional primária de respeito aos direitos humanos. Esses órgãos exercem o chamado monitoramento internacional das obrigações contraídas pelos Estados, de respeito e garantia de direitos humanos. Como sustentei em obra anterior, [g]rosso modo, são colegiados compostos de especialistas independentes, que têm, a princípio, a competência de examinar relatórios dos Estados e da sociedade civil organizada sobre a situação dos direitos protegidos em cada tratado, podendo, após a análise, exarar recomendações 51. 50 CARVALHO RAMOS, 2016a, p. 84. 51 CARVALHO RAMOS, 2016b, p. 171. 134 Os Estados devem informar ao citado Comitê sobre as medidas legislativas, judiciais ou administrativas que tenham adotado e que serviram para implementar os dispositivos da Convenção. A periodicidade na apresentação dos relatórios é feita da seguinte forma: há o relatório inicial que deve ser entregue após dois anos da ratificação da Convenção e, após esse relatório, os subsequentes devem ser entregues a cada quatro anos. Cada informe ou relatório é submetido a um grupo de trabalho, que pode solicitar informações adicionais ao Estado (a chamada list of issues). Após a resposta, o relatório é discutido em reunião entre os especialistas do Comitê e os representantes do Estado. O Comitê, então, elabora suas conclusões sobre a conduta do Estado na implementação dos direitos previstos no Pacto e publica as suas observações finais. Com base nos informes dos Estados, o Comitê elabora seus comentários e recomendações. A cada dois anos, o Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência submeterá à Assembleia Geral e ao Conselho Econômico e Social da ONU um relatório de suas atividades e poderá fazer sugestões e recomendações gerais baseadas no exame dos relatórios e nas informações recebidas dos Estados Partes. Como já expus anteriormente, o relatório do Comitê é elaborado através do recurso a debates com representantes dos Estados e contando com o acesso a fontes adicionais de informação. Um primeiro tipo de fonte alternativa é a solicitação de informações de outros órgãos internacionais, tais como a Organização Internacional do Trabalho, a Organização Mundial de Saúde e o Banco Mundial 52 . 52 CARVALHO RAMOS, 2016a, p. 87. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA No caso da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, foi criado o Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, composto por dezoito especialistas independentes (doze, inicialmente, e dezoito quando a Convenção alcançar sessenta ratificações), indicados pelos Estados contratantes para mandatos de quatro anos, com uma reeleição possível. 135 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA A sociedade civil poderá elaborar o chamado shadow report, ou relatório alternativo, justamente para contrabalançar a eventual (e muito provável) ausência de neutralidade do relatório oficial. Conforme já exposto em obra anterior, as organizações não-governamentais e os indivíduos podem tecer comentários sobre os relatórios dos Estados. [...] Outras iniciativas são valorizadas, visando dar maior credibilidade aos informes estatais, como é o caso do Brasil e outros Estados, que incluem em suas delegações perante cada Comitê, representantes não somente do governo, mas também de organizações não governamentais53. A discussão entre os membros do Comitê e os representantes dos Estados, na fase de debates, enriquece o conteúdo das informações relativas ao respeito de direitos humanos e possibilita que os especialistas membros elaborem suas observações finais de maneira mais crítica. Após a fase dos debates, são formuladas as observações finais do Comitê, com o estudo do informe periódico, seus pontos positivos e negativos, e a elaboração das recomendações para os problemas encontrados54. Tais observações devem oferecer sugestões para a melhor implementação da Convenção, mas também podem conter comentários específicos sobre pontos da conduta estatal e, em algumas ocasiões, elogiar programas do Estado em questão. 4.2 O Protocolo Facultativo e a petição internacional das vítimas de violação dos direitos das pessoas com deficiência O Brasil ratificou também o Protocolo Facultativo à Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. De acordo com o Protocolo, o Comitê sobre os Direitos das Pessoas com 53 CARVALHO RAMOS, 2016a, p. 97. 54 CARVALHO RAMOS, 2016a, p. 98. 136 O Comitê realizará sessões fechadas para examinar comunicações a ele submetidas em conformidade com esse Protocolo. Depois de examinar uma comunicação, o Comitê enviará suas sugestões e recomendações, se houver, ao Estado-Parte concernente e ao requerente. Essa disposição (artigo 5º do Protocolo) é decepcionante, pois sugere caráter de mera recomendação ou sugestão às deliberações do Comitê ao apreciar as petições das vítimas de violações dos direitos das pessoas com deficiência. Afinal, se houve a disposição dos Estados em permitir o acesso das vitimas ao Comitê, a deliberação internacional deveria ser, coerentemente, vinculante. Conclusão: dignidade e justiça para todos nós A ausência de implementação dos direitos das pessoas com deficiência é violação de direitos humanos e não questão afeta a óticas humanitárias ou caridosas56. 55 Ver mais sobre o requisito do esgotamento dos recursos internos no plano da proteção internacional de direitos humanos em CARVALHO RAMOS, 2004. 56 Para Despouy, “As a preliminary warning, it should be pointed out that to deal correctly with this topic it is essential to rid ourselves of any feelings of pity or commiseration. We are not dealing with a strictly humanitarian problem, still less with a situation requiring our charity. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Deficiência, criado pela Convenção, pode receber e considerar comunicações submetidas por pessoas ou grupos de pessoas, ou em nome deles, sujeitos à sua jurisdição, alegando serem vítimas de violação das disposições da Convenção pelo referido Estado. O Comitê considerará inadmissível a comunicação quando for anônima, ou for incompatível com as disposições da Convenção. Além disso, há a previsão de coisa julgada e litispendência (não cabe apreciação se a mesma matéria já tenha sido examinada pelo Comitê ou tenha sido ou estiver sendo examinada sob outro procedimento de investigação ou resolução internacional), bem como a exigência do chamado “esgotamento prévio dos recursos internos”, que consagra a subsidiariedade da jurisdição internacional 55. 137 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Nas palavras de Louise Arbor, então Alta Comissária para os Direitos Humanos das Nações Unidas, no término das negociações da nova Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, [m]en, women and children with disabilities continue to suffer breaches of their civil, cultural, economic, political and social rights. This is intolerable in and of itself. A failure to protect against discrimination and to recognize equality for all is an attack on human dignity. Moreover, evidence demonstrates that the failure to include persons with disability into society is a loss of enormous talent and experience for us all. Not only therefore is protection against discrimination a right – it also makes good sense for us all57. É necessário focar urgentemente a atual luta pela inclusão das pessoas com deficiência como uma luta pela implementação de direitos humanos. Deve ser construída uma “linguagem de direitos”, para que todos os envolvidos nessa questão conscientizem-se de que as pessoas com deficiência, em nome da universalidade, indivisibilidade e da interdependência de todos os direitos, devem ter acesso a uma vida digna e marcada pela inclusão. A construção dessa linguagem dos direitos deve, porém, ter início pelas novas posturas de cada membro da sociedade. Como assinalou Eleanor Roosevelt 58, os direitos humanos começam perto de Far from that, the treatment given to disabled persons defines the innermost characteristics of a society and highlights the cultural values that sustain it. It might appear elementary to point out that persons with disabilities are human beings - as human as, and usually even more human than, the rest. The daily effort to overcome impediments and the discriminatory treatment they regularly receive usually provides them with special personality features, the most obvious and common of which are integrity, perseverance, and a deep spirit of comprehension and patience in the face of a lack of understanding and intolerance. However, this last feature should not lead us to overlook the fact that as subjects of law they enjoy all the legal attributes inherent in human beings and hold specific rights in addition”. Ver DESPOUY, 1993, parágrafos 5 e 6. 57 Disponível em: . Acesso em: 13 jun. 2016. 58 In verbis: “Where, after all, do universal human rights begin? In small places, close to home so close and so small that they cannot be seen on any map of the world. Yet they are the world of the individual person: the neighborhood he lives in; the school or college he attends; the factory, farm or office where he works. Such are the places where every man, woman and child 138 casa e nos pequenos lugares: na vizinhança, nas escolas, nas fábricas, em todos os lugares nos quais as pessoas com deficiência participem da experiência humana neste globo. Na mesma linha, enfatizou o ministro Teori Zavaski, ao votar pela improcedência da ADI n. 5.357 (anteriormente analisada), que devemos encarar a presença de crianças com deficiência como uma especial oportunidade de apresentar a todas, principalmente as que não têm deficiências, uma lição fundamental de humanidade, um modo de convivência sem exclusões, sem discriminações em um ambien- Esperemos, então, que a Convenção de 2006 possa contribuir para a implementação de um dos lemas da luta das pessoas com deficiência por uma sociedade inclusiva: dignidade e justiça para todos nós. Referências ARAUJO, Luis Alberto David. Buscando significados a partir de critérios de interpretação constitucional, e, muitas vezes, encontrando um desconcertante preconceito. In: (Org.). . Defesa dos direitos das pessoas portadoras de deficiência. São Paulo: RT, 2006. p. 207-219. CARVALHO RAMOS, André de. Direitos humanos em juízo. Comentários aos casos contenciosos e consultivos da Corte Interamericana de Direitos Humanos. São Paulo: Max Limonad, 2001. seeks equal justice, equal opportunity, equal dignity without discrimination. Unless these rights have meaning there, they have little meaning anywhere. Without concerted citizen action to uphold them close to home, we shall look in vain for progress in the larger world”. ROOSEVELT, Eleanor. Apresentação do livro In your Hands, United Nations, 1958. 59 Trecho da manifestação do min. Teori Zavaski. Disponível em: . Acesso em: 13 jun. 2016. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA te de fraternidade59 . 139 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA . Processo internacional de direitos humanos. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2016a. . Responsabilidade internacional por violação de direitos humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. . Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2016b. . Linguagem dos direitos e a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. In: ANJOS FILHO, Robério Nunes dos (Org.). Direitos humanos e direitos fundamentais. Diálogos contemporâneos. Salvador: JusPodivm, 2013, p. 11-37. DAUSES, M. La protection des droits fondamentaux dans l´ordre juridicque communautaire. 3 Revue Trimestrielle de Droit Europeén, p. 401-424, 1984. DESPOUY, Leandro. Human rights and disabled persons. 1993. Disponível em: . Acesso em: 13 jun. 2016. ELWAN, Ann. Poverty and disability - a survey of the literature. Estudo do Banco Mundial, dez. 1999. Disponível em: . Acesso em: 13 jun. 2016. FÁVERO, Eugênia Augusta Gonzaga. Direitos das pessoas com deficiência: garantia de igualdade na diversidade. 3. ed. Rio de Janeiro: WVA, 2012. . O direito das pessoas com deficiência de acesso à educação. In: ARAUJO, Luis Alberto David (Org.). Defesa dos direitos das pessoas portadoras de deficiência. São Paulo: RT, 2006. p. 152-174. FONSECA, Ricardo Tadeu Marques da. A ONU e seu conceito revolucionário de pessoa com deficiência. 2012. Disponível em: . Acesso em: 13 jun. 2016. 140 GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. KANTER, Arlene S. The globalization of disability rights law. 30 Syracuse Journal of International Law and Commerce, p. 241-270, 2003. LAWSON, Anna. The United Nations Convention on the Rights of Persons with Disabilities: new era or false dawn. 34 Syracuse Journal of International Law and Commerce, 20062007, p. 563-620. QUINN, Gerard; DEGENER, Theresia. Human rights and disability: the current use and future potential of United Nations human rights instruments in the context of disability. Disponível em: . Acesso em: 13 jun. 2016. ROUSSEAU, Jean Jacques. Do contrato social. Trad. de Mário Pugliesi e Norberto de Paula Lima. São Paulo: Hemus, 1996. SANTOS, Boaventura de Sousa. As tensões da modernidade. Cidadania e Justiça, Rio de Janeiro, n. 10, 2001. STIENSTRA, Deborah et al. Inclusion and disability in World Bank activities. 2002. Disponível em: . Acesso em: 13 jun. 2016. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA MCKAY, Don. The United Nations Convention on the Rights of Persons with Disabilities. 34 Syracuse Journal of International Law and Commerce, 2006-2007, p. 323-332. 141 A obrigação de realização do direito das pessoas com deficiência ao reconhecimento igual perante a lei conforme o direito internacional dos direitos humanos Felipe Hotz de Macedo Cunha1 O direito ao reconhecimento igual perante a lei não é exatamente uma novidade no campo das lutas por direitos humanos ao redor do globo. Uma primeira construção pôde ser verificada no próprio “direito a ter direitos” de Arendt, verdadeira aptidão a ser sujeito de direitos que deveria ser reconhecida a todo ser humano (PIOVESAN, 2011, p. 176-177). O conceito faz contraponto a nocivas práticas como as de regimes nazifascistas, que fulminaram a dignidade de determinados grupos se valendo da eliminação de seu status civitatis. Isto porque, ao alijar pessoas de “um lugar que torne as suas opiniões significativas e suas ações efetivas” (LAFER, 2006, p. 147-148), o que se observou foi sua total privação dos mais elementares direitos. Com a inauguração de uma ordem internacional destinada a assegurar a toda pessoa humana, independentemente de quaisquer 1 Defensor Público do Estado de São Paulo. Pós-graduando em Direitos Humanos e Acesso à Justiça pela FGV. Diplomado em Direito Internacional dos Direitos Humanos e Direito Humanitário pela American University – Washington College of Law. Foi Coordenador Auxiliar do Núcleo Especializado de Direitos do Idoso e da Pessoa com Deficiência e atualmente é integrante do Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos, ambos da Defensoria Pública de São Paulo. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Introdução 143 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA condicionantes, seus direitos essenciais (com a Declaração Universal dos Direitos Humanos e os tratados que a seguiram), o aspecto da não discriminação e da busca pela igualdade material de grupos vulneráveis ganhou força, trazendo novos contornos ao reconhecimento igual perante a lei. No âmbito da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, a questão da igualdade foi tratada como elemento central. O tratado lança luz não apenas sobre a titularidade, mas também ao exercício dos próprios direitos como elemento central de seu resguardo. Nessa linha, o conceito de “discriminação racial” ali traçado se estende aos atentados contra o exercício de direitos em igualdade de condições com as demais pessoas (artigo 1º), revelando que a simples titularidade não mais satisfaz a igualdade perante a lei dos sujeitos de direito. Outro importante avanço nesse tema pôde ser observado com o advento da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher. Neste relevante tratado internacional, o direito da mulher à igualdade perante a lei se traduziu, no artigo 15.1, justamente na “capacidade jurídica idêntica à do homem e as mesmas oportunidades para o exercício desta capacidade. Em particular [...] iguais direitos para firmar contratos e administrar bens [...]”, entre outros direitos e atos civis. Portanto, para além da proteção geral do direito ao reconhecimento igual perante a lei, tem sido recorrente na história dos direitos humanos a luta de grupos determinados por sua plena consagração nos contextos específicos em que sofrem com sua inobservância. Tal movimentação busca traduzir o comando geral em elementos específicos para a eliminação de leis e práticas jurídicas que limitam a participação na vida em sociedade e o exercício de seus próprios direitos por membros de tais grupos vulneráveis. É nesse contexto que a busca das pessoas com deficiência pela capacidade jurídica plena deve ser compreendida. 144 Entretanto, mesmo com tal documento a irradiar efeitos do mais alto patamar normativo nacional desde 2008, a atenção da comunidade jurídica brasileira para o assunto realmente ganhou força a partir das alterações trazidas pela Lei n. 13.146/2015 (Lei Brasileira de Inclusão) ao regime de capacidade jurídica desse grupo no plano infraconstitucional. Nesse contexto, parece evidente que o salutar debate sobre o tema não pode se limitar aos aspectos infraconstitucionais. É necessário levar em conta o fato de se tratar de direito previsto em uma norma internacional, que conta com intérprete próprio nesse plano (o Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência), o qual, por sua vez, esclareceu o conteúdo dos direitos previstos no artigo 12 da CDPD em seu Comentário Geral n. 1, dedicado integralmente ao tema da capacidade jurídica. A proposta deste breve artigo é, assim, abordar os principais standards internacionais sobre o direito ao reconhecimento igual perante a lei desse grupo de pessoas, buscando trazer para as discussões sobre a capacidade jurídica das pessoas com deficiência o contexto global em que o tema está colocado, como parte dos esforços para que os direitos humanos sejam incorporados em consonância com sua concepção internacionalista na prática jurídica doméstica. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Assim como ocorrido com outros grupos anteriormente mencionados, é possível observar sua normatização pelo direito internacional dos direitos humanos, tendo sido incorporada à agenda internacional com a adoção da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD). Importante, ainda, notar que esse documento foi internalizado pelo Brasil com status de emenda constitucional, dada a aprovação pelo rito previsto pelo art. 5º, § 3º, da Constituição, pelo que, internamente, tem força de emenda constitucional. 145 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA 1 A construção do direito internacional dos direitos humanos e os órgãos de supervisão de tratados O esquema desenhado para a proteção internacional dos direitos humanos com a criação da Organização das Nações Unidas (ONU) se baseou na tentativa de garantir sua observância ainda que não ocorresse a garantia nacional, embora esta continue sendo a via preferível (como deixa entrever a regra de esgotamento de recursos internos, presente nos mecanismos de denúncia de casos individuais). Nesse sentido, houve a produção não apenas de tratados internacionais vinculantes sobre direitos humanos mas também a criação de órgãos de monitoramento desses documentos, a quem caberia a supervisão de seu cumprimento pelos Estados nacionais. A doutrina especializada assinala que “o Direito Internacional dos Direitos Humanos é composto por duas partes indissociáveis: o rol de direitos de um lado e os processos internacionais que interpretam o conteúdo desses direitos e zelam para que os Estados cumpram suas obrigações” (RAMOS, 2012, p. 31). Desse modo, para o Pacto de Direitos Civis e Políticos há o Comitê de Direitos Humanos; para o Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, embora com certo atraso, foi estabelecido o Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, assim como os tratados relacionados a temáticas e grupos específicos (tortura, discriminação racial, discriminação contra a mulher, direitos da criança, direitos dos trabalhadores migrantes e suas famílias, desaparecimento forçado) tiveram igualmente seus respectivos comitês criados e em atividade para seu monitoramento. Não é diferente com a CDPD, cuja supervisão internacional incumbe ao Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Diante da linguagem característica dos textos normativos dos respectivos tratados, e tendo em vista o viés universalista da 146 concepção internacional dos direitos humanos, nada mais coerente do que a existência de mecanismos que sirvam de norteadores aos Estados-Partes sobre a interpretação dessas normas globais. Os Comitês assumem, assim, o papel de últimos intérpretes internacionais dos tratados que monitoram, esclarecendo e aprofundando seu conteúdo de forma detalhada. A questão se insere no que, no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, tem sido chamado de controle de convencionalidade, atividade tratada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CrIDH) em sua jurisprudência, trazendo a obrigação de realização de um teste de compatibilidade dos atos estatais internos não apenas com o tratado de regência mas também com os standards fixados pelo órgão em sua atividade contenciosa e consultiva. Nesse sentido, emblemática a passagem seguinte, extraída da Opinião Consultiva n. 21/2014, solicitada à CrIDH, entre outros Estados, pelo Brasil: 31. Del mismo modo, la Corte estima necesario recordar que, conforme al derecho internacional, cuando un Estado es parte de un tratado internacional, como la Convención Americana sobre Derechos Humanos, dicho tratado obliga a todos sus órganos, incluidos los poderes judicial y legislativo, por lo que la violación por parte de alguno de dichos órganos genera responsabilidad internacional para aquél. Es por tal razón que estima necesario que los diversos órganos del Estado realicen el correspondiente control de convencionalidad, también sobre la base de lo que señale en ejercicio de su competencia no contenciosa o consultiva, la que innegablemente comparte MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Assim como seria impensável hoje a análise de um comando constitucional sem a busca das construções já firmadas a seu respeito pelo Supremo Tribunal Federal, uma cultura de respeito aos direitos humanos internacionais deve identificar a mesma impossibilidade com relação aos tratados e convenções, cuja interpretação não pode prescindir do diálogo com os standards fixados por seus órgãos de supervisão (RAMOS, 2011, p. 179). 147 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA con su competencia contenciosa el propósito del sistema interamericano de derechos humanos, cual es, “la protección de los derechos fundamentales de los seres humanos”. A su vez, a partir de la norma convencional interpretada a través de la emisión de una opinión consultiva, todos los órganos de los Estados Miembros de la OEA, incluyendo a los que no son Parte de la Convención pero que se han obligado a respetar los derechos humanos en virtud de la Carta de la OEA (artículo 3.l) y la Carta Democrática Interamericana (artículos 3, 7, 8 y 9), cuentan con una fuente que, acorde a su propia naturaleza, contribuye también y especialmente de manera preventiva, a lograr el eficaz respeto y garantía de los derechos humanos y, en particular, constituye una guía a ser utilizada para resolver las cuestiones sobre infancia en el contexto de la migración y así evitar eventuales vulneraciones de derechos humanos. (CrIDH, 2014, grifo nosso.) Note-se a proximidade da atividade não contenciosa da CrIDH com aquela realizada pelos órgãos de tratado da ONU na análise de relatórios e elaboração de comentários gerais: ambas desaguam na interpretação autorizada dos mecanismos de supervisão sobre as obrigações e direitos estabelecidos nos tratados que monitoram. Daí porque não se pode prescindir da investigação do posicionamento do Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência acerca do conteúdo do direito ao reconhecimento igual perante a lei quando de sua análise no contexto brasileiro, nem de sua utilização como parâmetro de avaliação das formulações trazidas pela legislação infraconstitucional sobre o tema. 2 O enfoque internacional nas obrigações estatais Juntamente com a questão da universalidade dos direitos humanos em sua contemporânea concepção internacional (como indica a Declaração e Programa de Ação de Viena de 1993, item 5), outros elementos de destaque são a indivisibilidade e interdependência destes direitos. Como leciona a doutrina, 148 A indivisibilidade [...] está ligada ao objetivo maior do sistema internacional de direitos humanos, a promoção e garantia de dignidade do ser humano. Ao se afirmar que os direitos humanos são indivisíveis se está a dizer que não existe meio-termo: só há vida verdadeiramente digna se todos os direitos previstos no direito internacional dos direitos humanos estiverem sendo respeitados, sejam civis e políticos, sejam econômicos, sociais e culturais. [...] A interdependência diz respeito aos direitos humanos considerados em espécie, ao se entender que certo direito não alcança a eficácia plena sem a realização simultânea de alguns ou de todos os outros Tais características seguem a preocupação com a busca de um tratamento que não exclua a exigibilidade e a efetividade de (determinadas) “categorias” de direitos humanos. Não se trata de questão menor, mas de esforço pela equalização entre o tratamento conferido aos direitos civis e políticos (DCP) e aos direitos econômicos, sociais e culturais (DESC) – estes últimos historicamente alvo de ataques em sua plena efetividade enquanto direitos humanos. Sem adentrar os meandros das desgastadas discussões subjacentes – o que não tem espaço neste escrito –, é certo que, no campo internacional, em especial na robusta atividade do Sistema ONU em relação aos DESC, sobreveio a superação interpretativa da antiquada dissociação das obrigações relativas a cada uma destas “categorias” de direitos humanos. Em resumo, era comum se atribuir aos direitos civis e políticos a contrapartida de uma mera abstenção estatal e, ao contrário, aos econômicos, sociais e culturais, obrigações positivas, com fundamento na equivocada constatação de que apenas este último grupo envolveria custos e alocação de recursos. A superação desse quadro representou um importantíssimo giro interpretativo dos direitos humanos. O que se construiu no Sistema ONU, em especial no âmbito do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (CDESC), com base MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA direitos humanos. (WEIS, 2010, p. 171). 149 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA nos trabalhos de Asbjorn Eide, foi uma abordagem não lastreada na “categoria” do direito humano, mas com enfoque nas obrigações estatais, as quais, independentemente do direito envolvido, implicariam ao menos em três posturas: protect, respect and fulfil (DESCHUTTER, 2014, p. 280-281), o que pode ser traduzido na tríade respeitar, proteger e realizar. Tal formulação, que reaproxima os direitos civis e políticos e os DESC, veio sintetizada pelo próprio CDESC em seu Comentário Geral n. 12 (ONU, 1999): 15. El derecho a la alimentación adecuada, al igual que cualquier otro derecho humano, impone tres tipos o niveles de obligaciones a los Estados Partes: las obligaciones de respetar, proteger y realizar. A su vez, la obligación de realizar entraña tanto la obligación de facilitar como la obligación de hacer efectivo. La obligación de respetar el acceso existente a una alimentación adecuada requiere que los Estados no adopten medidas de ningún tipo que tengan por resultado impedir ese acceso. La obligación de proteger requiere que el Estado Parte adopte medidas para velar por que las empresas o los particulares no priven a las personas del acceso a una alimentación adecuada. La obligación de realizar (facilitar) significa que el Estado debe procurar iniciar actividades con el fin de fortalecer el acceso y la utilización por parte de la población de los recursos y medios que aseguren sus medios de vida, incluida la seguridad alimentaria. Por último, cuando un individuo o un grupo sea incapaz, por razones que escapen a su control, de disfrutar el derecho a una alimentación adecuada por los medios a su alcance, los Estados tienen la obligación de realizar (hacer efectivo) ese derecho directamente. Esta obligación también se aplica a las personas que son víctimas de catástrofes naturales o de otra índole. [Grifo nosso]. Num plano geral, por esta construção, temos que: • 150 a obrigação de respeito consistiria na abstenção estatal de violação por sua intervenção na fruição dos direitos; a obrigação de proteção, por sua vez, envolveria a preocupação com as violações de direitos humanos decorrentes da atividade de particulares, implicando um dever de prevenção estatal e, em caso de violação, a conhecida construção da obrigação de investigação, processo e sanção; e • a obrigação de realização seria dividida em dois aspectos: a obrigação de facilitar, consistindo num campo objetivo e coletivo de atuação, com a criação de um arcabouço social, econômico, cultural, institucional e político apto a propiciar as condições necessárias à fruição do direito (o que podemos traduzir na existência de políticas públicas, na mais ampla acepção do termo, destinadas a tal desiderato) e, a obrigação de prover ou efetivar, consistente na entrega do direito em si. Relevante notar, ainda, como a aludida tipologia tripartite (constantemente adotada no âmbito dos órgãos de tratado da ONU) permite identificar novas nuances não apenas no tratamento dos DESC (como os aspectos de defesa destes direitos) mas também revela outras facetas dos direitos civis e políticos. Assim, não é possível tomar o direito ao reconhecimento igual perante a lei apenas como dever de respeito, sendo incorreta a concepção de que implicaria tão somente a abstenção estatal, não interferindo no exercício pleno da capacidade jurídica e eliminando dispositivos e práticas que o limitem. Como se verá adiante, há obrigações positivas que englobam a realização do direito e que precisam ser consideradas com ênfase maior. Antes, contudo, é necessário contextualizar o paradigma abraçado pela CDPD; é pano de fundo para a aplicação do modelo de obrigações estatais aos direitos ali enunciados. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA • 151 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA 3 O modelo social como paradigma interpretativo da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência Entre os inúmeros aspectos paradigmáticos da CDPD em relação aos direitos humanos das pessoas com deficiência, seu principal aporte provavelmente é a inauguração de um novo modelo de tratamento da deficiência no plano jurídico internacional. Superando o anteriormente vigente modelo médico, a CDPD trouxe como elemento-chave para a identificação da deficiência o reconhecimento de que esta não se resume aos impedimentos de natureza física, sensorial, intelectual ou mental que as pessoas possam experimentar, tendo, assim, como foco a sua interação com “barreiras devidas às atitudes e ao ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas” (preâmbulo da CDPD, item e). Daí o delineamento trazido pelo artigo 1º do tratado em questão: Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas. Trata-se do chamado “modelo social”, que desloca a responsabilidade principal pelas decorrências negativas da deficiência dessas pessoas para a sociedade como um todo, tendo em vista que tais barreiras não são naturais, mas decorrem de uma construção de sociedades historicamente não inclusivas, sob efeito dos modelos anteriores de tratamento da deficiência. Sidney Madruga assim sintetiza esse câmbio paradigmático: Em resumo, não obstante os grandes avanços obtidos com o modelo médico no que diz respeito ao surgimento e reconhecimento de 152 garantias específicas em relação às pessoas com deficiência, este modelo as considerava inadequadas ao seio social por deterem um atributo individual resultado de suas patologias, e assim propugnava que essa diferenciação fosse ocultada até o indivíduo ser reabilitado, preparado, para enfrentar-se de igual para igual os demais membros da coletividade (sem deficiência). O problema estaria no indivíduo, na sua anormalidade. gera a exclusão. A valoração do indivíduo como pessoa e a necessidade de sua inclusão social acercam o modelo social das premissas baseadas nos direitos humanos, máxime do princípio da dignidade humana, ao considerar em primeiro plano o respeito à pessoa [...]. (MADRUGA, 2013, p. 60). Dentro desse modelo focado nas barreiras sociais, é fácil identificar a obrigação primordial atribuída aos Estados-Partes – sua remoção. Daí decorrem consequências que não são singelas e devem informar toda a abordagem de questões relacionadas à deficiência: não é possível, sob a égide da CDPD, atribuir a responsabilidade pela dificuldade no exercício pleno de direitos às próprias pessoas com deficiência. Deve haver, isto sim, a identificação e remoção das barreiras correspondentes, mediante atuação estatal e social para seu enfrentamento. A doutrina internacional sintetiza esta compreensão: [...] according to the social model, a person’s disability does not diminish the right of that person to exert choice and control over his or her life or to fully participate in and contribute to society in the way that he or she chooses. Under the social model, no one is considered "unqualified" to exercise his or her rights to full and equal participation in society. Instead, it is the affirmative obligation MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Já o modelo social aponta a inadequação da sociedade para incluir aquela coletividade. O problema está “na sociedade” e não no indivíduo, este sim no centro de suas decisões. É o contexto social que 153 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA of society to provide those supports, services, programs, facilities, modifications, and accommodations that may be needed to ensure the right of all persons with disabilities to exercise their rights. (KANTER, 2015, p. 47). O enfoque se revela importantíssimo para a compreensão dos direitos humanos encartados na CDPD, na medida em que a interpretação de direitos em espécie – como o reconhecimento igual perante a lei – deve seguir o mesmo raciocínio. Dessa forma, barreiras que impeçam o exercício pleno da capacidade civil e da liberdade de fazer as próprias escolhas (CDPD, artigo 3º, a) não podem ser simplesmente atribuídas às próprias pessoas com deficiência. Tais barreiras decorrem de sociedades não plenamente inclusivas e, assim, devem ser enfrentadas e eliminadas, inclusive mediante provimento dos apoios, serviços, programas, equipamentos, modificações e adaptações razoáveis necessários para tanto, como preconizado no excerto doutrinário internacional transcrito acima. 4 O princípio da participação, a capacidade jurídica e seu valor instrumental Outro ponto relevante na abordagem da deficiência pela CDPD é enunciado ao final de seu artigo 1º, já transcrito supra: a plena e efetiva participação na sociedade. O aspecto participativo é ressaltado, tendo sido a tônica tanto nos trabalhos de elaboração da Convenção quanto no desenho que esta traça para a sua implementação interna e supervisão internacional. O lema adotado pelo movimento internacional das pessoas com deficiência, “nada sobre nós sem nós”, influenciou não apenas a elaboração do texto mas constitui um de seus princípios basilares de acordo com o artigo 3º, c (KANTER, 2015, p. 9). 154 A participação, na CDPD, representa também o processo pelo qual os demais direitos devem ser garantidos. Nesse contexto, não é difícil perceber que o pleno exercício da capacidade jurídica tem ligação intrínseca com a garantia da participação das pessoas com deficiência, seja em suas próprias vidas (realizando escolhas e exercendo sua autodeterminação nas mais diversas áreas), seja nos rumos coletivos da sociedade em que vivem (direito de manifestação, associação e participação política). Nesse sentido, o Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência destaca em seu Comentário Geral n. 1: La capacidad jurídica es indispensable para el ejercicio de los derechos civiles, políticos, económicos, sociales y culturales, y adquiere una importancia especial para las personas con discapacidad cuando tienen que tomar decisiones fundamentales con respecto a su salud, su educación y su trabajo. En muchos casos, la negación de la capacidad jurídica a las personas con discapacidad ha hecho que se vean privadas de muchos derechos fundamentales, como el derecho de voto, el derecho a casarse y fundar una familia, los derechos reproductivos, la patria potestad, el derecho a otorgar su consentimiento para las relaciones íntimas y el tratamiento médico y el derecho a la libertad. (ONU, 2014, par. 8). O direito ao reconhecimento igual perante a lei, portanto, é também vetor de irradiação dos princípios básicos da autodeterminação e de realização das próprias escolhas, que se encontram no coração do Tratado-Constituição (art. 3º, a). Consequentemente, a sua violação, por ação ou omissão, não se esgota em si, colocando em risco todos os demais direitos garantidos pela CDPD. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Assim, a capacidade jurídica configura-se não somente como um direito em si mas também como verdadeiro instrumento de realização dos demais direitos humanos das pessoas com deficiência, dada sua essencialidade para o aspecto participativo que norteia toda a Convenção. 155 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA 5 Obrigações estatais decorrentes do direito ao reconhecimento igual perante a lei A centralidade normativa do direito ao reconhecimento igual perante a lei na CDPD e sua relevância instrumental para a realização dos demais direitos humanos das pessoas com deficiência, tratadas supra, se confirmam com o emblemático Comentário Geral n. 1 do Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, o qual trata justamente desse tema2. Trata-se do primeiro compêndio de posicionamentos desse Comitê da ONU, em que o órgão internacional, ao identificar um “mal-entendido generalizado” sobre o alcance das obrigações contidas no artigo 12 da CDPD (ONU, 2014, par. 3), se dirige aos Estados-Partes tomando por base os relatórios submetidos até então e buscando esclarecer estes aspectos, fixando os standards internacionais na matéria. O Comitê parte de uma premissa básica para desenvolver o direito em questão: em nenhuma hipótese a deficiência pode ser utilizada como critério para a denegação da capacidade jurídica. El Comité reafirma que el hecho de que una persona tenga una discapacidad o una deficiencia (incluidas las deficiencias físicas o sensoriales) no debe ser nunca motivo para negarle la capacidad jurídica ni ninguno de los derechos establecidos en el artículo 12. Todas las prácticas cuyo propósito o efecto sea violar el artículo 12 deben ser abolidas, a fin de que las personas con discapacidad recobren la plena capacidad jurídica en igualdad de condiciones con las demás. (ONU, 2014, par. 9, grifo nosso.) Tal compreensão é consentânea com o conceito de discriminação traçado no próprio tratado, o qual deixa clara esta proibição: 2 O fato de ser a matéria objeto do primeiro esforço de elaboração de diretrizes gerais pelo órgão internacional responsável pela interpretação da CDPD dá conta de sua fundamentalidade para a efetivação plena dos demais direitos assegurados no tratado. 156 “Discriminação por motivo de deficiência” significa qualquer diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência, com o propósito ou efeito de impedir ou impossibilitar o reconhecimento, o desfrute ou o exercício, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais nos âmbitos político, econômico, social, cultural, civil ou qualquer outro. Abrange todas as formas de discriminação, inclusive a recusa Para além disso, é colocado de forma muito clara pelo Comitê que a terminologia “capacidade jurídica” abrange tanto a capacidade de ser titular de direitos (capacidade de direito) quanto a capacidade de exercício ou de fato (de “actuar en derecho”), que reconhece a pessoa como “actor facultado para realizar transacciones y para crear relaciones jurídicas, modificarlas o ponerles fin” (ONU, 2014, par. 12). O órgão internacional responsável pela interpretação da CDPD ratifica o entendimento de que são indissociáveis e, assim, ambas as facetas devem ser reconhecidas – ressaltando que o componente que geralmente é denegado ou reduzido é a capacidade de exercício (ONU, 2014, par. 14). O próprio texto do artigo 12 da CDPD deixa entrever esta conexão: 1. Os Estados-Partes reafirmam que as pessoas com deficiência têm o direito de ser reconhecidas em qualquer lugar como pessoas perante a lei. 2. Os Estados-Partes reconhecerão que as pessoas com deficiência gozam de capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida. Assim, não tem compatibilidade com o atual texto constitucional (pois incluída no bloco de constitucionalidade a CDPD) nenhuma interpretação que busque tirar da pessoa com deficiência qualquer dos elementos relacionados à capacidade jurídica. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA de adaptação razoável. (CPDP, artigo 2º). 157 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Além disso, o documento elaborado pelo Comitê se vale da tipologia tripartite apresentada supra para delimitar as demais obrigações estatais relacionadas ao igual reconhecimento perante a lei. Com efeito, a obrigação de respeitar consiste na abstenção de qualquer atuação estatal que prive as pessoas com deficiência do direito ao igual reconhecimento perante a lei, devendo cessar em especial a negativa de capacidade jurídica quando o propósito ou efeito desta negação seja discriminatório por motivos de deficiência (ONU, 2014, par. 24 e 25). Nesse sentido, temos justamente o dever de supressão dos regimes baseados na tomada de decisão substituída, que podem tomar formas diversas, mas reúnem algumas características em comum, sendo entendidos como tais pelo Comitê todo e qualquer regime em que: (a) se despoje a pessoa de capacidade jurídica ainda que para apenas uma única decisão; (b) se permita a nomeação de alguém que possa tomar decisões que não seja a pessoa a quem concernem, com esta nomeação podendo ocorrer contra a sua vontade; e (c) as decisões adotadas pelo substituto se baseiem no que se considera objetivamente o “interesse superior” da pessoa substituída e não em sua própria vontade e suas preferências. (ONU, 2014, par. 27). Qualquer regulamentação ou prática que possibilite esses efeitos, portanto, se encontra fora dos limites trazidos pela CDPD. Assim, regimes de decisão substituída consistem, pelo entendimento do Comitê, em violação das obrigações internacionais adotadas com a ratificação do tratado em questão. Nesse ponto, não é demais relembrar a obrigação assumida perante a CDPD de “adotar todas as medidas necessárias, inclusive legislativas, para modificar ou revogar leis, regulamentos, costumes e práticas vigentes, que constituírem discriminação contra pessoas com deficiência” (artigo 4.1, b). 158 Em relação ao dever de proteger, o Comitê pontua que os Estados devem adotar medidas “para impedir que agentes no estatales y particulares interfieran en la capacidad de las personas con discapacidad de hacer efectivos sus derechos humanos, incluido el derecho a la capacidad jurídica, y de disfrutarlos” (ONU, 2014, par. 24), revelando a obrigação de regulamentação e atuação estatal para prevenir e, se for o caso, remediar eventuais desconsiderações, por particulares, do reconhecimento de igualdade plena perante a lei das pessoas com deficiência. Finalmente, outro aspecto relevantíssimo no tocante ao tratamento da questão, que vem sendo olvidado nas análises acerca do tema, é o dever de realizar o direito ao reconhecimento igual perante a lei, que se manifesta textualmente na CDPD, em especial no item 3 do artigo 12, ao determinar: 3 Os Estados-Partes tomarão medidas apropriadas para prover o acesso de pessoas com deficiência ao apoio que necessitarem no exercício de sua capacidade legal. [Grifo nosso]. Portanto, é estabelecido um binômio que dá a tônica da alteração paradigmática implementada pela CDPD com relação à capacidade jurídica das pessoas com deficiência: a superação dos regimes de decisão substituída com a implementação de um regime de decisão apoiada. Desse modo, a CDPD promove o reconhecimento da capacidade plena das pessoas com deficiência para exercitarem seus próprios direitos e realizarem suas próprias escolhas, com a obrigação concomitante de disponibilização pelo Estado dos instrumentos de apoio adequados para tanto, mediante cumprimento de seus deveres de facilitar e de prover, que conformam o dever de realizar. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Nesse ponto, a CDPD é clara ao impor aos Estados-Partes a obrigação de “tomar todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação baseada em deficiência, por parte de qualquer pessoa, organização ou empresa privada” (ONU, 2014, artigo 4.1, e). 159 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA A supressão de disposições legais, institutos e práticas que possam levar à tomada de decisão substituída é, portanto, apenas um lado da moeda. É igualmente importante a sua contrapartida de índole promocional, qual seja, o estabelecimento efetivo de um regime baseado na decisão apoiada, com regulamentação, fomento, criação e disponibilização de mecanismos de apoio adequados. Por óbvio, a realização parcial, ou seja, focada em apenas uma dessas duas facetas, não será suficiente para dar cumprimento às obrigações internacionais correlatas3. É necessário que se promovam ambos os aspectos conjuntamente, levando a cabo simultaneamente as obrigações de respeito, proteção e realização do direito ao reconhecimento igual perante a lei. O regime de decisão apoiada, portanto, merece destaque no tratamento da matéria, deixando de figurar como mero coadjuvante nos debates acerca da capacidade jurídica das pessoas com deficiência e emergindo como elemento essencial para que a transição constitucional e internacionalmente imposta ao Brasil nesse tema ocorra em sua plenitude. A utilização de apoios na tomada de decisões é uma prática cotidiana da maioria das pessoas. Basta parar para pensar em quantas vezes recorremos a pessoas próximas (familiares, amigos, colegas de trabalho) antes da realização de determinadas escolhas em nossas vidas e, eventualmente, também a apoios profissionais de toda sorte. Todavia, seu tratamento jurídico como um direito humano específico é uma novidade da CDPD, trazendo contornos próprios no contexto das pessoas com deficiência. Não por outro motivo, o Comi3 Nesse sentido “La obligación de los Estados partes de reemplazar los regímenes basados en la adopción de decisiones sustitutiva por otros que se basen en el apoyo a la adopción de decisiones exige que se supriman los primeros y se elaboren alternativas para los segundos. Crear sistemas de apoyo a la adopción de decisiones manteniendo paralelamente los regímenes basados en la adopción de decisiones sustitutiva no basta para cumplir con lo dispuesto en el artículo 12 de la Convención” (ONU, 2014, par. 28). 160 tê fixou diretrizes sobre as características gerais dos apoios, as quais serão mencionadas brevemente. • Deve haver uma pluralidade de opções de apoio, desde as formas mais simples até as mais intensas, o que condiz com o reconhecimento da diversidade das pessoas com deficiência e do fato de que algumas delas requerem maior apoio, estampados no preâmbulo da CDPD, itens i e j, e no parágrafo 29 do Comentário Geral n. 1, item a. • Os apoios devem ser disponíveis para todos, não sendo justificada sua indisponibilidade pela falta de recursos financeiros, pelo grau de apoio necessário ou mesmo pelo modo de comunicação utilizado pela pessoa interessada, ainda que não convencional ou compreendido por muito poucas pessoas (par. 29, itens a, c e e). • Todas as formas de apoio devem ser baseadas na vontade e preferências da pessoa e não no que se suponha ser seu interesse objetivo, devendo haver salvaguardas para tanto (par. 29, itens b e h). • É direito das pessoas com deficiência rechaçar o apoio, colocar fim ou requerer sua modificação a qualquer momento (par. 29, item g). • As pessoas encarregadas do apoio devem gozar de reconhecimento jurídico acessível, devendo possibilitar que terceiros comprovem sua identidade e impugnem suas decisões MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Segundo o órgão de monitoramento da CDPD, um regime de apoios “comprende diversas opciones de apoyo que dan primacía a la voluntad y las preferencias de la persona y respetan las normas de derechos humano”, e os apoios, que podem adotar muitas formas, “no deben regular en exceso la vida de las personas con discapacidad” (ONU, 2014, par. 29). Devem, ainda, possuir determinadas características, entre elas as seguintes: 161 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA quando entendam que não está de acordo com as vontades e preferências da pessoa apoiada (par. 29, item d). • Os apoios não podem justificar a limitação de outros direitos das pessoas com deficiência (par. 29, item f). • A prestação de apoio não dependerá da avaliação da capacidade mental, sendo requeridos indicadores novos e não discriminatórios das necessidades de apoio (par. 29, i), condizentes com o modelo social da CDPD. • Os apoios devem ser proporcionados em um enfoque baseado na comunidade (par. 45). O Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência arremata o Comentário Geral sob análise, determinando ao Estado não apenas estabelecer e reconhecer mas também proporcionar uma ampla gama de formas de apoio às pessoas com deficiência (ONU, 2014, par. 50, b). Isso demonstra que a obrigação estatal na matéria extrapola o âmbito meramente legislativo e regulatório, como o estabelecimento de um regime jurídico de apoio e a fixação de seus requisitos, abrangendo também a disponibilização de serviços de apoio. Nesse ponto, é fundamental destacar, uma vez que se está a tratar de obrigações positivas diretas e não meramente regulatórias impostas ao Estado brasileiro pela CDPD, que o Comitê é firme ao assinalar que o dever de realização do direito ao reconhecimento igual perante a lei, com o acesso aos apoios nos moldes acima, não se submete à cláusula de progressividade, devendo ser efetivado imediatamente (ONU, 2014, par. 30), de modo que [...] los Estados partes deben comenzar inmediatamente a adoptar medidas para hacer realidad los derechos consagrados en el artículo 12. Esas medidas deben ser deliberadas, estar bien planificadas e incluir la consulta y la participación real de las personas con discapacidad y de sus organizaciones. (ONU, 2014, par. 30). 162 É essencial, assim, que efetivamente ocorra esse planejamento, estabelecimento de estratégias e metas e, efetivamente, se passe à implementação do direito ao apoio, avançando em relação ao plano meramente legislativo e regulatório. A questão deve ser tratada com prioridade absoluta, na medida em que é indissociável dos demais aspectos relacionados ao exercício do direito à capacidade jurídica, sendo certo que já se aproxima de uma década desde a ratificação do tratado sem que se tenha dado plena efetividade aos comandos convencionais nesse particular. O direito ao reconhecimento igual perante a lei das pessoas com deficiência, bem traduzido na garantia de sua capacidade jurídica plena, exige duas frentes de atuação para a sua implementação, conforme os standards internacionais: a eliminação do regime de decisão substituída e a efetiva implementação de um regime de apoios. Diante disso, havendo inclusive o delineamento internacional dos elementos básicos que devem revestir o regime de decisão apoiada, fica claro que a incorporação da CDPD trouxe um dever imediato ao Brasil ainda pouco discutido: a elaboração e implementação de políticas públicas, com a estruturação e disponibilização de apoios adequados ao exercício da capacidade jurídica pelas pessoas com deficiência. Em todas as fases de seu ciclo, tais políticas deverão contar com a participação das próprias pessoas com deficiência, sendo absolutamente relevante levar em conta as boas práticas já verificadas na comunidade internacional em sua elaboração (ONU, 2014, par. 50 e 51). A realidade brasileira traz a seu favor o fato de já contar com redes de assistência social, psicossocial, de saúde, bem como outros serviços e equipamentos públicos que podem servir como importantes aliados na estruturação de apoios dotados das características MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Reflexões conclusivas 163 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA preconizadas pelo Comitê nos espaços comunitários. Ainda, o fato de se tratar de questão de competência material comum (CRFB, art. 23, inciso II) e legislativa concorrente (CRFB, art. 24, XIV), com obrigações aplicáveis a todas as unidades constitutivas dos Estados federativos (CDPD, artigo 4.5), propicia um amplo espectro de entes estatais que devem se debruçar sobre o tema. Os movimentos de pessoas com deficiência, a comunidade jurídica e os demais atores na área da deficiência têm papel importantíssimo na busca pelo cumprimento das obrigações aqui tratadas pelo Poder Público. O manejo dos standards internacionais sobre a matéria será importante nesse contexto, tanto para o debate acerca das alterações normativas recentes quanto na elaboração, implementação e avaliação das tão necessárias políticas públicas de apoios. A efetivação da transição preconizada pela CDPD, com a instituição de um regime de capacidade efetivamente baseado em apoios e livre do modelo de substituição de vontade, dependerá da releitura de concepções tradicionais na cultura jurídica brasileira. Contudo, tal empreitada não precisa ser totalmente solitária: as diretrizes internacionais e as experiências de outras nações que buscam satisfazer as mesmas obrigações representam norteadores importantes para percorrer este caminho. Com isso, daremos passos importantes para assegurar às pessoas com deficiência a possibilidade de desenvolvimento pleno de suas potencialidades e de seus projetos de vida, em igualdade de condições com as demais. Referências ABRAMOVICH, Victor; COURTIS, Christian. Direitos sociais são exigíveis. Tradução de Luis Carlos Stephanov. Porto Alegre: Dom Quixote, 2011. 164 CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA: protocolo facultativo à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – Decreto Legislativo n. 186/2008 – Decreto n. 6.949/2009. 4. ed. revista e atualizada. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, 2011. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Opinião Consultiva n. 21, 19 ago. 2014. DESCHUTTER, Olivier. International human rights law: cases, materials, commentary. 2. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2014. KANTER, Arlene S. The development of disability rights under international law – from charity to human rights. New York: Routledge, 2015. LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. MADRUGA, Sidney. Pessoas com deficiência e direitos humanos – ótica da diferença e ações afirmativas. São Paulo: Saraiva, 2013. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais do Alto Comissariado de Direitos Humanos. Comentário Geral n. 12. 1999. . Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Comentário Geral n. 1. 2014. Doc. CRPD/C/GC/1. PIOVESAN, Flavia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA FACHIN, Melina Girardi. Direitos humanos e desenvolvimento. Rio de Janeiro: Renovar, 2015. 165 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA RAMOS, André de Carvalho. A ADPF 153 e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. In: GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Crimes da ditadura militar: uma análise à luz da jusrisprudência atual da Corte Interamericana de Direitos Humanos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 174-225. . Processo internacional de direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. WEIS, Carlos. Direitos humanos contemporâneos. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. 166 A pessoa com deficiência e os direitos à previdência social e à assistência social Symone Maria Machado Bonfim1 A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, em seu preâmbulo, além de reconhecer a necessidade de proteger e promover os direitos humanos das pessoas com deficiência, salienta que a maioria vive em situação de pobreza e conclama pela busca de alternativas para lidar com as consequências negativas dessa condição, que comprometem seu bem-estar (CDPD, preâmbulo, alíneas j e t). Ademais, enfatiza que a família, núcleo natural e fundamental da sociedade, tem o direito de receber a proteção social e estatal e, no caso das pessoas com deficiência, devem ser providas a proteção e assistência necessárias para que as famílias possam ser capazes de contribuir para o exercício pleno e equitativo dos direitos dessas pessoas (CDPD, preâmbulo, alínea x). Com efeito, o artigo 28 da CDPD apoia-se nesses pressupostos e reconhece o direito das pessoas com deficiência a um padrão adequado de vida para si e para suas famílias e dispõe sobre medidas que 1 Consultora Legislativa da Câmara dos Deputados nas áreas de previdência e assistência social. Assessorou a relatora da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência – Lei n. 13146, de 2015. Formação em Letras e Direito. Mestrado em Ciência Política pelo IESP/UERJ (antigo IUPERJ). Doutorado em andamento em Ciência Política pelo IESP/UERJ. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA 1 Contextualização dos direitos à previdência social e à assistência social na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) 167 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA visam promover, proteger e assegurar o exercício pleno desse direito, de forma a garantir-lhes a melhoria contínua das condições de vida. Nesse sentido, o direito das pessoas com deficiência à proteção social afigura-se essencial para que possam alcançar um padrão de vida adequado, em igualdade de condições com as demais pessoas, assim como superar restrições que a pobreza impõe à maioria delas, impossibilitando-as de exercer direitos básicos de cidadania, como educação, saúde, trabalho. A proteção social assume variadas formas, com destaque para o direito à previdência social e à assistência social. O primeiro refere-se ao provimento de meios indispensáveis à manutenção de seus beneficiários em caso de idade avançada, doença, morte, acidente, maternidade. O segundo, por sua vez, diz respeito à garantia dos mínimos sociais para atender às necessidades básicas das pessoas e guarda estreita relação com risco e vulnerabilidade social. Entre outros aspectos, o referido artigo 28 dispõe que, para assegurar um padrão de vida adequado, os Estados-Partes deverão desenvolver políticas públicas de assistência social e de previdência social, a exemplo da garantia de acesso a programas de proteção social e redução da pobreza, particularmente para mulheres, crianças e idosos com deficiência; apoio às famílias em situação de pobreza no que tange aos gastos ocasionados pela deficiência; igualdade de acesso de pessoas com deficiência a programas e benef ícios de aposentadoria. A Constituição Federal de 1988 dispõe que o sistema de seguridade social brasileiro compreende os direitos à saúde, à previdência e à assistência social. Neste artigo2, serão abordados os direitos das pessoas com deficiência à previdência social e à assistência social, com realce para os dispositivos constitucionais de interesse e legislação infraconstitucional relacionada. Igualmente, serão destacadas 2 Artigo ampliado de capítulo escrito em coautoria com Renato Jaqueta Benine para o livro Comentários ao Estatuto da Pessoa com Deficiência (LEITE; RIBEIRO; COSTA FILHO, 2016). 168 eventuais mudanças trazidas pela Lei n. 13.146, de 6 de julho de 2015 (Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência - LBI). 2 Pessoa com deficiência e previdência social O texto constitucional veda a adoção de critérios e requisitos diferenciados à concessão de aposentadoria aos beneficiários do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), mas admite exceção a essa regra em relação às atividades exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física4 e aos segurados com deficiência, nos termos definidos em lei complementar (art. 201, § 1º, CF/1988). Dessa forma, o dispositivo constitucional, que é norma de eficácia limitada, delegou ao legislador ordinário a tarefa de definir, por meio de lei complementar, os requisitos e critérios diferenciados para essas concessões. Registre-se que, nos demais dispositivos constitucionais que tratam da previdência social, não há outra previsão de tratamento diferenciado à pessoa com deficiência. No entanto, essa ausência não representa um óbice para que o legislador ordinário possa considerar, em normas infraconstitucionais, como a lei de benefícios da previdência social, a questão da 3 A Lei n. 8.213, de 24 de julho de 1991, “[d]ispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências". Por sua vez, a Lei n. 8.212, de 24 de julho de 1991, “[d]ispõe sobre a organização da Seguridade Social, institui Plano de Custeio, e dá outras providências". 4 Até o momento, não foi editada lei complementar para dispor sobre normas gerais para concessão de aposentadoria especial para quem exerce atividade prejudicial à saúde ou à integridade física. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA A Constituição determina que a previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial. Nos termos de lei3, prevê-se, entre outros, a cobertura de eventos de doença, invalidez, morte, idade avançada, maternidade (CF/1988, art. 201, caput e incisos I a V). 169 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA deficiência e a maior dificuldade de acesso das pessoas desse grupo à participação social em igualdade de condições com as demais pessoas, sobretudo no que se no que se refere à inserção laboral de alguns tipos de deficiência. Considerando que a Lei n. 13.146/2015, que institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI), optou por reafirmar, no art. 41, o direito da pessoa com deficiência à aposentadoria, com remissão à Lei Complementar n. 142, de 8 de maio de 2013, que regulamenta a concessão de aposentadoria da pessoa com deficiência segurada do Regime Geral de Previdência Social, apresentamos, na sequência, informações sobre a aposentadoria especial da pessoa com deficiência e sobre as recentes mudanças nos requisitos para habilitação dos dependentes à pensão por morte, especificamente sobre o cônjuge com deficiência, o filho(a) ou irmão (irmã) com deficiência intelectual, mental ou deficiência grave, para fins de recebimento de benefício previdenciário, tanto no Regime Geral de Previdência Social quanto no Regime Próprio de Previdência Social dos Servidores Públicos (RPPS). 2.1 Aposentadoria da pessoa com deficiência filiada ao Regime Geral de Previdência Social A Lei Complementar n. 142/2013 regulamenta a concessão de aposentadoria da pessoa com deficiência segurada do Regime Geral de Previdência Social de que trata o § 1º do art. 201 da Constituição Federal. Considerando a definição de deficiência da CDPD, a LC n. 142/2013 estabelece que, conforme o grau da deficiência – leve, moderada ou grave – aferido em avaliação pericial médica e social, com a utilização de instrumento instituído para esse fim, a concessão da aposentadoria pelo RGPS ao segurado com deficiência dar-se-á nos seguintes termos: 170 Art. 3º [...] I - aos 25 (vinte e cinco) anos de tempo de contribuição, se homem, e 20 (vinte) anos, se mulher, no caso de segurado com deficiência grave; II - aos 29 (vinte e nove) anos de tempo de contribuição, se homem, e 24 (vinte e quatro) anos, se mulher, no caso de segurado com deficiência moderada; III - aos 33 (trinta e três) anos de tempo de contribuição, se homem, e 28 (vinte e oito) anos, se mulher, no caso de segurado com deficiência leve; ou Parágrafo único. Regulamento do Poder Executivo definirá as deficiências grave, moderada e leve para os fins desta Lei Complementar. Importa registrar que a referida LC prevê o ajuste proporcional dos parâmetros mencionados no transcrito art. 3º, na hipótese de o segurado se tornar pessoa com deficiência ou tiver seu grau de deficiência alterado após filiação ao RGPS. Nesse caso, será considerado o número de anos em que o segurado exerceu atividade laboral sem deficiência e com deficiência, observado o grau de deficiência correspondente, nos termos do regulamento a que se refere o parágrafo único do art. 3º dessa lei complementar. A Lei Complementar n. 142 é regulamentada pelo Decreto n. 8.145, de 3 de dezembro de 2013, e pela Portaria Interministerial n. 1, de 27 de janeiro de 2014, que institui o instrumento de avaliação da deficiência, o Índice de Funcionalidade Brasileiro (IFBr). O referido índice é baseado no modelo social de deficiência que fundamenta a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF), da Organização Mundial da Saúde (OMS). Essa abordagem determina uma MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA IV - aos 60 (sessenta) anos de idade, se homem, e 55 (cinquenta e cinco) anos de idade, se mulher, independentemente do grau de deficiência, desde que cumprido tempo mínimo de contribuição de 15 (quinze) anos e comprovada a existência de deficiência durante igual período. 171 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA análise contextual da deficiência, que deve levar em consideração a restrição de participação social da pessoa, imposta pela interação das barreiras do meio com seus atributos físicos, sensoriais, intelectuais ou mentais. Embora não se trate expressamente de aposentadoria da pessoa com deficiência, cabe destacar que o art. 42 da Lei n. 8.213/1991 prevê o benefício "­­aposentadoria por invalidez”, que se destina ao segurado que for considerado incapaz e insusceptível de reabilitação para o exercício de atividade que lhe garanta a subsistência, após submissão a exame médico-pericial a cargo da Previdência Social. Para o segurado aposentado por invalidez que necessitar da assistência permanente de outra pessoa, o art. 45 da referida lei dispõe que o valor da aposentadoria será acrescido de 25%5. Em face do aumento da inserção de pessoas com deficiência no mercado de trabalho, que muitas vezes fazem uso de tecnologia assistiva que lhes garanta a acessibilidade necessária para o exercício de sua profissão, considera-se que as regras para concessão desse tipo de aposentadoria tornar-se-ão cada vez mais rígidas, principalmente se a política pública previdenciária propiciar ao segurado meios de reabilitação profissional, inclusive com o desenvolvimento de novas habilidades e talentos que lhe deem condições de manter a sua subsistência. 5 Em relação à concessão de 25% ao valor da aposentadoria por invalidez para o segurado que necessitar permanentemente do auxílio de outra pessoa, há decisões judiciais estendendo essa previsão para aposentados por tempo de contribuição ou por idade que passaram à condição de dependência para o exercício de atividades da vida diária. Embora uma corrente entenda que a lei é taxativa quanto ao destinatário do adicional de 25%, outra corrente considera possível a extensão do adicional de 25% para outras modalidades de aposentadorias diversas da concedida por invalidez, desde que se comprove a incapacidade do requerente, bem como a necessidade de assistência permanente de terceiros. A posição favorável à extensão se fundamenta no princípio constitucional da isonomia, inserto no art. 5º da Constituição Federal, e sua negação caracterizaria, também, afronta ao direito de proteção da dignidade da pessoa humana (PEDILEF 50008904920144047133, Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal, relator juiz federal Sérgio Murilo Wanderley Queiroga, TNU, 12.5.2016, DOU 20 maio 2016). 172 2.1.1 Aposentadoria do servidor público com deficiência No que se refere à aposentadoria de servidores estaduais, distritais e municipais com deficiência, há impedimento constitucional para a que lei federal disponha sobre essa questão, considerando-se a autonomia dos entes federativos, inserta como cláusula pétrea pela Constituição de 1988. Com efeito, nas três esferas de governo, deparamo-nos com a ausência de regulamentação do disposto no art. 40, § 4º, inciso I, da Constituição Federal, que autoriza a adoção de requisitos e critérios diferenciados para os servidores com deficiência, nos termos de lei complementar. Mas, em face dessa omissão legislativa, o Poder Judiciário pode intervir, pela via do mandado de injunção, mediante declaração da mora legislativa, até que sobrevenha norma regulamentadora relativa aos critérios aplicáveis à aposentadoria do servidor com deficiência6. Nesse sentido, assim se posicionou o Pretório Excelso acerca da aposentadoria dos servidores públicos com deficiência, in verbis: Ainda que se possa afastar o reconhecimento da prejudicialidade, em razão da falta de pertinência do que se contém na Súmula Vinculante 33/STF, considerado o contexto ora em exame (pessoa porta6 Importa ressaltar que o disposto no art. 40, § 4º, inciso I, da Constituição Federal referese exclusivamente à concessão de aposentadoria com critérios e requisitos diferenciados ao servidor com deficiência. O cálculo e o valor do benefício seguem a regra permanente em vigor. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Ressalte-se que a LC n. 142/2013 não se refere à concessão de aposentadoria a servidores públicos com deficiência, uma vez que se encontram vinculados a regimes próprios de previdência social. Consoante o disposto no art. 61, inciso II, alínea c, da Constituição Federal, é de iniciativa privativa do presidente da República a proposição de leis que disponham sobre servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria. 173 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA dora de deficiência), o fato irrecusável é que, com a superveniência da Lei Complementar 142, de 08/05/2013, esta Corte – ao estender à situação de servidores portadores de deficiência (ou de necessidades especiais), por “analogia legis”, referido diploma legislativo – tem rejeitado pretensões recursais que buscam reformar decisões, como a proferida nesta causa, que reconheceu, em favor de agentes públicos nas condições do art. 40, § 4º, I, da Constituição Federal, o direito à aposentadoria especial. Com efeito, o Supremo Tribunal Federal firmou entendimento no sentido de ser aplicável, por analogia, à aposentadoria especial do servidor público portador de deficiência, a Lei Complementar 142, de 08/05/2013, editada para disciplinar a aposentação de pessoa com deficiência (ou com necessidades especiais) segurada do Regime Geral de Previdência Social (CF, art. 201, § 1º), como se vê de inúmeros precedentes [...]. (MI 3322, relator ministro Celso de Mello, Pleno, Julgamento em 1º.8.2014) Importa registrar que, na mesma assentada, esclareceu-se que decisões proferidas pelo STF nos mandados de injunção impetrados contra omissão na regulamentação do referido art. 40, § 4º, I, da Constituição não determinam a concessão da aposentadoria especial pretendida pelo impetrante, mas tão somente impõem à autoridade administrativa a análise do caso concreto à luz da Lei Complementar n. 142/2013, que disciplina a aposentadoria especial do trabalhador com deficiência vinculado ao Regime Geral de Previdência Social. Ainda no que tange à aposentadoria do servidor público com deficiência, foi editada pelo Poder Executivo Federal a Instrução Normativa MPS/SPPS n. 2, de 13 de fevereiro de 2014 – DOU de 17 de fevereiro de 2014 –, que estabelece instruções para o reconhecimento, pelos Regimes Próprios de Previdência Social da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, do direito dos servidores públicos com deficiência, amparados por ordem concedida em Mandado de Injunção, à aposentadoria com requisitos e critérios diferenciados de que trata o § 4º, inciso I, do art. 40 da Constituição Federal. 174 2.2 Pensão por morte e pessoa com deficiência no RGPS O valor da pensão por morte corresponde a 100% do valor da aposentadoria que o segurado recebia ou a que teria direito se estivesse aposentado por invalidez na data de seu falecimento, e deve ser rateado entre todos os pensionistas, em partes iguais. De acordo com o texto legal, reverterá em favor dos demais a parte daquele cujo direito à pensão cessar. Cumpre registrar que incumbe ao dependente fazer sua inscrição, que será promovida quando do requerimento do benefício a que tiver direito (art. 17, § 1º, da Lei n. 8.213/1991, com a redação dada pela Lei n. 10.403, de 8 de janeiro de 2002). São considerados beneficiários do RGPS, na condição de dependentes do segurado, nos termos do art. 16 da Lei n. 8.213/1991: I – o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave; II – os pais; III – o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave. [Grifos nossos]. Ressalte-se a existência de uma ordem hierárquica entre os dependentes. A título de exemplo, a existência de dependente pre- MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Entre os benefícios de prestação continuada do RGPS, no que se refere especificamente à pessoa com deficiência, merece destaque a pensão por morte. Assegurada pelos arts. 74 a 79 da Lei n. 8.213/1991, a pensão por morte é devida ao conjunto de dependentes do segurado que falecer, aposentado ou não, proibindo-se o recebimento do benefício a quem tenha sido condenado em última instância pela prática de crime doloso que tenha resultado na morte do segurado (art. 74, § 1º, da Lei n. 8.213/1991). Esse benefício teve as regras de concessão recentemente alteradas pelas Leis n. 13.135 e 13.183, de 2015. 175 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA visto no inciso I exclui os pertencentes às demais classes do direito às prestações. Em síntese, os filhos com deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave constituem categorias específicas de dependência, para fins de habilitação ao recebimento de pensão por morte e, juntamente com os demais de sua classe, têm dependência presumida e preferência em relação às outras classes de dependentes do segurado. Igualmente, irmão que tenha deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave também constitui categoria distinta para habilitação ao referido benefício previdenciário, mas, de acordo com a ordem estabelecida pela lei, só terá direito ao recebimento se não houver dependentes das classes precedentes, e a sua dependência econômica do segurado deve ser comprovada. O direito à pensão cessará nas seguintes situações: I) pela morte do pensionista; II) para o filho, a pessoa a ele equiparada ou o irmão, de ambos os sexos, ao completar 21 anos, salvo se for inválido ou tiver deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave; III) para o cônjuge ou companheiro(a), se inválido ou com deficiência, pela cessação da invalidez ou pelo afastamento da deficiência, respeitados os períodos mínimos estabelecidos no art. 77, § 2º, inciso V, alíneas b e c, da Lei n. 8.213/1991. Relativamente ao cônjuge ou companheiro(a) com deficiência, a pensão em princípio é vitalícia, exceto se ocorrer a cessação da invalidez ou o afastamento da deficiência, situações em que serão respeitados os períodos mínimos citados acima, que estabelecem regras temporais para manutenção do recebimento da pensão, considerando-se número de contribuições, tempo de casamento ou união estável do segurado e idade do beneficiário na data de óbito do segurado. Registre-se que o art. 77, § 6º, da Lei n. 8.213/1991, incluído pela Lei n. 13.183/2015, prevê que "o exercício de atividade remunerada, inclusive na condição de microempreendedor individual, não 176 impede a concessão ou manutenção da parte individual da pensão do dependente com deficiência intelectual ou mental ou com deficiência grave". A mudança legislativa introduzida pela Lei n. 12.470, de 2011, que alterou os incisos I e III do art. 16 e o art. 77 da Lei n. 8.213/1991, atendeu a demanda antiga do movimento em defesa das pessoas com deficiência, pois permitiu a manutenção da pensão por morte do dependente com deficiência intelectual e mental sob curatela e o exercício concomitante de atividade remunerada. No entanto, previa-se a redução de 30% do valor da pensão quando a pessoa com deficiência intelectual ou mental exercesse atividade remunerada, valor que deveria ser integralmente restaurado na hipótese de extinção da relação de trabalho ou de atividade empreendedora. De fato, as redações ora vigentes dos incisos I e III do art. 16 e do § 6º do art. 77 são mais favoráveis, pois, além de incluírem a pessoa com deficiência grave, não mais exigem a interdição da pessoa com deficiência intelectual ou deficiência mental para acesso ao benefício, assim como possibilitam a manutenção da condição de dependência do segurado e o exercício concomitante de atividade remunerada, sem redução do valor da pensão. Certamente, o legislador buscou tornar a norma mais protetiva em razão da maior dificuldade de inserção laboral desses tipos de deficiência, ao mesmo tempo em que incentivou sua inserção no mundo do trabalho. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Cabe destacar a importância dessa previsão legal para o exercício do direito ao trabalho da pessoa com deficiência. Originalmente, o art. 16 da Lei n. 8.213/1991 previa que filho ou irmão inválido do segurado fosse considerado beneficiário do Regime Geral de Previdência Social, independentemente de idade. Já o § 3º do art. 77 estabelecia que a parte individual da pensão extinguir-se-ia para o pensionista inválido pela cessação da invalidez. Nesse contexto, para o dependente do segurado ser considerado inválido e, consequentemente, ter direito à pensão por morte, não poderia trabalhar ou exercer qualquer atividade remunerada, pois perderia o direito a recebê-la. 177 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA 2.2.1 Pensão e pessoa com deficiência no regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais (Lei n. 8.112, de 1990) A Lei n. 13.135/2015 também alterou dispositivos da Lei n. 8.112/1990 no que se refere à pensão por morte (arts. 215 a 225). Da mesma forma como ocorre na Lei n. 8.213/1991, que dispõe sobre os benefícios do RGPS, a partir da data do óbito do servidor, a pensão é devida aos dependentes nas hipóteses legalmente previstas, e seu valor deve ser dividido em partes iguais entre os beneficiários. Especificamente sobre o dependente com deficiência, constituem categorias de dependência presumida, nos termos da Lei n. 13.135/2015, art. 217, inciso IV, alíneas c e d, o filho de qualquer condição que tenha deficiência grave; e o que tenha deficiência intelectual ou mental, nos termos do regulamento. Igualmente, o inciso VI do mesmo dispositivo assegura a condição de dependente ao irmão que comprove dependência econômica do servidor e atenda a um dos requisitos previstos no inciso IV, como ter deficiência grave ou deficiência intelectual ou mental, nos termos do regulamento. Aqui também se observa hierarquia de dependência, e as categorias previstas nos incisos I a IV do mencionado artigo têm precedência sobre as demais. Além de outras hipóteses previstas nos incisos I e II do art. 222 da Lei n. 8.112/1990, acarretam a perda da qualidade de beneficiário para o cônjuge, companheiro(a), filho(a) ou irmão (irmã) com deficiência, nos termos do inciso III do citado dispositivo, a cessação da invalidez, em se tratando de beneficiário inválido, o afastamento da deficiência, em se tratando de beneficiário com deficiência, ou o levantamento da interdição, em se tratando de beneficiário com deficiência intelectual ou mental que o torne absoluta ou relativamente incapaz, respeitados os períodos mínimos decorrentes da aplicação das alíneas "a" e "b" do inciso VII. [Grifos nossos]. 178 Importa destacar que, em relação ao filho (filha) ou irmão (irmã) com deficiência dependente do servidor público, embora tanto a Lei n. 8.213/1991, que trata do RGPS, quanto a Lei n. 8.112/1990 tenham sido alteradas pela mesma Lei n. 13.135/2015, foram estabelecidas condições diversas para acesso ao benefício pensão por morte, conforme demonstra o seguinte quadro comparativo: Lei n. 8.213, de 24 de julho de 1991 Art. 16. São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado: I - o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave; (Redação dada pela Lei n. 13.146, de 2015) II - os pais; III - o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave; (Redação dada pela Lei n. 13.146, de 2015) [...] Lei n. 8.112, de 11 de dezembro de 1990 Art. 217. São beneficiários das pensões: [...] IV - o filho de qualquer condição que atenda a um dos seguintes requisitos: a) seja menor de 21 (vinte e um) anos; b) seja inválido; c) tenha deficiência grave; (Vide Lei n. 13.135, de 2015) d) tenha deficiência intelectual ou mental, nos termos do regulamento; [...] MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Conforme estipulado no RGPS, para cônjuge ou companheiro(a) com deficiência, a pensão em princípio é vitalícia, exceto se ocorrer a cessação da invalidez ou o afastamento da deficiência, situações em que serão respeitados os períodos mínimos estabelecidos no art. 222, inciso VII, alíneas a e b, da referida Lei n. 8.112/1990, que determinam regras temporais para manutenção do recebimento da pensão, considerando-se número de contribuições, tempo de casamento ou união estável do segurado e idade do beneficiário na data de óbito do segurado. 179 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Lei n. 8.213, de 24 de julho de 1991 Art. 77 [...] § 2º O direito à percepção de cada cota individual cessará: (Redação dada pela Lei n. 13.135, de 2015) [...] II - para o filho, a pessoa a ele equiparada ou o irmão, de ambos os sexos, ao completar vinte e um anos de idade, salvo se for inválido ou tiver deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave; (Redação dada pela Lei n. 13.183, de 2015) [...] § 6º O exercício de atividade remunerada, inclusive na condição de microempreendedor individual, não impede a concessão ou manutenção da parte individual da pensão do dependente com deficiência intelectual ou mental ou com deficiência grave. (Incluído pela Lei n. 13.183, de 2015) [Grifos nossos]. Lei n. 8.112, de 11 de dezembro de 1990 Art. 222. Acarreta perda da qualidade de beneficiário: [...] III - a cessação da invalidez, em se tratando de beneficiário inválido, o afastamento da deficiência, em se tratando de beneficiário com deficiência, ou o levantamento da interdição, em se tratando de beneficiário com deficiência intelectual ou mental que o torne absoluta ou relativamente incapaz, respeitados os períodos mínimos decorrentes da aplicação das alíneas “a” e “b” do inciso VII; (Redação dada pela Lei nº 13.135, de 2015) [Grifos nossos]. Observações: Para a vigência dos dispositivos das Leis n. 8.213/1991 e 8.112/1990 supramencionados, que tratam da pensão por morte para filhos ou irmãos com deficiência grave, deficiência intelectual ou deficiência mental, as leis a seguir relacionadas estabeleceram as seguintes carências: 180 Lei n. 13.135, de 17 de junho de 2015 Art. 6° Esta Lei entra em vigor em: I - 180 (cento e oitenta) dias a partir de sua publicação, quanto à inclusão de pessoas com deficiência grave entre os dependentes dos segurados do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) e do Regime Próprio de Previdência Social (RPPS) previstos na Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990; II - 2 (dois) anos para a nova redação: a) do art. 16, incisos I e III, e do art. 77, § 2º, inciso IV, da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, em relação às pessoas com deficiência intelectual ou mental; b) do art. 217, inciso IV, alínea "c", da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990; [...] Art. 8º Esta Lei entra em vigor: I - em 3 de janeiro de 2016, quanto à redação do art. 16 e do inciso II do § 2º do art. 77 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991; II - em 1º de julho de 2016, quanto à redação do § 5º do art. 29-C da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991; III - na data de sua publicação, para os demais dispositivos. Lei n. 13.146, de 6 de julho de 2015 Art. 127. Esta Lei entra em vigor após decorridos 180 (cento e oitenta) dias de sua publicação oficial. É preciso chamar atenção para aparente equívoco na vigência de dispositivo referente à deficiência grave, no âmbito da Lei n. 8.112/1990. Com efeito, o inciso I do art. 6º da Lei n. 13.135/2015 dispõe que a inclusão da pessoa com deficiência grave entre os segurados do RGPS e do RPPS, prevista na Lei n. 8.112/1990, deve entrar em vigor em 180 dias da publicação daquela lei. Por sua vez, o inciso II, alínea b, do mesmo art. 6º dispõe que entrará em vigor em 2 anos a nova redação do art. 217, inciso IV, alínea c, da Lei n. 8.112/1990, que se refere à deficiência grave. Assim, em princípio, a lei prevê dois prazos de MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Lei n. 13.183, de 4 de novembro de 2015 181 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA vigência – 180 dias e 2 anos – para a referida alínea c: o primeiro inclui a "deficiência grave" como uma categoria de dependência do servidor para efeito de habilitação ao benefício da pensão; o segundo estabelece o prazo para que se possa acessar o referido direito. 2.3 Desafios e perspectivas para a implantação dos direitos à previdência social (re)assegurados na Lei n. 13.146, de 2015 No capítulo referente ao direito à previdência social, o legislador optou por dar destaque apenas à regra previdenciária que garante tratamento diferenciado ao segurado com deficiência. Assim, o art. 41 da Lei n. 13.146/2015 – LBI – reafirma o direito da pessoa com deficiência à aposentadoria, com remissão à Lei Complementar n. 142, de 2013, que regulamenta a concessão de aposentadoria da pessoa com deficiência segurada do Regime Geral de Previdência Social de que trata o § 1º do art. 201 da Constituição Federal. Por oportuno, convém destacar que, não obstante a Lei Complementar n. 142 tenha sido aprovada em 2013, e o decreto que a regulamenta tenha sido editado no início de 2014, nem o último Anuário Estatístico da Previdência Social (AEPS)7 nem o mais recente Boletim Estatístico da Previdência Social (BEPS), relativo ao mês de abril de 2016, fazem referência explícita à aposentadoria da pessoa com deficiência. Possivelmente, os dados referentes a essa aposentadoria especial estão diluídos naqueles relativos à aposentadoria por contribuição ou à aposentadoria por idade. No entanto, é desejável que o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) apresente essas informações em um grupo específico, de forma que gestores, parlamentares, 7 O Anuário Estatístico da Previdência Social e o Boletim Estatístico da Previdência Social estão disponíveis no sítio eletrônico: . Acesso em: 23 jun. 2016. 182 Igualmente, vê-se necessidade premente de regulamentação da aposentadoria do servidor público com deficiência, que atualmente se pauta, por analogia, na norma regulamentadora da aposentadoria do segurado com deficiência no âmbito do RGPS. A situação atual causa insegurança jurídica e dificulta o exercício desse direito, uma vez que os servidores com deficiência têm de impetrar mandado de injunção para garantir o exercício de seu direito. Consoante o disposto no art. 61, inciso II, alínea c, da Constituição Federal, é de iniciativa privativa do presidente da República a proposição de leis que disponham sobre servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria. Ademais, nas Disposições Finais e Transitórias da LBI, o art. 101 modifica a Lei n. 8.213/1991, que dispõe sobre os benefícios do RPGS, especificamente no que se refere à habilitação de beneficiários do segurado à pensão por morte, equiparando a presunção de dependência econômica do filho com deficiência intelectual ou com deficiência mental e com deficiência grave ao cônjuge, companheira, companheiro e filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 anos ou inválido (art. 16, inciso I, Lei n. 8.213/1991). Na sequência, também inclui na mesma classe do irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 anos ou inválido, o irmão com deficiência intelectual ou mental e com deficiência grave (art. 16, inciso III, Lei n. 8.213/1991). Como já mencionado no subitem 2.2, essa equiparação representa um avanço em relação à redação dada a esses dispositivos pela Lei n. 12.470/2011, na medida em que deixa de exigir a interdição da pessoa com deficiência intelectual ou mental para elegibilidade ao benefício e inclui a pessoa com deficiência grave como beneficiário MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Ministério Público e sociedade civil possam acompanhar a evolução do número de aposentados com deficiência e avaliar em que medida essa ação, que tem previsão constitucional, está atingindo os objetivos esperados ou necessita de aperfeiçoamento para alcançar um contingente maior de segurados com deficiência. 183 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA do RGPS, na condição de dependente do segurado, sendo-lhe permitido o exercício de atividade remunerada sem perda dessa condição, nos termos do § 6º, art. 77, da Lei n. 8.213/1991. Cumpre ressaltar, no entanto, que ainda não estão disponíveis, no Anuário Estatístico da Previdência Social ou no Boletim Estatístico da Previdência Social, dados específicos sobre os dependentes com deficiência intelectual ou mental ou com deficiência grave que já se habilitaram ao benefício, o que dificulta avaliar a eficácia dessa previsão legal. Importa ressaltar que a Instrução Normativa INSS/PRES n. 77, de 21 de janeiro de 20158, que “estabelece rotinas para agilizar e uniformizar o reconhecimento de direitos dos segurados e beneficiários da Previdência Social, com observância dos princípios estabelecidos no art. 37 da Constituição Federal de 1988", nos dispositivos que tratam dos dependentes – arts. 121 a 144 – e do benefício pensão por morte – arts. 364 a 380 – até o momento não foi atualizada em relação às alterações instituídas na Lei n. 8.213/1991, pelas Leis n. 13.135/2015, 13.146/2015 e 13.183/2015 no que tange aos dependentes e cônjuges com deficiência. É relevante salientar que a Lei n. 8.112/1990, com a redação dada pela Lei n. 13.135/2015, dispõe que são beneficiários, com dependência presumida do servidor, o filho de qualquer condição que “tenha deficiência grave” ou que “tenha deficiência intelectual ou mental, conforme regulamento" (art. 217, inciso IV, alíneas c e d, da Lei n. 8.112/1990). Por seu turno, o inciso III do art. 222 estabelece como uma das causas de perda da qualidade de beneficiário “[...] o afastamento da deficiência, em se tratando de beneficiário com deficiência, ou o levantamento da interdição, em se tratando de beneficiário com deficiência intelectual ou mental que o torne absoluta ou relativamente incapaz [...]”. Em síntese, diferentemente do que ocorre para o dependente com deficiência intelectual ou mental do segurado do RGPS, regido 8 Texto integral disponível em: . Acesso em: 27 jun. 2016. 184 pela Lei n. 8.213/1991, os dependentes com deficiência intelectual ou mental do servidor público regido pela referida Lei n. 8.112/1990 terão de esperar a regulamentação desse dispositivo para poder exercer seu direito à dependência presumida. A previsão do mencionado art. 222, inciso III, da Lei n. 8.112/1990, todavia, vai de encontro ao disposto na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, porquanto não considera a capacidade legal plena da pessoa com deficiência, nos termos do artigo 12 da CDPD, assim como afronta os arts. 85 e 86 da Lei n. 13.146/2015, que dispõem, respectivamente, que "a curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial” e que, "para emissão de documentos oficiais, não será exigida a situação de curatela da pessoa com deficiência". Cabe destacar, ainda, que o art. 110-A da Lei n. 8.213/1991, inserido pela Lei n. 13.146/2015 (LBI), veda a exigência de apresentação de termo de curatela de titular ou de beneficiário com deficiência, no ato de requerimento de benefícios operacionalizados pelo INSS9. Aplicando-se por analogia o referido dispositivo da LBI ao dependente com deficiência intelectual ou mental do servidor público regido pela Lei n. 8.112/1990, não se pode aceitar que, para este último, seja-lhe imposta, como pré-condição para acesso ao benefício da pensão, a interdição judicial. 9 O dispositivo necessita de regulamentação, ainda pendente. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA De outro lado, importa registrar que, embora o legislador tenha deixado para o regulamento definir as condições em que a pessoa com deficiência intelectual ou mental será considerada dependente, o art. 222, inciso III, dispõe que acarreta a perda de qualidade de beneficiário o "levantamento da interdição, em se tratando de beneficiário com deficiência intelectual ou mental que o torne absoluta ou relativamente incapaz". Numa interpretação sistêmica, pode-se considerar que a lei já impõe, como condição de elegibilidade à pensão, a interdição do beneficiário com deficiência intelectual ou mental. 185 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Esse dispositivo visa deixar clara a impossibilidade da exigência prévia da curatela para que titular ou dependente com deficiência, em especial aqueles com deficiência intelectual ou mental, possam pleitear o reconhecimento de sua condição na seara previdenciária e o eventual recebimento do benefício previdenciário. A curatela, por conseguinte, não mais pode configurar-se como medida restritiva de direitos, mas tão somente como medida protetiva de direitos, recaindo exclusivamente sobre atos de natureza patrimonial e negocial. Nesse sentido, sua concessão não pode ser condição ou requisito para o acesso ou gozo de direitos, a exemplo dos de natureza previdenciária. Também há de se ponderar se as disposições constantes da Lei n. 8.112/1990, no que se refere à exigência de regulamentação das categorias "deficiência intelectual" e "deficiência mental", não constituem ofensa ao princípio constitucional da isonomia, haja vista que, em última análise, estar-se-ia tratando de forma diferenciada idênticos destinatários das normas, quais sejam, as pessoas com deficiência intelectual ou mental, para fins de recebimento de um mesmo benefício previdenciário, a pensão por morte. Não é justo que, no Regime Geral da Previdência Social, as pessoas com deficiência intelectual ou mental tenham dependência presumida do segurado, sem exigência legal de que regulamento defina como esse direito será exercido, enquanto no Regime Próprio de Previdência do servidor público, regido pela Lei n. 8.112/1990, os dependentes com deficiência intelectual ou mental necessitem aguardar a edição de norma infralegal que detalhe os requisitos a serem cumpridos para habilitação ao exercício de seu direito, além da exigência implícita da interdição. Igualmente, convém registrar que os prazos de vigência dos dispositivos em análise, nas duas leis, são diversos. Enquanto os arts. 16, incisos I e III, e 77, § 2º, inciso II, e § 6º, da Lei n. 8.213/1991 já estão em vigor, garantindo-se, por conseguinte, ao filho ou irmão com deficiência grave, com deficiência intelectual ou mental, dependente do segurado do RGPS, a concessão ou manutenção da pensão por morte, 186 ainda que exerça atividade remunerada, o acesso ao direito previsto no art. 217, inciso IV, alínea c, só passou a viger dois anos após a publicação da Lei n. 13.135/2015, isto é, em junho de 2017. Possivelmente, será necessária a judicialização da questão para que os dependentes com deficiência grave, deficiência intelectual ou mental do servidor público regido pela Lei n. 8.112/1990 possam, em respeito ao princípio constitucional da isonomia, exercer esses direitos nas mesmas condições asseguradas aos dependentes dos segurados do RGPS. Por fim, cabe destacar que o art. 95 da Lei n. 13.146/2015 reproduz, em larga medida, alteração promovida pela Lei n. 12.896/2013 ao Estatuto do Idoso (§§ 5º e 6º da Lei n. 10.741/2003), no sentido de vedar a exigência de comparecimento da pessoa com deficiência a órgãos públicos quando seu deslocamento, em razão de limitação funcional e de condições de acessibilidade, imponha-lhe ônus desproporcional e indevido. O dispositivo aponta os procedimentos a serem adotados quando for obrigatório o comparecimento da pessoa com deficiência, que incluem atendimento domiciliar ou representação por procurador constituído. Especificamente quanto ao atendimento na seara previdenciária, o legislador prevê a possibilidade de atendimento domiciliar pela perícia médica e social do INSS. 3 Pessoa com deficiência e assistência social No âmbito da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, a proteção social está prevista em seu artigo 28, com MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Acrescente-se que a Lei n 8.112/1990 não apresenta qualquer previsão de que o exercício de atividade remunerada, inclusive na condição de microempreendedor individual, não constitui impedimento para a concessão ou manutenção da parte individual da pensão do dependente com deficiência intelectual ou mental ou com deficiência grave. Importa destacar que tal previsão já consta do art. 77, § 6º, da Lei n. 8.213/1991, desde 2015. 187 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA destaque para a determinação de que os Estados-Partes devem assegurar o acesso de pessoas com deficiência, particularmente mulheres, crianças, idosos com deficiência e suas famílias, a programas de proteção social e de redução da pobreza e à assistência do Estado em relação aos gastos ocasionados pela deficiência, inclusive treinamento adequado, aconselhamento, ajuda financeira e abrigamento. Como um dos tripés da seguridade social, a assistência social caracteriza-se como política não contributiva e universal, prestada a quem, no curso da vida, encontrar-se em situação de risco e vulnerabilidade social. No que tange às pessoas com deficiência, o art. 203 da Constituição de 1988 lista como objetivos dessa política, especificamente, a habilitação e a reabilitação, bem como a promoção de sua integração na vida comunitária (compreendida, com o advento da Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, como inclusão na vida comunitária) e a garantia de um salário mínimo de benefício mensal ao idoso e à pessoa com deficiência que comprovar não ter condição de prover sua manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei (art. 203, caput e incisos I, IV e V, da CF/1988). Considerando que as ações socioassistenciais devem ser prestadas de forma descentralizada, à União cabe emitir as normas gerais sobre a estruturação e o financiamento das atividades e às esferas estadual e municipal competem a coordenação e a execução dos respectivos programas e serviços. Não obstante seja de responsabilidade estatal o comando da política de assistência social, as entidades beneficentes e de assistência social podem atuar de forma suplementar. Ademais, prevê-se a participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis (art. 204, incisos I e II, da CF/1988). A seguir, apresentamos informações sobre direitos da pessoa com deficiência à assistência social, em especial sobre o Benefício de Prestação Continuada (BPC) de que tratam os arts. 20 e 21 da Lei n. 8.742, de 7 de dezembro de 1993, e sobre os serviços oferecidos no 188 Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Ao final, abordamos os principais desafios e perspectivas para a implantação dos direitos à assistência social (re)assegurados na Lei n. 13.146/2015. 3.1 Pessoa com deficiência e Benefício de Prestação Continuada (BPC) O benefício consiste em um salário mínimo mensal pago à pessoa com deficiência e ao idoso que não possuam meios de prover sua manutenção ou de tê-la provida por sua família. De acordo com o § 3º do art. 20 da Lei n. 8.742/1993, "considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo". Enquanto o idoso deve ter 65 anos ou mais de idade e possuir renda familiar mensal per capita inferior a 1/4 do salário mínimo para elegibilidade ao benefício, a pessoa com deficiência, além de cumprir o mesmo critério de renda familiar exigido para o idoso, deve ser submetida à avaliação médica e social relativamente à sua capacidade de inserção e participação social, nos termos da definição de deficiência contida no § 2º do mencionado art. 20 da Lei n. 8.742/1993, que reproduz o conceito adotado pelo art. 2º, caput, da Lei n. 13.146/2015. Há previsão de revisão bianual das condições que deram origem à concessão do BPC, embora o Tribunal de Contas da União (TCU) informe que, desde 2003, a revisão prevista no art. 21 da Lei n. 8.742/1993 não vem sendo realizada (AC-2382-35/14-P, Ata n. 35/2014 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA O amparo assistencial previsto no art. 203, inciso V, da Constituição Federal, norma de eficácia limitada, foi regulamentado pelos arts. 20 e 21 da Lei n. 8.742, de 7 de dezembro de 1993, com as modificações introduzidas pelas Leis n. 12.435 e 12.470, de 2011, e 13.146, de 2015. Registre-se que o art. 40 da Lei n. 13.146/2015 reafirma o direito da pessoa com deficiência ao benefício assistencial, nos termos da Lei n. 8.742/1993. 189 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA - Plenário, Sessão de 19.9.2014). A gestão do BPC compete ao Ministério do Desenvolvimento Social, e sua operacionalização – concessão, realização de perícias, suspensão, interrupção etc –, ao Instituto Nacional do Seguro Social. Os recursos para custeio dos benefícios provêm do Fundo Nacional de Assistência Social (FNAS). Cabe destacar que o benefício não é destinado para uma categoria de deficiência, ou seja, se é física, mental, sensorial ou comportamental, nem associado a uma designação ou condição de saúde específica, tais como transtorno do espectro autista; cegueira; síndrome de Down; esquizofrenia; tetraplegia. Ao se avaliar a deficiência, não se leva em consideração apenas o atributo corporal ou as limitações funcionais dele decorrentes, mas também a existência de fatores sociais e ambientais que possam dificultar ou impedir o exercício da autonomia e participação social da pessoa com deficiência em igualdade de condições com as demais pessoas. É fato inconteste que o conceito de pobreza para fins de concessão do BPC é pouco abrangente e restringe sobremaneira o universo de pessoas elegíveis ao benefício. O critério de renda per capita familiar ora vigente desconsidera o custo inerente à deficiência, que impõe às famílias despesas com medicamentos específicos, cuidados especiais para melhorar a qualidade de vida, aquisição de tecnologias assistivas, assim como outros acompanhamentos que visam à habilitação ou reabilitação da pessoa com deficiência, como com os acompanhamentos por equipe multidisciplinar – terapeuta ocupacional, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, psicólogo, neurologista –, nem sempre disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS). Da mesma forma, esses custos se tornam progressivamente mais presentes na vida das famílias que possuem uma pessoa idosa, comprometendo fortemente a qualidade de vida desse grupo etário, em especial das pessoas em situação de maior dependência para o exercício de atividades básicas ou instrumentais da vida diária. É notório que a renda não reflete, por si só, a complexidade da pobreza, que é multifacetada e atinge as pessoas e grupos familiares 190 de variadas formas. Conforme já mencionado, gastos adicionais impostos pelo envelhecimento ou pela deficiência podem impactar sobremaneira a renda familiar e comprometer a subsistência do idoso ou da pessoa com deficiência. Destaque-se, contudo, que o Supremo Tribunal Federal, diante de recorrentes questionamentos judiciais pela admissibilidade de outros critérios de aferição da condição de miserabilidade para além da renda, reconheceu a repercussão geral sobre a matéria, posicionando-se pela inconstitucionalidade do critério de miserabilidade constante do § 3º do art. 20 da Lei n. 8.742/1993, por entendê-lo defasado frente às mais recentes leis (Reclamação n. 4.374/STF). Segundo o Ministro Gilmar Mendes, o § 3º do art. 20 da LOAS tornou-se inconstitucional porque houve um conjunto de alterações legislativas que adotaram outros parâmetros para a caracterização da condição de pobreza ou de miserabilidade, a exemplo da Lei n. 10.836, de 9 de janeiro de 2004, que criou o programa Bolsa Família. Conforme destacado no seu voto, essas leis abriram portas para a concessão do benefício assistencial fora dos parâmetros objetivos fixados pelo referido dispositivo da Lei n. 8.742/1993, autorizando, por consequência, juízes e tribunais a conceder o benefício, ainda que a renda familiar ultrapasse o requisito mínimo legalmente estabelecido. Nesse sentido, outros critérios que contribuam para comprovar a miserabilidade do postulante ao benefício assistencial podem ser considerados. Ademais, ressaltou que o valor de meio salário mínimo, MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Com efeito, a interpretação taxativa do órgão concessor quanto ao critério de renda estabelecido pelo § 3º do art. 20 da Lei n. 8.742/1993 para elegibilidade ao benefício afigura-se demasiado restritiva, porquanto impede que muitos idosos e pessoas com deficiência, com renda levemente superior ao limite estabelecido, possam ter direito ao benefício assistencial, não obstante se encontrem em situação de grande risco e vulnerabilidade social, sem acesso a direitos básicos de cidadania. 191 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA já adotado por outros programas de transferência de renda governamentais, é um indicador bastante razoável para comprovação da miserabilidade do solicitante. Em síntese, o STF dispôs que o limite de renda familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo não se reveste de natureza absoluta, admitindo-se que o idoso ou a pessoa com deficiência que postulem o benefício possam demonstrar, por outros meios, sua situação de miserabilidade. Contudo, a Corte Suprema declarou a inconstitucionalidade do dispositivo sem pronúncia de nulidade. Igualmente, importa destacar que o STF, ao julgar Recurso Extraordinário interposto pelo INSS (RE n. 580.963/PR – relator min. Gilmar Mendes), declarou, incidentalmente, a inconstitucionalidade por omissão parcial, sem pronúncia de nulidade, do art. 34, parágrafo único, do Estatuto do Idoso, o qual dispõe que o benefício assistencial já concedido a qualquer membro da família não será computado para fins do cálculo da renda per capita a que se refere o § 3º do art. 20 da LOAS. O Pretório Excelso considerou afronta ao princípio constitucional da isonomia a aplicação dessa exclusão apenas ao cálculo da renda per capita familiar para fins de concessão do BPC ao idoso, sem que a mesma sistemática seja adotada quando do cálculo da renda familiar per capita da pessoa com deficiência que postula o mesmo benefício assistencial. Além de considerar que não há justificativa plausível para discriminar as pessoas com deficiência em relação aos idosos, também não se pode discriminar os idosos beneficiários da assistência social em relação aos idosos titulares de benefícios previdenciários no valor de até um salário mínimo. Ressalte-se que a Advocacia-Geral da União (AGU), por meio da Instrução Normativa n. 2, de 9.7.2014, acolheu esse entendimento, dispensando a União de recorrer das decisões judiciais que sigam essa linha de raciocínio. Dessa forma, autoriza a desistência e a não interposição de recursos das decisões judiciais que, conferindo interpretação extensiva ao parágrafo único do art. 34 da Lei n. 10.741/2003, determi- 192 nem a concessão do benefício previsto no art. 20 da Lei n 8.742/1993, nos casos explicitados na referida instrução normativa10. Igualmente, a fim de flexibilizar o corte de renda familiar para elegibilidade ao benefício e incentivar a inserção laboral da pessoa com deficiência, o art. 105 da Lei n. 13.146/2015 alterou o art. 20 da Lei n. 8.742/1993 para excluir do cálculo da renda familiar os rendimentos decorrentes de estágio supervisionado e aprendizagem. Por oportuno, cabe registrar que a Lei n. 13.301, de 27 de junho de 2016, que “[d]ispõe sobre a adoção de medidas de vigilância em 10 A Instrução Normativa n. 2, de 9.7.2014, da AGU, explicita que fica dispensada a interposição de recursos das decisões judiciais nos seguintes casos: "Art. 1º [...] I) quando requerido por idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais, não for considerado na aferição da renda per capita prevista no artigo 20, § 3º, da Lei n. 8.742/93: a) o benefício assistencial, no valor de um salário mínimo, recebido por outro idoso com 65 anos ou mais, que faça parte do mesmo núcleo familiar; b) o benefício assistencial, no valor de um salário mínimo, recebido por pessoa com deficiência, que faça parte do mesmo núcleo familiar; c) o benefício previdenciário consistente em aposentadoria ou pensão por morte instituída por idoso, no valor de um salário mínimo, recebido por outro idoso com 65 anos ou mais, que faça parte do mesmo núcleo familiar; II) quando requerido por pessoa com deficiência, não for considerado na aferição da renda per capita prevista no artigo 20, § 3º, da Lei n. 8.742/93 o benefício assistencial: a) o benefício assistencial, no valor de um salário mínimo, recebido por idoso com 65 anos ou mais, que faça parte do mesmo núcleo familiar; b) o benefício assistencial, no valor de um salário mínimo, recebido por pessoa com deficiência, que faça parte do mesmo núcleo familiar. [...]” MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Para dar cumprimento parcial à decisão do STF referente ao § 3º do art. 20 da Lei n. 8.742/1993, a Lei n. 13.146/2015 acrescentou o § 11 ao referido dispositivo, estabelecendo que, na concessão do BPC, poderão ser utilizados outros elementos probatórios da condição de miserabilidade do grupo familiar e da situação de vulnerabilidade, conforme regulamento. Em suma, o novo dispositivo abre a possibilidade de flexibilização do critério objetivo de renda previsto no § 3º do art. 20 da Lei n. 8.742/1993, embora ainda esteja pendente de regulamentação pelo Poder Executivo. 193 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA saúde quando verificada situação de iminente perigo à saúde pública pela presença do mosquito transmissor do vírus da dengue, do vírus chikungunya e do vírus da zika; e altera a Lei nº 6.437, de 20 de agosto de 1977.”, cria uma exceção à regra geral de acesso ao BPC previsto no art. 20 da Lei n 8.742/1993, ao autorizar o pagamento de um benefício temporário, pelo máximo de três anos, "na condição de pessoa com deficiência, a criança vítima de microcefalia em decorrência de sequelas neurológicas decorrentes de doenças transmitidas pelo Aedes aegypti". Para os demais beneficiários, o benefício é de dois anos, com revisão bianual para avaliar se permanecem as condições que levaram à sua concessão. Essa lei dispõe, ainda, que o referido benef ício será concedido após a cessação do gozo do salário-maternidade originado pelo nascimento da criança vítima de microcefalia. No mesmo artigo, estabelece que "a licença-maternidade prevista no art. 392 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, será de cento e oitenta dias no caso das mães de crianças acometidas por sequelas neurológicas decorrentes de doenças transmitidas pelo Aedes aegypti, assegurado, nesse período, o recebimento de saláriomaternidade previsto no art. 71 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991", e que essa previsão se aplica, no que couber, à segurada especial, contribuinte individual, facultativa e trabalhadora avulsa (art. 18, caput e §§ 1º e 3º, da Lei n. 13.301/2016). 3.2 Atenção à pessoa com deficiência no Sistema Único de Assistência Social (SUAS) O SUAS, sistema público não contributivo, descentralizado e participativo, responsável pela organização e gestão da oferta de programas, serviços e benefícios da política pública de assistência social, estrutura-se em duas vertentes: Proteção Social Básica (PSB), que abrange serviços, ações e benefícios de caráter preventivo, com a finalidade de evitar o agravamento das vulnerabilidades e riscos 194 sociais; e Proteção Social Especial (PSE), que tem por objetivo as prestações de caráter protetivo e especializado, quando há iminência ou já ocorreu violação de direitos, a fim de resgatar a dignidade e as condições de vida das famílias ou indivíduos. A PSE subdivide-se em duas modalidades: proteção de média complexidade, com foco nas famílias e indivíduos em situações de negligência, abandono, ameaça, maus tratos, violações e discriminações sociais; e de alta complexidade, com foco em famílias e indivíduos que se encontram sem referência, ou em situação de ameaça temporária que demande o afastamento do núcleo familiar ou comunitário. um processo que envolve um conjunto articulado de ações de diversas políticas no enfrentamento das barreiras implicadas pela deficiência e pelo meio, cabendo à assistência social ofertas próprias para promover o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários, assim como a autonomia, a independência, a segurança, o acesso aos direitos e à participação plena e efetiva na sociedade. Igualmente, define que habilitação e reabilitação, no campo da assistência social, "caracterizam-se por meio da Vigilância Socioassistencial, Proteção Social, Defesa e Garantia dos Direitos". De acordo com a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais, aprovada pela Resolução CNAS n. 109, de 11 de novembro de 2009, na PSB é oferecido o Serviço de Proteção Social Básica no Domicílio para Pessoas com Deficiência e Idosas. O foco desse serviço é o desenvolvimento de ações de apoio, informação e orientação à pessoa e ao grupo familiar para evitar situações de exclusão, isolamento e fragilização ou rompimento de vínculos, assim como o encaminhamento dos indivíduos e famílias aos serviços socioassistenciais e a outras políticas públicas que possibilitem o exercício dos MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Consoante a Resolução n. 34, de 28 de novembro de 2011, do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), a habilitação e reabilitação da pessoa com deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária, no campo da assistência social, consistem em 195 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA direitos de cidadania e sua inclusão social. São usuários preferenciais os beneficiários do Benefício de Prestação Continuada ou membros de famílias beneficiárias de programas de transferência de renda. De abrangência municipal, o referido serviço é coordenado pelo Centro de Referência de Assistência Social (CRAS). Na PSE, que tem como alvo o atendimento individual e familiar especializado de situações que envolvam ameaça ou violação de direitos, no parâmetro de média complexidade, é oferecido o Serviço de Proteção Social Especial para pessoas com deficiência, idosas e suas famílias, que pode ser ofertado no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), nas unidades referenciadas, no domicílio e em Centros-Dia. O referido serviço destina-se a pessoas com deficiência e idosos com algum grau de dependência para o exercício de atividades da vida diária11, seus cuidadores e membros do grupo familiar, que sejam preferencialmente beneficiários do BPC ou de programas governamentais de transferência de renda. Além da promoção do acesso a serviços e benefícios socioassistenciais e a outras políticas públicas, busca-se apoiar o cuidador e a família em sua função protetiva, por meio de orientações, capacitação e cooperação intrafamiliar e comunitária. No parâmetro de alta complexidade, mais voltado para pessoas em situação de abandono ou com vínculos familiares muito fragilizados ou rompidos, é oferecido o Serviço de Acolhimento Institucional, na modalidade de residência inclusiva. A definição de "residência inclusiva" é originária da Resolução do Conselho Nacional de 11 De acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), cuidados de longa duração consistem em "uma gama de serviços demandados por pessoa com grau reduzido de capacidade funcional, física ou cognitiva, e que é constantemente dependente, por um período de tempo longo, de ajuda para a realização de atividades básicas da vida diária, como banhar-se, vestir-se, alimentar-se, sentar-se ou levantar-se de uma cama ou de uma cadeira, deslocar-se e usar o banheiro. Este componente de cuidado pessoal é muitas vezes provido em combinação com procedimentos de atenção à saúde, como administração de medicamentos, limpeza de ferimentos, alívio da dor, serviços de prevenção e reabilitação e cuidados paliativos. Cuidados de longa duração também podem incluir cuidados relacionados a apoios para a realização de atividades instrumentais, como preparação de refeições, limpeza da casa, compras e transporte” (COLOMBO et al., 2011). 196 Assistência Social n. 109, de 11 de novembro de 2011, que estabelece como objetivos específicos do serviço de acolhimento em residências inclusivas "desenvolver capacidades adaptativas para a vida diária, promover a convivência mista entre residentes de diversos graus de dependência, promover o acesso à rede de qualificação e requalificação profissional com vistas à inclusão produtiva". Destina-se a jovens e adultos com deficiência que não dispõem de condições de autossustentabilidade, de retaguarda familiar temporária ou permanente ou que estejam em processo de desligamento de instituições de longa permanência. O acesso a esse equipamento dá-se por requisição de políticas setoriais, dos CREAS e demais serviços socioassistenciais do SUAS, dos Ministérios Públicos ou do Poder Judiciário. X - residências inclusivas: unidades de oferta do Serviço de Acolhimento do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) localizadas em áreas residenciais da comunidade, com estruturas adequadas, que possam contar com apoio psicossocial para o atendimento das necessidades da pessoa acolhida, destinadas a jovens e adultos com deficiência, em situação de dependência, que não dispõem de condições de autossustentabilidade e com vínculos familiares fragilizados ou rompidos. Nota-se que a transposição da definição desse equipamento socioassistencial para o texto da LBI tem como objetivo o reforço de uma política de Estado destinada ao acolhimento de jovens e adultos com deficiência, em situação de dependência, que atendam a requisitos de vulnerabilidade, tais como rompimento ou fragilização de vínculos familiares, ausência de condições de autossustentabilidade, de retaguarda familiar temporária ou permanente, ou que, em atendimento ao novo paradigma da inclusão social, estejam em processo de desligamento de instituições de longa permanência. No capítulo dedicado ao direito à habilitação e à reabilitação, a Lei n. 13.146/2015 estabelece, no art. 17, a seguinte previsão, verbis: MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA O art. 3º, inciso X, da Lei n. 13.146/2015 apresenta a seguinte definição de residências inclusivas: 197 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Art. 17. Os serviços do SUS e do SUAS deverão promover ações articuladas para garantir à pessoa com deficiência e sua família a aquisição de informações, orientações e formas de acesso às políticas públicas disponíveis, com a finalidade de propiciar sua plena participação social. Parágrafo único. Os serviços de que trata o caput deste artigo podem fornecer informações e orientações nas áreas de saúde, de educação, de cultura, de esporte, de lazer, de transporte, de previdência social, de assistência social, de habitação, de trabalho, de empreendedorismo, de acesso ao crédito, de promoção, proteção e defesa de direitos e nas demais áreas que possibilitem à pessoa com deficiência exercer sua cidadania. [...] Como política de acesso ao sistema público de atenção à pessoa com deficiência, a assistência social deve estruturar seus serviços para ofertar informações necessárias e suficientes às pessoas com deficiência e seus familiares – atendidos seus interesses e anseios e respeitadas suas potencialidades e autonomia – sobre as diversas políticas públicas destinadas à sua habilitação, reabilitação e ao acesso a direitos, garantido o exercício da cidadania, em igualdade de condições com as demais pessoas. A intenção do legislador, nesse dispositivo, é de configurar um olhar da assistência social como política integradora das demais políticas públicas. Além disso, a previsão busca operacionalizar disposições constantes do artigo 26 da Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que determinam que os Estados-Partes deverão rever seus serviços e programas de habilitação e reabilitação, particularmente nas áreas de saúde, emprego, educação e assistência social, para apoiar a participação e inclusão da pessoa e seus familiares na comunidade em todos os aspectos da vida social. Outrossim, embora não se trate expressamente de um benefício assistencial, considera-se pertinente a menção ao auxílio198 Nota-se, no entanto, que o dispositivo não é autoexecutável, visto que ainda carece de atuação legislativa futura para que lhe seja garantida a eficácia plena. Permanecem, pois, ausentes de definição, a natureza do benefício – se assistencial ou previdenciária – sua operacionalização, bem como a definição de seu valor e da sua fonte de custeio, nos termos do art. 195, § 5º, da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, e da Lei Complementar n. 101, de 4 de maio de 2000. 3.3 Desafios e perspectivas para a implantação do direito à assistência social (re)assegurados na Lei n. 13.146, de 2015 A Lei n. 13.146/2015, ao dispor sobre o direito à assistência social (arts. 39 e 40), busca reafirmar o direito da pessoa com deficiência e de sua família a essa proteção social, que deve desenvolver programas, projetos, serviços e benefícios com vistas a garantir a segurança da renda, da acolhida, da habilitação e da reabilitação, do desenvolvimento da autonomia e da convivência familiar e comunitária, com a finalidade última de acesso a direitos e plena participação social. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA inclusão, instituído pelo art. 94 da Lei n. 13.146/2015. O auxílio-inclusão consiste em uma renda suplementar, a ser paga pelo Poder Público às pessoas com deficiência moderada ou grave que recebam o Benefício da Prestação Continuada (BPC) previsto no art. 20 da Lei n. 8.742/1993, desde que passem a exercer atividade remunerada que as enquadre como seguradas obrigatórias do Regime Geral da Previdência Social. O legislador ordinário previu que também terão o direito ao auxílioinclusão aquelas pessoas já inseridas no mundo do trabalho e que, em algum momento nos últimos cinco anos, tenham recebido o BPC. Essa medida se fez necessária para evitar que pessoas com deficiência já inseridas no mundo do trabalho optem por deixar de exercer atividade remunerada, para voltar a receber o BPC e, posteriormente, buscar reinserção no mercado de trabalho e receber o auxílio-inclusão. 199 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Destarte, os serviços e benefícios oferecidos no âmbito do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) objetivam apoiar as pessoas com deficiência e suas famílias em situações de risco e de vulnerabilidade, seja por fragilização de vínculos e/ou ameaça ou violação de direitos. Ademais, a LBI assinala que os serviços socioassistenciais, no âmbito do SUAS, que se destinem às pessoas com deficiência em situação de dependência, deverão contar com cuidadores sociais para cuidados básicos e instrumentais. No entanto, essa última previsão não atende a uma demanda histórica das pessoas com deficiência, que é o amplo apoio estatal no cuidado de pessoas com maior restrição de autonomia para o exercício de atividades da vida diária. Sem deixar de reconhecer os avanços obtidos com os serviços oferecidos pelos SUAS, o alcance das ações ainda é bastante limitado, situação que se torna mais dramática pelos cortes de renda observados para elegibilidade preferencial aos serviços, quais sejam, renda per capita familiar inferior a ¼ do salário mínimo para beneficiários do BPC e renda de até ½ salário mínimo para famílias inscritas no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico). É notório o custo que a deficiência impõe ao orçamento familiar, pois são constantes as demandas por medicamentos, ações terapêuticas, tecnologias assistivas nem sempre disponíveis na rede pública, além da necessidade de cuidador integral para pessoas com maiores limitações funcionais. Muitas vezes, um membro do grupo familiar tem de se afastar do mundo do trabalho formal para prestar o cuidado necessário à pessoa com deficiência, o que compromete ainda mais a renda das famílias. Em outros casos, a família precisa arcar com o custo de um cuidador ou atendente pessoal da pessoa com deficiência, que se eleva, em geral, pela necessidade de estrita observância do pagamento dos direitos estabelecidos na Lei Complementar n. 150, de 1º de junho de 2015, por ser esse trabalhador enquadrado, em regra, na categoria de empregado doméstico. 200 Relativamente à alteração promovida pela Lei n. 13.146/2015 no art. 20 da Lei n. 8.742/1993, para incluir dispositivo que prevê a possibilidade de utilização de outros elementos probatórios da condição de miserabilidade do grupo familiar e da situação de vulnerabilidade, conforme regulamento, consideramos que, não obstante a intenção do legislador de flexibilizar o rígido critério de renda familiar para elegibilidade ao benefício, qual seja, renda familiar per capita inferior a ¼ do salário, a espera pela regulamentação do dispositivo pode adiar indefinidamente a efetivação do direito previsto. Cabe ressaltar que, embora declarada a inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade, pelo STF, do § 3º do art. 20 da Lei n. 8.742/1993 (LOAS), e do art. 34, parágrafo único, da Lei n. 10.741/2003 (Estatuto do Idoso), ainda não houve atuação legislativa no sentido de atender aos ditames do Pretório Excelso. Assim, o caminho para que se possa dar uma interpretação mais extensiva desses dispositivos ainda passa pela judicialização da questão, situação que onera tanto as pessoas com deficiência e os idosos quanto a própria União, que dispende vultosos recursos para atuar judicialmente em defesa do INSS, órgão concedente do Benefício de Prestação Continuada. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Não obstante seja inquestionável o mérito do reconhecimento legal dos direitos trabalhistas e previdenciários desses profissionais, a assunção de todas as obrigações trabalhistas e previdenciárias tornou-se demasiadamente onerosa para muitas pessoas com deficiência ou suas famílias, especialmente quando é preciso a contratação de múltiplos profissionais para o estrito cumprimento da legislação. Assim, seria desejável a expansão progressiva dos serviços socioassistenciais, inclusive com a disponibilização de cuidadores sociais, para pessoas com deficiência e suas famílias, ainda que a renda dessas pessoas ou famílias ultrapassassem os parâmetros de pobreza e extrema pobreza. Sem dúvida, a deficiência apresenta, além da renda, variadas dimensões que podem comprometer sobremaneira a qualidade de vida, os vínculos familiares e a inclusão social e comunitária. 201 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Por oportuno, observamos com preocupação a recente aprovação da Lei n. 13.301, de 2016, que, entre outras medidas, cria uma exceção à regra geral de acesso ao BPC disposta no art. 20 da Lei n. 8.742/1993, ao prever que fará jus ao benefício temporário, pelo prazo máximo de três anos, "na condição de pessoa com deficiência, a criança vítima de microcefalia em decorrência de sequelas neurológicas decorrentes de doenças transmitidas pelo Aedes aegypti". Dispõe, ainda, que o referido benefício será concedido após a cessação do gozo do salário-maternidade originado pelo nascimento da criança vítima de microcefalia. Além do retorno ao modelo médico de deficiência, uma vez que a referida lei atribui expressamente a condição de pessoa com deficiência à criança com uma condição clínica específica, sem que se considere as barreiras socioambientais que porventura dificultem ou impeçam sua participação social em igualdade de condições com as demais pessoas, a referência à criança com microcefalia é sempre acompanhada da expressão "vítima”, o que representa um claro retrocesso no esforço da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e da Lei Brasileira de Inclusão em tratar a deficiência como um atributo decorrente da diversidade humana. Ademais, a inclusão de exceção para acesso ao BPC apenas para uma determinada condição clínica abre precedente perigoso, que pode levar ao questionamento, inclusive pela via judicial, para aplicação dos mesmos critérios diferenciados para tipos específicos de doenças ou alterações genéticas. Vale dizer que tramitam no Congresso Nacional dezenas de propostas com o intuito de considerar determinada síndrome ou doença como deficiência, a fim de que as pessoas acometidas possam ter acesso às ações afirmativas legalmente previstas para as pessoas com deficiência. Igualmente, vê-se com cautela a ampliação da licença-maternidade para 180 dias apenas para as mães de crianças acometidas por sequelas neurológicas decorrentes de doenças transmitidas pelo Aedes aegypti. Em que pese as imensas e 202 No que se refere à previsão do art. 17 da LBI de articulação das ações e serviços do SUS e do SUAS para garantir à pessoa com deficiência e à sua família a aquisição de informações, orientações e formas de acesso às políticas públicas disponíveis, recentemente foi editado o Decreto n. 8.725, de 27 de abril de 2016, que “[i]nstitui a Rede Intersetorial de Reabilitação Integral e dá outras providências". Além de apresentar o conceito de reabilitação integral, prevê-se a execução dos serviços e ações de forma descentralizada e integrada; apresentam-se os objetivos da Rede Intersetorial, as ações estruturantes e imediatas a serem contempladas, as instâncias de gestão e suas respectivas competências. Espera-se a imediata operacionalização de ações que possibilitem a estruturação e consequente expansão de tão importante instrumento de participação e inclusão social das pessoas com deficiência. O auxílio-inclusão, previsto no art. 94 da Lei n. 13.146/2015, terá o mérito, quando regulamentado, de ser um instrumento de estímulo à inclusão e permanência da pessoa com deficiência no mundo do trabalho. Encontra-se embasado nos fundamentos do Estado Democrático de Direito, expressos no art. 1º da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, tais como: a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho. Ademais, leva em consideração a necessidade de o Estado aportar recursos com vistas MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA dramáticas dificuldades que essas mães têm de enfrentar, mães de crianças que nascem com deficiência, em regra, também se defrontam com exigências, do ponto de vista terapêutico, financeiro e emocional, nos primeiros meses de vida dos seus filhos, que demandam sua presença constante e ininterrupta. A estimulação precoce é fundamental para que a criança com deficiência possa desenvolver toda a sua potencialidade, e os primeiros meses de vida são importantíssimos nesse processo. Dessa forma, a ampliação da licença apenas para um determinado grupo pode afigurar tratamento desigual para trabalhadoras que vivenciam a mesma situação, qual seja, o nascimento de uma criança com deficiência. 203 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA a garantir a superação dos custos da deficiência, os quais representam uma barreira para inserção de pessoas com deficiência em igualdade de condições às demais pessoas. Ainda que a Lei n. 12.470/2011 tenha promovido alterações nos arts. 20 e 21 da Lei n. 8.742/1993, no sentido de garantir a suspensão do BPC daqueles beneficiários que estejam trabalhando e o retorno imediato do pagamento do benefício no caso de perda do emprego, tal medida não obteve o êxito esperado, pois ainda permanece baixa a adesão das pessoas com deficiência beneficiárias do BPC ao mundo do trabalho. Uma explicação razoável para esse quadro encontra-se no custo que a deficiência muitas vezes impõe àqueles que desejam trabalhar. Em regra, recebem um salário com valor muito próximo ao do BPC e ainda têm de arcar com os custos relacionados a tecnologias assistivas que lhes possibilitem, inclusive, locomover-se pela cidade e pelo ambiente de trabalho com alguma segurança, considerando-se a falta de acessibilidade das cidades brasileiras. Assim, deve-se buscar, com premência, a regulamentação do art. 94 da Lei n. 13.146/2015 pelo Congresso Nacional, de forma a definir a fonte de custeio; natureza do benefício; critérios de recebimento, suspensão e interrupção; órgão responsável pela coordenação e operacionalização do benefício; entre outros elementos necessários para sua regular implantação. Considerações finais A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, Lei n. 12.146, de 6 de julho de 2015, além de reafirmar direitos previdenciários e socioassistenciais da pessoa com deficiência insertos em outros diplomas legais, traz avanços importantes no sentido de adequá-los aos ditames da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, assim como propõe inovações para ampliar a proteção social e a acessibilidade a esses direitos básicos de cidadania. 204 Constitui desafio relevante para os executores das políticas públicas de previdência e assistência social a transição de um olhar médico e vitimizador para um olhar social e empoderador em relação à pessoa com deficiência, de forma que a avaliação de sua condição incorpore não apenas os atributos corporais, mas as barreiras sociais, ambientais e atitudinais que restringem ou impedem sua participação social em igualdade de condições com as demais pessoas. Referências BRASIL. Ministério da Previdência Social. Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência Social – DATAPREV. Anuário Estatístico da Previdência Social. Brasília: ACS/MPS; SVAI/DATAPREV, 2013. COLOMBO Francesca et al. Help wanted? Providing and paying for long-term care. OECD Health Policy Studies, OECD Publishing, 2011. LEITE, Flávia Piva Almeida; RIBEIRO, Lauro Luiz Gomes; COSTA FILHO, Waldir Macieira da (Orgs.). Comentários ao Estatuto da Pessoa com Deficiência. São Paulo: Saraiva, 2016. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Importa destacar que as mudanças introduzidas pela LBI pugnam por esse olhar calcado na sociedade como elemento fundamental para mudança de estigmas, preconceitos e discriminações que historicamente permeiam a trajetória das pessoas com deficiência. O sucesso na implementação das medidas propostas depende, essencialmente, da mudança dessa percepção social. 205 Lei Brasileira de Inclusão: capacidade eleitoral das pessoas com deficiência mental, a curatela como medida excepcional e as seções eleitorais especiais Sidney Pessoa Madruga1 A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI), também denominada Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei n. 13.146/2015), trouxe modificações substancias para o arcabouço legislativo nacional – especificamente no que tange a revogação dos incisos II e III, do art. 3º, e a nova redação do inciso III, do art. 4º, ambos do Código Civil –, que tornam absolutamente capazes para exercer atos da vida civil os que antes possuíam deficiência mental ou não detinham o necessário discernimento para a prática desses atos, passando a apenas considerar relativamente incapazes, em matéria de deficiência, aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade. Veja-se como restaram as modificações legislativas em tela, consoante quadro demonstrativo que segue: 1 Procurador Regional da República. Procurador Regional Eleitoral no Rio de Janeiro (2º mandato). Doutor em Direitos Humanos pela Universidade Pablo de Olavide - Sevilha/ Espanha. Mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Introdução 207 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Código Civil (redação anterior) Código Civil (redação atual, a partir da vigência da Lei n. 13.146/2015) Art. 3º - São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: I - os menores de dezesseis anos; II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos; III - os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade. Art. 3º - São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos. Art. 4º São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer: I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; II - os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; III - os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; IV - os pródigos. [Grifos nossos]. Art. 4º São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer: [...] II - os ébrios habituais e os viciados em tóxico; III - aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade; [...] Parágrafo único. A capacidade dos indígenas será regulada por legislação especial. [Grifos nossos]. Vale dizer, hoje, somente o menor de 16 anos é considerado absolutamente incapaz para os atos da vida civil. No entanto, a novel legislação, que, paralelamente, determina ao Poder Público seja assegurado à pessoa com deficiência todos os direitos políticos e a oportunidade de exercê-los em igualdade de condições com as demais pessoas (art. 76 e §§ 1º e 2º, da LBI), suscitou dúvidas a respeito da capacidade eleitoral ativa (direito de votar) e passiva (direito de ser votado) das pessoas com deficiência grave 2, sobretudo as consideradas com deficiência mental, uma vez preenchidas as condições de elegibilidade (art. 14, § 3º, CF/1988) e inexis2 A classificação do grau da deficiência em leve, moderada ou grave nos remete diretamente aos parâmetros estabelecidos pela Classificação Internacional de Funcionalidades (CIF). No caso, por exemplo, de aposentadoria da pessoa com deficiência pelo Regime Geral da Previdência Social (RGPS), faz-se necessário, cumpridos outros requisitos, que seja submetida a uma perícia médica que tomará como base a CIF. Nesse sentido, confira-se o manual específico sobre a CIF, produzido pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Disponível em: . Acesso em: 30 ago. 2017. 208 tindo quaisquer causas constitucionais (art. 14, §§ 4º, 6º e 7º, CF/1988) e infraconstitucionais (LC n. 64/1990) de inelegibilidade, previstas no ordenamento pátrio. Como se verá adiante, entende-se que a restrição da capacidade eleitoral ativa e passiva da pessoa com deficiência mental grave deve atender ao postulado da autonomia e da igualdade, num contexto máximo e democrático de inclusão social/eleitoral. 1 Capacidade eleitoral das pessoas com deficiência3 A autonomia individual, prevista como princípio geral na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, está associada com o princípio de uma vida independente, isto é, com a capacidade de homens e mulheres com deficiência controlarem pessoalmente seus múltiplos aspectos de vida, tomando decisões e assumindo responsabilidades que lhe propiciem acesso aos bens materiais e imateriais inerentes a todos. Vida independente, contudo, não se traduz em autonomia absoluta, senão autonomia moral. Não significa querer fazer tudo individualmente, não necessitar de ninguém ou querer viver em isolamento, mas pleitear as mesmas opções e o mesmo controle de vida diária que os homens e mulheres sem deficiência4. É querer, por exemplo, utilizar o transporte público, frequentar escolas, trabalhar, enfim, exercer plenamente o exercício da cidada- 3 Em 2014, figuravam no sistema do Tribunal Superior Eleitoral 502.400 pessoas com deficiência. Cf. Acessibilidade na Justiça Eleitoral Relatório de diagnóstico da acessibilidade na Justiça Eleitoral 2015. Disponível em: . Acesso em: 30 ago. 2017. 4 MADRUGA (2016, p. 74-76). MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA De início, importa estabelecer o alcance das expressões capacidade e autonomia. 209 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA nia, mediante a prática de atos da vida civil, entre eles ascender a um cargo eletivo ou participar de qualquer processo de escolha. Todavia, essa imagem do sujeito moralmente livre desperta dois grandes problemas ante as pessoas com deficiência, como advertem Gerard Quinn e Theresia Degener. O primeiro é que a sociedade parece deveras inclinada, em muitos casos, a associar a deficiência, mormente a intelectual, à falta de capacidade para a liberdade moral, suposição que se baseia, na maioria das vezes, num mero prejuízo, daí porque a perspectiva da deficiência, baseada nos direitos humanos, coloca num mesmo plano a necessidade de proteção efetiva dos direitos e dos interesses das pessoas que são declaradas legalmente incapazes. O outro é que a sociedade, com frequência, não leva a sério a autonomia das pessoas com deficiência que desfrutam de sua capacidade legal completa. Suas escolhas vitais não se consideram tão merecedoras de apoio social como as das pessoas sem deficiência. Em sua maior parte, as sociedades não fazem o suficiente para habilitar as pessoas com deficiência que possuem uma clara capacidade de liberdade moral para exercer seu direito à livre determinação5. Nesse sentido, o disposto no art. 4º, III, do Código Civil, deve ser visto como exceção, analisado, pois, de forma bastante criteriosa, para que se estabeleça se a pessoa com deficiência grave encontra-se realmente impossibilitada de exprimir a sua vontade. Ou seja, ainda que se considere um caso de deficiência grave, crê-se que, atendidos os requisitos de elegibilidade (art. 14, § 3º, CF/1988) e afastadas eventuais inelegibilidades, a regra, e não a exceção, será permitir-se à investidura em cargo eletivo ou ao direito ao voto. Tome-se como exemplo, uma situação real vivenciada por uma pessoa com mais de uma deficiência considerada grave. Rapaz com paralisia cerebral e cego. Graduou-se em Direito e foi aprovado nos exames da OAB.6 Estaria impedido de se candidatar, uma vez atendidas 5 QUINN; DEGENER (2002, p. 15‑16). 6 DEFICIENTE... (2016). 210 De igual modo, não se pode impedi-la de se fazer acompanhar de pessoa de sua confiança para auxiliá-la durante a votação, conforme previsto na LBIPD (art. 76, § 1º, IV) e na Resolução-TSE n. 23.456/2015 (art. 50 e §§). Nesse ponto, pede-se vênia para discordar dos que entendem inconstitucionais referidos dispositivos, até porque seria considerar a inconstitucionalidade de uma norma constitucional! Esclarece-se: a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, de maio de 2008, foi incorporada à Constituição brasileira na forma de emenda constitucional7. Referida Convenção prevê em seu artigo 29, item 3, que uma das garantias da participação na vida política desse coletivo está na livre expressão de vontade das pessoas com deficiência como eleitores e, para tanto, sempre que necessário e a seu pedido, deve haver permissão para que sejam atendidas na votação por uma pessoa de sua escolha. Como se vê, deu origem aos mesmos dizeres reproduzidos posteriormente na LBI e na Resolução do TSE. Vida independente, como antes dito, não significa praticar todos os atos de cidadania sem auxílio, tampouco isolar-se ou rejeitar eventual ajuda, mas exigir o mesmo controle e modus vivendi de homens e mulheres sem deficiência, entre eles o direito civitatis, o direito a cidadania, ao pleno gozo dos direitos e deveres civis, políticos e sociais. O Código Eleitoral prevê uma série de garantias ao eleitor, que não pode ter obstado ou embaraçado o seu exercício ao sufrágio (art. 234), o que, por conseguinte, impede que sofra quaisquer tipos de violência física ou moral, na sua liberdade de voto ou pelo fato de haver votado (art. 235), além do que é crime usar de violência ou grave amea- 7 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (2008). Em relação ao Brasil, trata­-se do primeiro documento internacional de direitos humanos que adquiriu status constitucional sob a forma de emenda à Constituição, nos moldes do § 3º, art. 5º, da Constituição Federal. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA todas as condições de elegibilidade e na falta de quaisquer das causas de inelegibilidade? E, se desejasse votar nas próximas eleições, ser-lhe-ia vedado? A negativa se impõe para ambas as indagações. 211 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA ça para coagir alguém a votar, ou não votar, em determinado candidato ou partido (art. 301). Dessa forma, o presidente de mesa – que só está autorizado a permitir que o eleitor vote ou justifique, mas não a desautorizá-lo a votar, a contrario sensu dos arts. 41, III, e 50 e §§, da Resolução-TSE n. 23.456/2015 –, caso não consiga resolver eventuais dificuldades que se apresentem quanto ao voto da pessoa com deficiência, acompanhada ou não de terceiro de sua confiança, será obrigado a comunicar (e, por evidente, de imediato para que o eleitor com deficiência, que tem preferência de voto, art. 45, § 2º, não seja obstado de votar) ao juiz eleitoral as ocorrências que dele dependam (art. 41, V e VII, Resolução-TSE n. 23.456/2015). Ambos, presidente e juiz, são os únicos a quem cabe exercer a polícia dos trabalhos eleitorais (art. 139, CE), o que não impede que todos devam comunicar à autoridade competente qualquer forma de ameaça ou de violação aos direitos da pessoa com deficiência (art. 7º, caput, LBIPD), entre eles o do exercício ao sufrágio. 2 A curatela como medida excepcional Interessante notar que, hodiernamente, sequer a curatela de pessoa com deficiência poderá obstar o direito ao voto, porquanto se trata de medida protetiva extraordinária, restrita tão somente aos atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial (arts. 84 e 85, LBI). Assim, à pessoa com deficiência em situação de curatela, deve ser assegurada sua participação, no maior grau possível, para a obtenção de seu consentimento prévio, livre e esclarecido, cuja exceção é reservada para os casos de risco de morte e de emergência em saúde (arts. 12, § 1º, e 13, LBI). Por isso, nas palavras de Eugênia Gonzaga, o instrumento da curatela deve ser revisto periodicamente e, sempre que possível, levantada a interdição e o procedimento convertido em tomada de decisão apoiada, medida de apoio legal adotada pela LBI como regra 212 Entende-se, portanto, que, à vista do atual arcabouço legislativo pátrio, hoje é possível que uma pessoa submetida ao regime de curatela, em face de uma deficiência mental de natureza grave, possa se candidatar para concorrer a um mandato eletivo ou votar. A sentença de interdição, por via de regra, não produzirá mais efeitos no caso de incapacidade absoluta, uma das causas, inclusive, de motivo de perda ou suspensão de direitos políticos (art. 15, II, CF/1988). De igual forma, nesses casos os juízes eleitorais não poderão excluir essas pessoas com deficiência do corpo de eleitores (arts. 71, II, e 77, CE). Todavia, como asseverado, a depender da situação no caso concreto e se, de fato, constatar-se que se encontra impossibilitada ou não de exprimir a sua vontade (art. 4º, III, CC). Dito isso, se por um lado busca-se preservar o direito ao exercício do voto das pessoas com deficiência mental, por outro estas não poderão se furtar das obrigações eleitorais inerentes a todos aqueles aptos para tanto. Consectário dessa ordem de ideias, aquele antes interditado por deficiência mental, desde que, agora, consiga exprimir atos de sua vontade, tem o dever de exercer as suas obrigações eleitorais, como o alistamento e o exercício do voto obrigatório, à exceção daqueles que comprovem ser tal ato impossível ou demasiadamente oneroso, os quais poderão valer-se de uma certidão de quitação eleitoral com prazo indeterminado, que, no entanto, não impede que o in8 GONZAGA (2016). MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA e que pode ser utilizada por qualquer pessoa com deficiência, ainda que grave. É preciso que os pedidos de interdição/curatela sejam suspensos para que seja oportunizada à pessoa com deficiência a sua manifestação sobre a opção pela tomada de decisão apoiada. Para a autora, a vontade das pessoas com deficiência permanece mesmo nos casos em que elas não possam exprimi-la, orientação que não se apresenta inexequível. Mesmo uma pessoa em coma ou com uma deficiência grave tem uma história de vida que demonstra suas inclinações e indica claramente o que ela desejaria que fosse realizado nesta ou naquela hipótese8. 213 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA teressado a qualquer tempo volte a alistar-se, afastadas nesses casos quaisquer sanções, nos termos da Resolução-TSE n. 21.920/2004. E, nesse aspecto, vale ainda lançar um debate singelo, mas de suma importância, quanto a obstáculos que permeiam a área eleitoral, no tocante à garantia do exercício da cidadania das pessoas com deficiência. Trata-se das denominadas sessões eleitorais especiais. 3 Seções eleitorais especiais9 Não se nega o avanço proporcionado pelo Tribunal Superior Eleitoral, que, desde 2002, tem buscado proporcionar o incremento e ações direcionadas à plena acessibilidade das pessoas com deficiência e com mobilidade reduzida. Vale compilar brevíssimo histórico: • Em 2002, o TSE editou a Resolução n. 21.008/2002, que pela primeira vez dispunha sobre a criação, pelos juízes eleitorais e sob a coordenação dos Tribunais Regionais Eleitorais, de seções eleitorais especiais destinadas a eleitores com deficiência, em locais de fácil acesso, com estacionamento próximo e instalações que atendam às normas da Associação Brasileira de Notas Técnicas (ABNT)10, ampliada em seus dizeres dois anos após pela Resolução n. 21.633/2004 (arts. 32, 33, 34, 52, 57 e 58), que dispunha sobre os atos preparatórios para as eleições de 200411. 9 A título exemplificativo, para as eleições de 2016, o Estado de São Paulo contava com 10.993 (12,07%) seções especiais, enquanto o Rio de Janeiro registrava no seu sistema 5.423 seções cadastradas como especiais. 10 A ABNT possui mais de 20 normas técnicas dirigidas às pessoas com deficiência. A última, a NBR 16537, de 27 de junho de 2016, destina-se à questão da acessibilidade mediante sinalização tátil no piso. Cf. Secretaria Especial dos Direitos das Pessoas com Deficiência. Disponível em: . Acesso em: 30 ago. 2017. 11 Tribunal Superior Eleitoral. Informações sobre eleições anteriores. Disponível em: . Acesso em: 30 ago. 2017. 214 Somente decorridos dez anos da Resolução n. 21.008/2002, tempos após a entrada em vigor da Convenção da ONU (2008), a Corte institui o Programa de Acessibilidade da Justiça Eleitoral, destinado ao eleitor com deficiência ou mobilidade reduzida, mediante a Resolução n. 23.381/2012, que possui como um dos seus objetivos básicos providenciar, na medida do possível, a mudança dos locais de votação que não ofereçam condições de acessibilidade para outros que as possuam (art. 3º, III)12. • Atualmente muitas dessas seções ditas especiais compõemse de uma boa infraestrutura para facilitar o exercício do voto por pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida, a exemplo de instalação de rampas, elevadores e portas com vão de pelo menos 80 centímetros, próximas a estacionamentos e até disponibilização de fones de ouvido para o eleitor com deficiência visual e urnas eletrônicas habilitadas com o sistema de áudio e opção do teclado em braile e marca de identificação na tecla número 5. Além disso, os eleitores com deficiência ou mobilidade reduzida que não consigam ou não se disponham em votar em locais de fácil acesso podem realizar a transferência de seus títulos para as seções eleitorais ditas especiais, dirigindo-se ao cartório mais próximo de sua residência para habilitar-se para tanto. Entretanto, precisamos avançar. E, nesse aspecto, o ideal, se não o obrigatório – como o autor destas linhas propugna há anos –, é que as “sessões eleitorais especiais”, destinadas às pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida, sejam definitivamente abolidas pela justiça eleitoral. Isto é, todos os locais de votação devem ser plenamente acessíveis ao cadeirante, ao cego, ao surdo, ao obeso, ao idoso etc. (v.g., todas compostas de rampas, pista tátil, elevador, banheiros, entre outros). MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA • 12 Idem. 215 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA No entanto, eleição após eleição, o argumento de praxe utilizado é repisado sem maiores aprofundamentos: falta de verba pública. Aliás, essa falta de solução para uma temática secular já se tornou praxe na Administração Pública brasileira, porquanto utilizada, de forma uníssona e sistemática, como justificativa para o non facere pela maioria esmagadora dos órgãos públicos federais, estaduais e municipais, quando o assunto é proporcionar plena acessibilidade para todos, independentemente de locais de votação, pois, sim, “a acessibilidade universal”, inerente ao princípio dignidade da pessoa humana, é destinada a todos, com ou sem deficiência; ou haveria como se negar que a falta de uma rampa adequada num edifício impede o acesso não só da pessoa com deficiência mas também o da mulher grávida, do idoso em idade avançada, da pessoa obesa ou acidentada etc.13? Daí porque, uma segunda indagação se nos apresenta: por que todos, absolutamente todos, os locais de votação escolhidos pela justiça eleitoral não poderiam dispor de acessibilidade mínima que permitam às pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida exercitarem com dignidade o seu direito ao voto, próximo de sua residência ou local de melhor conveniência, evitando-se que sejam “obrigadas” a deslocarem-se para outros bairros ou redondezas, muitas vezes, a depender do caso, igualmente de difícil acesso? E desdobram-se os dois primeiros questionamentos, para melhor reflexão do eleitor, em um terceiro: a eliminação de barreiras f ísicas, arquitetônicas e de mobiliário que limitem ou impeçam a o exercício relacionado à cidadania e ao exercício do voto deve abarcar, ou não, todas as pessoas, com ou sem deficiência e mobilidade reduzida? As sessões eleitorais especiais, porém, criadas, num primeiro momento, como uma espécie de ação afirmativa, em última análise não mais se justificam, sobretudo no século XXI, as quais, uma vez 13 MADRUGA (op. cit., p. 200). 216 instaladas, findam por obrigar uma parcela significativa de eleitores com deficiência a deslocarem-se das imediações do local em que reside – o que no Brasil já se mostra um considerável desafio, uma vez que o transporte público não se encontra adequado ao atendimento desse público, com raríssimas exceções –, para votar em outra localidade, bairro ou distrito. E mais. Observe-se que a norma do art. 76, § 1º, I, in fine 14, da LBI, proíbe a instalação de seções eleitorais exclusivas, isto é, seções que seriam destinadas tão somente às pessoas com deficiência. E, ainda que se possa argumentar que sessão “exclusiva” não seja propriamente “especial”, a vedação em referência representa em si um parâmetro para a justiça eleitoral, na medida em que, na práxis, as “seções eleitorais especiais” para pessoas com deficiência findam por trilhar o caminho da “exclusividade” do voto desse coletivo, apartado dos demais membros da coletividade. Senão, como antes visto, a própria Resolução n. 23.381/2012, também sinaliza para o fim das sessões eleitorais especiais quando dispõe que a mudança dos locais de votação que não ofereçam condições de acessibilidade para outros que as possuam devem ser providenciadas “na medida do possível” (art. 3º, III). 14 “Art. 76. O poder público deve garantir à pessoa com deficiência todos os direitos políticos e a oportunidade de exercê-los em igualdade de condições com as demais pessoas. § 1o À pessoa com deficiência será assegurado o direito de votar e de ser votada, inclusive por meio das seguintes ações: I - garantia de que os procedimentos, as instalações, os materiais e os equipamentos para votação sejam apropriados, acessíveis a todas as pessoas e de fácil compreensão e uso, sendo vedada a instalação de seções eleitorais exclusivas para a pessoa com deficiência”. [Grifo nosso]. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Então, no lugar de ampliar-se o número das sessões especiais, haveria de se disponibilizar a todos os tipos de público locais de votação acessíveis, considerando que, mormente nas capitais e cidades de porte médio do interior do País, inúmeras são as opções que podem ser escolhidas para tanto, tais como escolas, estádios, prédios públicos etc. 217 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Enfim, opta-se em prosseguir com a minimização do discrímen – o que, como exposto, não se justifica, ainda que louváveis as iniciativas da justiça eleitoral – quando, ao revés, dever-se-ia findá-lo de uma vez por todas. Conclusão Ressalvados os casos de incapacidade relativa transitória ou permanente que efetivamente a impeça de exercer a sua vontade, não se pode tolher a pessoa com deficiência mental que deseja votar ou candidatar-se, uma vez que, legalmente, trata-se de pessoa com capacidade plena, absoluta. Enfim, uma vez atendidos os parâmetros legais e constitucionais, deve-se garantir, de forma ampla e razoável, que a pessoa com deficiência de natureza grave tenha assegurado o direito ao voto e a concorrer a quaisquer cargos eletivos. As sessões eleitorais especiais destinadas às pessoas com deficiência e mobilidade reduzida devem ser repensadas e findas para dar lugar a locais de votação com plena acessibilidade, que garantam o direito ao exercício do voto para todo e qualquer eleitor brasileiro, quer possua deficiência ou não. Referências BRASIL. Secretaria Especial dos Direitos das Pessoas com Deficiência. Disponível em: . Acesso em: 30 ago. 2017. . Tribunal Superior Eleitoral. Acessibilidade na Justiça Eleitoral – Relatório de diagnóstico da acessibilidade na Justiça Eleitoral 2015. Disponível em: . Acesso em: 30 ago. 2017. . Tribunal Superior Eleitoral. Informações sobre eleições anteriores. Disponível em: . Acesso em: 30 ago. 2017. GONZAGA, Eugênia Augusta. Pessoas com deficiência e seu direito fundamental à capacidade civil: compatibilidade com os procedimentos de “tomada de decisão apoiada e “curatela”. 2016. No prelo. MADRUGA, Sidney. Pessoas com deficiência e direitos humanos: ótica da diferença e ações afirmativas. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo. Rádio Senado, Brasília. 2008. Disponível em: . Acesso em: 30 ago. 2017. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Classificação Internacional de Funcionalidades (CIF). Disponível em: . Acesso em: 30 ago. 2017. QUINN, Gerard; DEGENER, Theresia. Human Rights and Disability: The current use and future potential of United Nations human rights instruments in the context of disability. New York; Geneva: United Nations, 2002. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Deficiente visual com paralisia cerebral se forma em Direito em Natal. G1, Natal, 24 fev. 2016. Disponível em: . Acesso em: 30 ago. 2017. 219 Ciladas da dicotomia entre inclusão e aprendizagem Apesar da complexidade dos desafios enfrentados pelo mundo contemporâneo, determinados argumentos parecem ser compartilhados. Um deles diz respeito ao papel da educação na construção de um planeta mais igualitário. Em linhas gerais, acredita-se que a redução das desigualdades econômicas e sociais é diretamente dependente da garantia de acesso à educação de qualidade a qualquer ser humano. Essa constatação nos leva a uma pergunta que deveria estar presente na pauta de gestores públicos que usufruem do poder de decidir sobre os rumos a serem tomados pela educação, quer seja: de que tipo de educação precisamos? Nos últimos anos, tenho viajado para diversas regiões do mundo em busca de experiências consistentes de educação inclusiva. Com esse objetivo, tive a oportunidade de visitar escolas que se destacam por implementar propostas pedagógicas orientadas não só pelo desempenho escolar, mas também pelo acolhimento das diferenças humanas. Além de entrevistar os professores e diretores dessas instituições, sempre me aproximo dos gestores públicos responsáveis pela educação da respectiva cidade ou país. Ao perguntar-lhes sobre o tipo de educação que almejam, observo a existência de uma aparente dicotomia entre duas vertentes: uma defensora da meritocracia e do desenvolvimento de competências 1 Fundador do Instituto Rodrigo Mendes, organização que desenvolve programas de educação inclusiva. É mestre em administração pela Fundação Getúlio Vargas (EAESP), membro do Young Global Leaders (Fórum Econômico Mundial) e Empreendedor Social Ashoka. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Rodrigo Hübner Mendes1 221 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA cognitivas voltadas às demandas tradicionais do mercado de trabalho e outra comprometida com a igualdade de direitos, pautada pelo desenvolvimento de competências socioemocionais e a construção de uma sociedade inclusiva. Em outras palavras, parece haver uma tensão binária entre a educação para o mercado e a educação para a cidadania. Tenho refletido muito sobre essa suposta dicotomia e acredito que seja resultado de uma falta de visão. Sejam quais forem os referenciais políticos e ideológicos que nos guiam, todos somos conscientes da amplitude de demandas que nos impactam a cada instante. Somos chamados a planejar, calcular, analisar, estruturar e persuadir. Ao mesmo tempo, somos convocados a ponderar, tolerar, respeitar, ressignificar e ceder. Não se trata, portanto, de escolher entre competitividade ou cidadania, meritocracia ou tolerância, competências cognitivas ou competências socioemocionais. Trata-se de assumirmos a necessidade de uma visão mais ambiciosa de sociedade e, consequentemente, de educação. As experiências inclusivas que tenho visitado apontam alguns caminhos possíveis para o enfrentamento desse desafio. Para ilustrar meus argumentos, vou apresentar recortes de algumas das referidas experiências. É importante mencionar que nossas pesquisas buscam retratar a realidade. Nesse sentido, não ocultamos os dilemas, as incongruências e os paradoxos inerentes ao processo de transformação pelo qual essas escolas estão passando. Uma escola que abraça – Rio Branco, Acre Estava no pátio de uma escola pública de Rio Branco quando fui abordado por uma aluna que aparentava uns 8 anos de idade. Logo que começamos a conversar, recebi um carinhoso abraço. Imaginei que, por alguma razão, buscava acolhimento de um adulto. Horas mais tarde, vivenciei uma cena semelhante, mas dessa vez o contato 222 veio de uma professora. Ao procurar entender melhor a cultura local, fiquei sabendo que o abraço é um hábito corriqueiro na região. Essa foi apenas uma das boas surpresas que tive ao circular pela escola Clarisse Fecury, reconhecida nacionalmente por suas práticas de educação inclusiva. O compromisso da escola com a garantia do direito de todos estudarem não conflitava com sua missão de propiciar o desenvolvimento integral de seus alunos. Esse posicionamento era viabilizado por um conjunto de fatores, a começar pelas políticas públicas do território. Tive a oportunidade de conversar com os secretários municipal e estadual de educação, que trabalhavam em regime de colaboração. Ambos mostraram competência para desenvolver um modelo democrático de ensino. Uma das marcas desse modelo era o investimento contínuo em formação de educadores. Parcerias estabelecidas com outras instituições propiciavam diferentes tipos de suporte à equipe pedagógica da escola. Sua diretora, Iran Saraiva, exercia uma liderança capaz de mobilizar a comunidade para o enfrentamento dos desafios inerentes a quem rompe com formas convencionais de educar e excluir. Na época, a instituição atendia a 611 estudantes, dos quais 27 tinham algum tipo de deficiência. O planejamento detalhado das atividades específicas para cada turma era feito por meio de reuniões semanais, das quais participam as coordenadoras pedagógicas, as educadoras da sala de aula regular e as do Atendimento Educacional Especializado (AEE). De 2 Língua Brasileira de Sinais. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Ao percorrer seus ambientes, ficou evidente a interação entre crianças que, até pouco tempo, eram privadas do convívio. Estudantes com limitações cognitivas e motoras participavam da sala de aula regular e recebiam atendimento educacional especializado na própria escola, em horário complementar. As aulas de Libras2 eram frequentadas por todos (alunos, familiares e funcionários da escola), ou seja, não eram exclusivas para crianças surdas, eliminando, assim, as barreiras da comunicação. 223 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA acordo com Dulcilene do Nascimento, professora do AEE, “[...] a gente dá sugestões para os professores regulares, ajuda a confeccionar materiais, verifica as dificuldades, apontando os recursos pedagógicos adequados”. Durante essas reuniões, a equipe pedagógica elaborava as sequências didáticas, as rotinas e os planos de aula. Tais sequências eram planejadas com base nas necessidades educacionais de cada aluno. Quando necessário, os professores faziam a flexibilização dos conteúdos. As educadoras também investiam em agrupamentos produtivos formados por dois ou mais estudantes com níveis de conhecimento aproximados, porém diferentes. Segundo a coordenadora pedagógica Geanny Marques, “[...] dessa forma, eles se ajudam sem que um faça a atividade do outro”. Outro hábito da equipe era realizar rodas de conversa com todos os alunos. Nesses momentos, a professora esclarecia para os estudantes o tema que seria abordado com o objetivo de sondar o que já sabiam sobre este. A escola entendia a avaliação como um processo contínuo ao longo do ano. Ao invés de aplicar provas pontuais, a equipe pedagógica utilizava um instrumento de avaliação baseado nas competências adquiridas pelos educandos e estabelecia notas para as diferentes atividades realizadas rotineiramente. Liderança comunitária, investimento contínuo em formação de educadores e reuniões diárias de planejamento eram algumas das estratégias que explicavam o êxito da escola na criação de condições genuínas de conciliar socialização e aprendizagem. Altas expectativas para todos – Boston, Massachusetts Considerada um modelo norte-americano de educação inclusiva, a William Henderson School, situada em Boston, desperta a admiração de educadores de diversas regiões. Um terço de seus alunos 224 possui algum tipo de deficiência, o que não os impede de frequentar o ensino regular em convívio com as demais crianças. Até 1989, ano em que seu diretor iniciou a transformação do projeto pedagógico da instituição, alunos com deficiência eram sistematicamente encaminhados para escolas especiais, segregadas do ambiente escolar comum. É interessante observar que a escola tinha a reputação de perseguir altas expectativas em relação ao desempenho de seu corpo discente. Em comparação com a média do estado, os alunos apresentavam uma elevada taxa de aprovação. O sucesso escolar era constantemente celebrado e os estudantes eram estimulados a assumirem uma atitude de solidariedade e cooperação uns com os outros. “Aqui todo mundo é diferente. Todo mundo é único, de sua própria maneira. Isso me faz muito feliz porque essa é uma escola de inclusão e basicamente todo mundo é amigo de todo mundo” disse Briana Sapienza, aluna do 4º ano. Segundo Patricia Lampron, diretora na época, “[…] nós estamos ensinando às crianças que é normal ser diferente porque é normal ser diferente. Aqui os estudantes são forçados a aprender como trabalharem juntos para serem bem-sucedidos”. A Henderson investia bastante em recursos tecnológicos para reduzir barreiras e favorecer a aprendizagem. De acordo com uma de suas professoras, “[o] bom da nossa escola é que gastamos muito dinheiro com tecnologia […]”. Nesse sentido, os educadores utilizavam formas múltiplas de apresentar os conteúdos, envolvendo os estudantes com o material e permitindo várias formas para eles expressarem o que aprenderam. Dentre os programas que usavam diariamen- MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Em 2011, liderei a produção de um estudo de caso sobre a Henderson School que revelou alguns fatores que pareciam sustentar seu modelo de educação inclusiva publicamente reconhecido como bem-sucedido. A escola ficava em Dorchester, bairro proletário de Boston. Na ocasião do estudo, atendia a um grupo de 230 estudantes da educação infantil e do ensino fundamental (idades entre 5 e 12 anos) bastante diverso quanto à origem étnico-cultural. 225 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA te, merecem destaque: Kidbiz30003, First in Math, Writing with Simbols, IXL, Bookshare e Kurzweil. Os professores utilizavam agrupamentos para permitir que as crianças aprendessem de forma independente, a partir de atividades práticas. “Em matemática, nós podemos ensinar a um minigrupo uma lição sobre frações e então os estudantes irão se dividir em grupos menores, seja em grupos orientados por computadores, seja por um professor, dependendo do seu nível de habilidade e do quanto eles precisam de uma instrução mais guiada”, explicou a Srta. Bennett. Era essencial o uso de flexibilizações para que estudantes com deficiência tivessem acesso ao currículo. Essas adaptações, como elementos visuais extras e tecnologia, permitiam que a inclusão fosse bem-sucedida. De acordo com Thomas Hehir (2012), especialista em inclusão e professor da Escola de Graduação de Educação de Harvard, adaptações “minimizam o impacto da deficiência e maximizam as oportunidades para estas crianças participarem da educação geral em sua comunidade […]”. Segundo ele, os professores precisam ter em mente as diversas necessidades e desafios que os estudantes podem enfrentar. Um aluno disléxico, por exemplo, ou um aluno que sofre de ansiedade, pode sentir-se constrangido quando chamado para uma leitura oral em classe. É papel do professor conhecer a história de cada aluno e evitar esse tipo de situação. Ao mesmo tempo, Hehir argumenta que todos os estudantes podem se beneficiar de estratégias de ensino criadas a partir de um conceito de desenho universal para aprendizagem4. É o caso das pessoas que preferem utilizar tecnologias que transformam textos escritos em textos falados, ao invés de utilizar a leitura convencional. Esse é um recurso normalmente adotado por pessoas cegas, mas que pode ser útil para todos. 3 Programa de leitura que permite a todos os estudantes aprenderem o mesmo conteúdo, mas no nível de habilidade no qual eles são capazes de trabalhar. 4 Modelo prático que visa ampliar as oportunidades de desenvolvimento de cada estudante por meio de planejamento pedagógico contínuo, somado ao uso de mídias digitais. 226 A difusão de princípios para todo um continente – Europa Desde 1996, a Agência Europeia para Necessidades Especiais e Educação Inclusiva tem desempenhado um relevante papel na busca de avanços na área da educação inclusiva no continente europeu. Fazem parte da agência cerca de trinta países, com realidades socioculturais e econômicas muito heterogêneas. Apesar dessa diversidade, a agência tem conseguido estabelecer um consenso sobre princípios-chave para a prática de uma educação que acolha as diferenças entre os estudantes e garanta o direito de acesso à educação. Além disso, desenvolve dezenas de projetos voltados à melhoria de áreas estratégicas, como formação de educadores, prevenção na infância e diversidade multicultural. Após dezessete anos de existência, a Agência Europeia observa um conjunto sólido de resultados decorrentes de sua atuação, ao mesmo tempo em que se depara com importantes desafios. Em primeiro lugar, o continente europeu se recupera da grave crise financeira, iniciada no final da primeira década dos anos 2000, que ainda MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA No início do ano, os educadores da Henderson School sentavam-se com os especialistas que integravam a equipe da escola para planejar o conteúdo e os serviços necessários. Por lei, os professores eram obrigados a fazer planos educacionais detalhados para seus estudantes com deficiências diagnosticadas, chamados planos educacionais individualizados (PEIs), que cobriam objetivos de aprendizado, estratégias de ensino, planos de disciplina e rotinas/procedimentos desenhados para cada aluno. Os educadores estavam constantemente colaborando uns com os outros e também entre terapeutas/especialistas. Se um educador estivesse com alguma dificuldade relacionada a uma determinada criança, ele iria buscar ideias e orientação com outros professores. 227 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA ameaça seriamente a prosperidade econômica de muitos de seus países. Consequentemente, a agência convive com o risco de eventuais cortes nos recursos financeiros destinados aos seus programas. De acordo com Cor Meijer, diretor da organização, existem diversos argumentos que têm sido utilizados para convencer as fontes de recursos a prosseguirem com seus investimentos. O mais efetivo diz respeito à percepção de que as intervenções introduzidas nas escolas com a finalidade de beneficiar estudantes com deficiência funcionam também para os demais estudantes. Ou seja, todos os alunos saem ganhando com as transformações promovidas nas redes de ensino. Cor exemplifica tal argumento com três tipos de intervenções: • Agrupamentos heterogêneos: o aumento da diversidade resultante da participação de estudantes com deficiência na sala de aula regular desencadeia uma série de ganhos não só para realizações acadêmicas, mas também para os relacionamentos sociais e os vínculos afetivos. • Ajuda mútua entre alunos: a criação de pequenos grupos, formados por alunos com diferentes níveis de conhecimento, em que aqueles que apresentam maior facilidade para um determinado conteúdo são orientados a compartilhar habilidades de seu conhecimento com o restante do grupo, é uma estratégia que se mostra enriquecedora para todos os participantes. • Coensino ou ensino em equipe: vários dos países membros da agência adotam a estratégia de planejar e executar as aulas com mais de um educador na mesma turma. O foco inicialmente eram os estudantes com deficiência, mas já há evidências de que os demais alunos foram também beneficiados por essa prática. Outro importante desafio da agência decorre do fato de existir uma cultura de competição em alguns países. São casos em que as escolas, ao tentarem atender às expectativas dos pais e da sociedade, 228 Um trabalho que realizamos é tentar procurar se existem escolas que combinem os dois e nós temos visto que a escola que é muito habilitada para lidar com crianças com deficiência é normalmente também uma escola com um nível de rendimento muito acima da média. Então, se as escolas fizerem um esforço para fazer tudo o que podem fazer para apoiar crianças vulneráveis, elas normalmente pontuam mais alto também em termos de rendimento, mas, é claro que você deve corrigir os indicadores de rendimento para o tipo de crianças que você tem na sua escola. Se você simplesmente comparar rendimentos, e não os corrigir para os tipos de aprendizes que você tiver no princípio, você terá o que chamamos de pontuações editadas não válidas e você precisa ter pontuações editadas válidas para serem comparadas5. Esse risco da competição aplica-se também aos paísesmembros da agência. De acordo com Cor6, a agência não tem o papel de comparar países. Sua função é criar oportunidades de aprendizado para criadores de políticas, experts e educadores: É uma plataforma onde podemos compartilhar problemas, desafios, num jeito aberto e honesto, a fim de aprender com outros países da Europa [...]. Se os países estiverem em uma competição pesada em termos de estatísticas, eles podem querer melhorar as estatísticas e não os mecanismos utilizados [...]. 5 Disponível em: . Acesso em: 9 set. 2016. 6 Ibidem. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA buscam os mais altos rendimentos no desempenho de seus alunos, normalmente medidos por meio de competências relacionadas a leitura, escrita e matemática. Esses resultados são, inclusive, publicamente divulgados a partir de uma lógica de ranking. A agência tem tentado identificar escolas que combinam a busca por rendimento com o compromisso em atender estudantes com deficiência dentro da sala de aula regular: 229 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Há alguns anos, tive a chance de conversar com Pirjo Koivula, integrante do Ministério da Educação da Finlândia, país que faz parte da Agência Europeia e tem se destacado em rankings internacionais sobre qualidade de ensino7. Ao perguntar-lhe sobre como conciliar a busca por desempenho acadêmico com o acolhimento das diferenças, Pirjo explicou que a Finlândia investe continuamente em suporte ao aluno. Seja qual for o background, todo aluno pode, em algum momento, precisar de atenção individualizada, e os professores são orientados a identificar diariamente aqueles que precisam de apoio. Pessoas com deficiência fazem parte desse processo. São tratadas como iguais. Uma das evidências dessa abordagem não discriminatória é a opção por abandonar a expressão “educação especial”. Assim como as outras, uma criança com deficiência pode precisar de “suporte” e é isso que buscam oferecer. Em suma, a Agência Europeia também evidencia a percepção de que a prática genuína da educação inclusiva representa uma oportunidade de melhoria em todo o sistema educacional. Essa constatação baseia-se na premissa de que projetos pedagógicos pautados não só pela aquisição de conteúdos acadêmicos, mas também pela ampliação da empatia e das competências interpessoais beneficiam todos os estudantes, sejam quais forem suas particularidades pessoais. Conclusão Voltando à nossa reflexão inicial, nenhuma das referências aqui citadas rendeu-se à dicotomia “educação para mercado versus educação para cidadania”. Mais do que isso, indicaram que é possível transcender as ciladas representadas pela escolha simplista entre dois extremos e perseguir uma educação baseada na soma. 7 Exemplos: Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), organizado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), e o índice de educação global publicado pela ONU. 230 Não há dúvida de que a construção de redes de ensino inclusivas é extremamente desafiadora. Entre outras coisas, demanda comprometimento e disposição para mudanças estruturais. Contudo, escolas como a Clarisse Fecury e a Henderson School transcendem a teoria e oferecem respostas objetivas ao cômodo discurso do despreparo. É bom lembrar que a exclusão das pessoas com deficiência do mercado de trabalho é, quase sempre, fruto de uma baixa escolaridade e da inexperiência de convívio da maioria da população com esse segmento. Não bastasse ser um direito, a educação inclusiva é uma resposta mais inteligente às demandas do mundo contemporâneo. Incentiva uma pedagogia não homogeneizadora e desenvolve competências interpessoais. A sala de aula deveria espelhar a diversidade humana, não escondê-la. Claro que isso gera novas tensões e conflitos, mas também estimula as habilidades morais para a convivência democrática. O resultado final é uma educação melhor para todos. Referências AINSCOW, Mel. Index for Inclusion: developing learning and participation in schools. 3. ed. Bristol: Centre for Studies on Inclusive Education, 2011. BONETTI, Adriangela. O Plano Educacional Individualizado (PEI) e o sistema escolar de avaliação classificatória. Disponível em: . Acesso em: 9 set. 2016. BRASIL-MEC. Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da educação inclusiva. Disponível em: . Acesso em: 9 set. 2016. EUROPEAN-AGENCY. Princípios-chave para a promoção da qualidade na educação inclusiva - recomendações para decisores políticos. Disponível em: . Acesso em: 9 set. 2016. GONZAGA, Eugênia et al. Atendimento educacional especial: aspectos legais. Disponível em: . Acesso em: 9 set. 2016. HEHIR, Thomas. Effective inclusive schools: Designing successful schoolwide programs. New Jersey: Jossey-Bass, 2012. MACEDO, Lino. Benefícios da aprendizagem da língua de sinais para todos. Disponível em: . Acesso em: 9 set. 2016. MANTOAN, Maria Teresa. Inclusão Escolar: O que é? Por quê? Como fazer? 2. ed. São Paulo: Moderna, 2006. MENDES, Rodrigo Hübner. O caso da Agência Europeia – Odense, Dinamarca. Disponível em: . Acesso em: 9 set. 2016. 232 . O caso da escola Clarisse Fecury – Rio Branco, Acre, Brasil. Disponível em: . Acesso em: 9 set. 2016. . O caso da escola William Henderson – Boston, MA, EUA. Disponível em: . Acesso em: 9 set. 2016. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração de Salamanca sobre Princípios, Políticas e Práticas na Área das Necessidades Educativas Especiais. Disponível em . Acesso em: 9 set. 2016. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA OLIVEIRA, Sonia. Educação de surdos: os desafios da proposta bilíngue. Disponível em: . Acesso em: 9 set. 2016. 233 E Leminski já sabia – mobilidade acessível e a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência Isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar além (Paulo Leminski) A poesia de Leminski permite estabelecer uma metáfora com a afirmação do modelo social/relacional de deficiência em nosso ordenamento, por meio da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei n. 13.146/2015), na medida em que tais marcos normativos trazem consigo o respeito à ideia de igualdade como diversidade, a ideia de que o respeito de “ser exatamente aquilo que a gente é” é premissa indispensável para inclusão e efetivação de direitos. Nesse sentido, três pontos são essenciais para a estruturação, no presente artigo, do debate acerca da mobilidade acessível: I) transformações de deficiência e igualdade – ou: haja hoje para tanto hontem (sic); II) acessibilidade e abordagem conceitual – ou: o que o amanhã não sabe, o ontem não soube; e III) desafios de acessibilidade, mobi1 Procurador da República. Pesquisador da relação entre Direito Constitucional, Direito Civil e direito à diversidade e diferença. Professor Assistente (efetivo) na Universidade Federal de Goiás – Campus Cidade de Goiás – entre 2010 e 2013. Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (2007). MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros1 235 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA lidade e fiscalização e a experiência do 4º Ofício da Procuradoria da República no Amazonas – ou: bem no fundo e os problemas que não se resolvem por decreto. 1 Transformações de deficiência e igualdade – ou: haja hoje para tanto hontem (sic)2 A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CIDPD)3 define deficiência4 de modo dinâmico e aberto a reconstruções, no que é replicada pela Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBIPD)5. 2 Poema de Leminski publicado em 1991 na obra La vie en close. 3 A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência foi recepcionada em nosso ordenamento com o status de Emenda Constitucional, por força do art. 5º, § 3º, da Constituição Federal. Por essa razão, ao longo do texto utilizam-se expressões que remetem à ideia de marco constitucional para se referir à CIDPD. 4 Tal definição se faz presente no preâmbulo da Convenção, em suas alíneas e e v, bem como em seu artigo 1, abaixo: “e) Reconhecendo que a deficiência é um conceito em evolução e que a deficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, [...] v) Reconhecendo a importância da acessibilidade aos meios físico, social, econômico e cultural, à saúde, à educação e à informação e comunicação, para possibilitar às pessoas com deficiência o pleno gozo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, [...] Artigo 1 […] Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas.” 5 “Art. 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.” 236 Essas definições são pensadas a partir do modelo social. Diferenciam impairment/atributo6 de deficiência e rompem com o peso do ontem, com o status de redução de direitos previsto pelo modelo médico/reabilitador. Ferraz e Leite7 fazem uma importante reconstrução dos conceitos envolvidos no modelo médico/reabilitador, que [...] individualizava a deficiência, que estava calcada na enfermidade da pessoa, em sua condição de saúde física e mental. Com isso, na medida em que a deficiência seria um problema individual, oriundo de uma disfunção da própria pessoa, a solução para as referidas limitações seria de natureza médica, pautada no processo de reabilitação do indivíduo, centrado na erradicação da patologia que, enfim, permitiria normalizar o paciente, reajustando as funções corporais e mentais ao padrão dominante. Em suma, o fim do processo de exclusão vivenciado pela pessoa com deficiência dependeria tão somente de sua cura. Dessa forma, o tratamento dispensado à pessoa com deficiência era o de um cidadão de segunda classe, com violenta redução 6 Em curso ministrado pela Escola Superior do Ministério Público da União – “A Nova Lei de Inclusão da Pessoa com Deficiência” –, realizado entre 31.5.2016 e 2.6.2016, Ricardo Tadeu Marques da Fonseca sugeriu que a tradução mais adequada para impairment, sob um ponto de vista de abordagem contextualizada do debate jurídico sobre deficiência, seria o termo atributo, na medida em que abrangeria uma característica pessoal – cor dos olhos ou lesões na retina – a qual, em interação com eventuais barreiras impostas, resultariam em deficiência. Por essa razão, o presente artigo utiliza o termo atributo quando pretende se referir àquilo que a literatura estrangeira denomina impairment. 7 FERRAZ; LEITE, 2015, p. 94-95. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA A título de exemplo, a exclusão social vivenciada por uma pessoa cega, marcada por dificuldades de deslocamento físico, de acesso à educação formal, inclusão ao mercado de trabalho etc., decorreria apenas de usa limitação visual, que estaria distante do padrão atribuído ao homem comum, médio. 237 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA em sua autonomia pública e privada, cuja síntese se encontrava no instituto da curatela. Contra esse pano de fundo e a partir da forte atuação dos movimentos sociais, emerge, nas décadas de 1970 e 1980, um modelo social de deficiência assentado em duas premissas8: [...] primeiro, é necessário distinguir a limitação do corpo ou da mente (que é considerada um atributo da pessoa), da deficiência, pois enquanto aquela é um atributo físico, sensorial ou psicológico, inerente à própria pessoa, essa é proveniente de barreiras sociais e culturais que implicam na exclusão da pessoa que está fora dos padrões majoritários; segundo, na medida em que a deficiência não possui caráter individual, por não se caracterizar com uma patologia que deveria ser curada, por se tratar, na realidade, de restrições presentes no meio, de cunho estrutural, significa que a responsabilidade de alterar esse quadro, a fim de permitir que todos tenham acesso aos mesmos direitos, a partir de uma noção ampla de acessibilidade e de promoção da cidadania, é da sociedade e do Estado. Exemplo dessa situação pode ser observado em criança que possua lesões em ambas as retinas, possuindo baixa visão, e que, ao iniciar seu processo pré-escolar e de alfabetização, depare-se com o fato de que existem poucos centros e escolas no país adaptados para suas necessidades educacionais e de desenvolvimento, inexistindo tais centros na localidade onde reside. Para o modelo médico/reabilitador, o problema seria alguém com uma patologia (as lesões na retina) tentar ter acesso à educação regular; essa pessoa deveria ser curada para ter acesso aos padrões. Para o modelo social, as lesões são um atributo da pessoa, que deve ser levado em consideração na sua formação de subjetividade; a deficiência não se situa mais no atributo dessa criança, mas no ambiente inacessível e nas barreiras impostas pela sociedade e pela Administração Pública. O conceito de deficiência, assim, abandona o solipsismo e torna-se relacional. 8 FERRAZ; LEITE, 2015, p. 96. 238 A deficiência deve ser vista em uma perspectiva relacional, a partir da interação entre os atributos da pessoa e as relações desenvolvidas, sendo entendida, conforme a Presidenta do Comitê de Direitos das Pessoas com Deficiência das Nações Unidas9 em um [...] caracter multidimencional de las personas con discapacidad, como cualquier otro indivíduo, siendo titulares de participación en la sociedad. El empoderamiento de este setor de la población es fundamental para el progreso de su condición jurídica y lograr el disfrute de una vida plena. La interaccion con barreras coloca al Estado y a la sociedade en la necesidad de remover obstáculos y de crear condiciones que faciliten la participación plena y efectiva en la sociedad. Esta última se traducirá en el goce y ejercicio de derechos humanos. [Grifo nosso]. Nesse contexto, são dois os pilares fundamentais da CIDPD e do contemporâneo Direito das Pessoas com Deficiência: I) igualdade e não discriminação; e II) direitos específicos para essa coletividade (a rigor, um tratamento jurídico diferenciado, com vistas a permitir exatamente igualdade e não discriminação). Por essa razão, a leitura dicotômica de igualdade consagrada no ordenamento brasileiro (igualdade formal x igualdade material) se revela insuficiente para abordar a complexidade da efetivação de direitos das pessoas com deficiência. Não se pretende com isso afirmar que a efetivação de direitos sociais das pessoas com deficiência10 não seja relevante, mas apenas ressaltar que a verdadeira concretização da igualdade passa pelo necessário reconhecimento da diversidade. 9 REYES, 2015, p. 19. 10 Concede-se especial ênfase aqui aos benefícios previstos nos arts. 39 e 40 da LBIPD. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA En otras palabras, la discapacidad será el resultado de la interacción con barreras que experimenta una persona que presenta deficiencia, lo que produce un impacto específico en su participación plena y efectiva en la sociedad. 239 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA O tratamento desigual à diferença fere a autonomia e demonstra a tensão existente entre diferença e igualdade. O que se pretende, ao invés da submissão da diferença à igualdade (que rotula a diferença como desigualdade), é a utilização de uma igualdade que só consegue se afirmar a partir do respeito à diferença, igualdade entendida não de uma maneira limitadora, mas que seja igual exatamente por possibilitar o exercício da autonomia11 e a vivência da diferença, sem um tratamento desigual e inferiorizante pelo direito. Nessa direção, a contribuição do constitucionalista estadunidense Michel Rosenfeld permite uma melhor abordagem da temática, ao trabalhar a igualdade constitucional a partir do constitucionalismo e do modelo de Estado Democrático de Direito, calcado na contrafaticidade de um abstracionismo normativo, que considera as diferenças existentes na realidade a partir de uma ideia de tratamento igualitário advinda da proteção constitucional, ou seja, da assunção da igualdade na diferença, para que todas as pessoas tenham garantias dos mesmos direitos constitucionais e recebam igual proteção da lei12. Essa ideia é desenvolvida a partir da elaboração de três graus de igualdade. Observe-se que essa divisão em graus não conduz necessariamente a uma superioridade, uma hierarquia entre os diferentes graus, tampouco conduz à noção de superação, por exemplo, dos graus “um” e “dois” pelo grau “três”. O que ocorre é que cada grau lida com situações de complexidades distintas, sendo às vezes determinado grau insuficiente para a concretização da igualdade de acordo com o constitucionalismo e o Estado Democrático de Direito em situações concretas. 11 Esse é também o pano de fundo da tomada de decisão apoiada, importante ruptura no âmbito do direito civil e melhor abordado em outros textos da presente obra coletiva. 12 ROSENFELD, 2003, p. 79. 240 O grau “um” consiste no entendimento da diferença como desigualdade, na qual a diferença é entendida como justificadora de um necessário tratamento desigual, a exemplo de situações de menor complexidade, como o tratamento desigual conferido a um contratante e a um não contratante em determinada relação de natureza civil. Um exemplo pode ser observado em questões relacionadas ao ingresso no mercado de trabalho. Um tratamento baseado na igualdade do tipo “dois” poderia abarcar o direito a acessibilidade no mercado de trabalho, mas seria insuficiente para lidar com as especificidades relativas a adaptação razoável13. 13 A adaptação razoável encontra-se prevista na LBIPD em vários artigos e sob diversos prismas, seja na elaboração de produtos, seja na regulamentação do mercado de trabalho (art. 32, III; art. 37, caput; art. 55, § 2º) , sendo melhor definida no parágrafo 25, dos Comentários Gerais n. 2 acerca da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, elaborado pelo Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que assim explicita: “La acessibilidad se relaciona con grupos de personas, mientras que los ajustes razonables se refieren a casos individudales. Esto significa que la obligación de proporcionar accesibilidad es una obligación ex ante. Por tanto, los Estados partes tienen la obligación de proporcionar accesibilidad antes de recibir una peticion individual para entrar en un lugar o utilizar un servicio. […] En el caso de las personas con deficiencas raras que no se tuvieron en cuenta al elaborar las normas de accesibilidad o que no utilizan los modos, metodos o medios previstos para garantizar la accesibilidad (no leen Braille, por ejemplo) incluso la aplicación de las normas de accesibilidade puede ser insuficiente para garatizarles el acceso. En tales casos, pueden aplicarse ajustes razonables.” Em adição, o parágrafo 26 do mesmo diploma explica: “La obligación de realizar ajustes razonables es una obligación ex nunc, lo que significa que estos son exigibles desde el momento en que una persona con una deficiencia los necesita en una determinada situación, por ejemplo, el lugar de trabajo o la escuela, para disfrutar de sus derechos en igualdad de concdiciones en un contexto particular”. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA O grau “dois” baseia a igualdade na identidade, em que a igualdade só é obtida por quem alcança determinados critérios entendidos como fechados em uma identidade definida; é apto a lidar com uma plêiade maior de situações, como por exemplo, o igual tratamento a membros de uma mesma categoria profissional, mas insuficiente, por exemplo, para abordar a integralidade dos direitos da pessoa com deficiência. 241 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Nesse sentido, a igualdade entendida como respeito à diferença se demonstra uma forma mais adequada de permitir a concretização de um efetivo tratamento igualitário, na medida em que faz uso do abstracionismo sem, contudo, fechar os olhos para as peculiaridades. É o que se verifica no grau “três” de igualdade, em que as diferenças existentes nas identidades dos grupos e, ainda, no cidadão individualmente considerado são levadas em conta, juntamente com a abstração contrafactual do direito, passando assim a diferença a corresponder à igualdade, na medida em que, a partir das especificidades da situação concreta e das medidas a serem tomadas para uma efetiva concretização de um tratamento igualitário, tem-se a ideia de que qualquer pessoa deve ser tratada em proporção a suas necessidades e aspirações14. A igualdade como diferença vê sua promoção baseada no exercício de um pluralismo abrangente15 (comprehensive), que dialoga com a própria abertura do sujeito constitucional, possuindo um primeiro momento negativo, no qual há uma consideração igualitária de negação e rechaço a todas as diferentes concepções de bem, para, em seguida, adotar um segundo momento positivo, em que essas concepções são readmitidas de acordo com a própria concepção de bem do pluralismo, ou seja, em uma readmissão que permita o convívio dessa concepção com as demais concepções. Dessa forma, a igualdade pela diferença, em virtude do respeito às autonomias e do tratamento da diferença como diferença não desigual, permitindo abertura às interações sociais, se revela mais apta a dialogar com a contínua reconstrução da identidade do sujeito constitucional, possibilitando, dessa maneira, uma maior perspectiva de inclusão e reconhecimento da diferença. 14 ROSENFELD, 2003, p. 73. 15 ROSENFELD, 2003, p. 73. 242 2 Acessibilidade e abordagem conceitual – ou: o que o amanhã não sabe, o ontem não soube16 É importante ressaltar que nem o marco constitucional da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência nem a LBIPD – em que pese a relevância da força constitucional daquela e da sistematização dessa – foram os primeiros textos normativos a regulamentar a questão, havendo, conforme aponta Gonzaga17, marcos anteriores pertinentes ao direito de acesso à educação em ambiente inclusivo (art. 208, III, da CF e art. 60 da Lei de diretrizes e Bases da Educação); ao direito de acesso ao trabalho (destacando-se o art. 93, da Lei n. 8.213/1991 e art. 5º, § 2º, da Lei n. 8.112/1990); direito de acesso à saúde (Lei n. 8.080/1990 e Lei n. 7.853/1989). Observa-se, portanto, que supostas alegações de que a acessibilidade seria algo novo, e que por isso demandaria um maior tempo de adaptação dos atores sociais para sua efetivação, não encontra base na realidade. Argumentos dessa natureza procuram justificar a falta de acessibilidade hoje existente com base em um ontem que não soube ser acessível, prometendo um amanhã de acessibilidade que nunca chega18. 16 O que o amanhã não sabe, o ontem não soube, nada que não seja o hoje, jamais houve. (LEMINSKI, 2013). 17 GONZAGA, 2015, p. 114-126. 18 Argumentos dessa natureza, tautológicos (e inconstitucionais!), que alegam que não se pode efetivar a acessbilidade hoje porque ela inexisitia ontem, foram inclusive apresentados perante a Suprema Corte, por intermédio de ADI ajuizada (e indeferida pelo STF) pela Confenen. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA O direito à acessibilidade permeia toda a LBIPD, possuindo verdadeiro caráter transversal, na medida em que se faz presente nas regulamentações específicas voltadas para o pleno exercício do direito à moradia, ao trabalho, à saúde, à educação, à cultura e ao lazer, à mobilidade, ao acesso à informação e possuindo reflexos em vários outros ramos do direito, à exemplo do direito urbanístico e à cidade. 243 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Como já demonstrado, procurando romper com o modelo médico/reabilitador de deficiência, a conceituação de acessibilidade na LBIPD parte da ideia de autonomia da pessoa com deficiência, sendo entendida no art. 3º, I, como possibilidade e condição de alcance para utilização, com segurança e autonomia, de espaços, mobiliários, equipamentos urbanos, edificações, transportes, informação e comunicação, inclusive seus sistemas e tecnologias, bem como de outros serviços e instalações abertos ao público, de uso público ou privados de uso coletivo, tanto na zona urbana como na rural, por pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida. A autonomia defendida pela acessibilidade se dá tanto no âmbito da autonomia pública quanto privada, haja vista que, nos dizeres de Jürgen Habermas19, [n]ão há direito algum sem a autonomia privada de pessoas do direito. Portanto, sem os direitos fundamentais que asseguram a autonomia privada dos cidadãos, não haveria tampouco um medium para a institucionalização jurídica das condições sob as quais eles mesmos podem fazer uso da autonomia pública ao desempenharem seu papel de cidadãos do Estado. A equiprimordialidade de tais autonomias permite o livre exercício da pluralidade, inerente à idéia de constitucionalismo, e consequentemente a integração20 das pessoas com deficiência. Maiores detalhes podem ser obtidos em: . 19 HABERMAS, 2004, p. 301. 20 Observar a distinção promovida por Habermas (1998, p. 108) entre integração e incorporação, que ressalta a necessidade de uma igualdade que considere a diferença existente, na medida em que a autodeterminação, baseada na equiprimordialidade da autonomia pública e privada, possui “o sentido inclusivo de uma autolegislação de todos os cidadãos uniformemente integrados. Inclusão significa que uma tal ordem política se mantém aberta para a equalização dos discriminados e para a integração dos marginalizados, sem incorporá-los na uniformidade de uma comunidade popular homogeneizada”. 244 Dessa forma, a obrigação ex ante de acessibilidade dirige-se indistintamente a entes públicos e privados, como observa Reyes21: En la medida en que los bienes, productos y servicios estén abiertos al público o sean de uso público, deben ser accesibles a todas las personas, independientemente de que la entidad que los posea u ofrezca sea una autoridad pública o una empresa privada, enfatiza el Comité. La denegación de acceso debe considerarse un acto discriminatorio, independientemente de que quien lo cometa sea una entidad pública o privada. La accesibilidad debe tener en cuenta las perspectivas del genero y la edad de las personas con discapacidad. Art. 54. São sujeitas ao cumprimento das disposições desta Lei e de outras normas relativas à acessibilidade, sempre que houver interação com a matéria nela regulada: I - a aprovação de projeto arquitetônico e urbanístico ou de comunicação e informação, a fabricação de veículos de transporte coletivo, a prestação do respectivo serviço e a execução de qualquer tipo de obra, quando tenham destinação pública ou coletiva; II - a outorga ou a renovação de concessão, permissão, autorização ou habilitação de qualquer natureza; III - a aprovação de financiamento de projeto com utilização de recursos públicos, por meio de renúncia ou de incentivo fiscal, contrato, convênio ou instrumento congênere; e IV - a concessão de aval da União para obtenção de empréstimo e de financiamento internacionais por entes públicos ou privados. Art. 55. A concepção e a implantação de projetos que tratem do meio físico, de transporte, de informação e comunicação, inclusive 21 REYES, 2015, p. 32. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Essa linha, de responsabilidade de toda a sociedade pela inclusão e efetivação de direitos, presente na CIDPD, é detalhada nos arts. 54 a 60 da LBIPD: 245 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA de sistemas e tecnologias da informação e comunicação, e de outros serviços, equipamentos e instalações abertos ao público, de uso público ou privado de uso coletivo, tanto na zona urbana como na rural, devem atender aos princípios do desenho universal, tendo como referência as normas de acessibilidade. § 1º O desenho universal será sempre tomado como regra de caráter geral. § 2º Nas hipóteses em que comprovadamente o desenho universal não possa ser empreendido, deve ser adotada adaptação razoável. § 3º Caberá ao poder público promover a inclusão de conteúdos temáticos referentes ao desenho universal nas diretrizes curriculares da educação profissional e tecnológica e do ensino superior e na formação das carreiras de Estado. § 4º Os programas, os projetos e as linhas de pesquisa a serem desenvolvidos com o apoio de organismos públicos de auxílio à pesquisa e de agências de fomento deverão incluir temas voltados para o desenho universal. § 5º Desde a etapa de concepção, as políticas públicas deverão considerar a adoção do desenho universal. Art. 56. A construção, a reforma, a ampliação ou a mudança de uso de edificações abertas ao público, de uso público ou privadas de uso coletivo deverão ser executadas de modo a serem acessíveis. § 1º As entidades de fiscalização profissional das atividades de Engenharia, de Arquitetura e correlatas, ao anotarem a responsabilidade técnica de projetos, devem exigir a responsabilidade profissional declarada de atendimento às regras de acessibilidade previstas em legislação e em normas técnicas pertinentes. § 2º Para a aprovação, o licenciamento ou a emissão de certificado de projeto executivo arquitetônico, urbanístico e de instalações e equipamentos temporários ou permanentes e para o licenciamento ou a emissão de certificado de conclusão de obra ou de serviço, deve ser atestado o atendimento às regras de acessibilidade. 246 § 3º O poder público, após certificar a acessibilidade de edificação ou de serviço, determinará a colocação, em espaços ou em locais de ampla visibilidade, do símbolo internacional de acesso, na forma prevista em legislação e em normas técnicas correlatas. Art. 57. As edificações públicas e privadas de uso coletivo já existentes devem garantir acessibilidade à pessoa com deficiência em todas as suas dependências e serviços, tendo como referência as normas de acessibilidade vigentes. § 1º As construtoras e incorporadoras responsáveis pelo projeto e pela construção das edificações a que se refere o caput deste artigo devem assegurar percentual mínimo de suas unidades internamente acessíveis, na forma regulamentar. § 2º É vedada a cobrança de valores adicionais para a aquisição de unidades internamente acessíveis a que se refere o § 1º deste artigo. Art. 59. Em qualquer intervenção nas vias e nos espaços públicos, o poder público e as empresas concessionárias responsáveis pela execução das obras e dos serviços devem garantir, de forma segura, a fluidez do trânsito e a livre circulação e acessibilidade das pessoas, durante e após sua execução. Art. 60. Orientam-se, no que couber, pelas regras de acessibilidade previstas em legislação e em normas técnicas, observado o disposto na Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000, nº 10.257, de 10 de julho de 2001, e nº 12.587, de 3 de janeiro de 2012: I - os planos diretores municipais, os planos diretores de transporte e trânsito, os planos de mobilidade urbana e os planos de preservação de sítios históricos elaborados ou atualizados a partir da publicação desta Lei; II - os códigos de obras, os códigos de postura, as leis de uso e ocupação do solo e as leis do sistema viário; MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Art. 58. O projeto e a construção de edificação de uso privado multifamiliar devem atender aos preceitos de acessibilidade, na forma regulamentar. 247 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA III - os estudos prévios de impacto de vizinhança; IV - as atividades de fiscalização e a imposição de sanções; e V - a legislação referente à prevenção contra incêndio e pânico. § 1º A concessão e a renovação de alvará de funcionamento para qualquer atividade são condicionadas à observação e à certificação das regras de acessibilidade. § 2º A emissão de carta de habite-se ou de habilitação equivalente e sua renovação, quando esta tiver sido emitida anteriormente às exigências de acessibilidade, é condicionada à observação e à certificação das regras de acessibilidade. Art. 61. A formulação, a implementação e a manutenção das ações de acessibilidade atenderão às seguintes premissas básicas: I - eleição de prioridades, elaboração de cronograma e reserva de recursos para implementação das ações; e II - planejamento contínuo e articulado entre os setores envolvidos. Art. 62. É assegurado à pessoa com deficiência, mediante solicitação, o recebimento de contas, boletos, recibos, extratos e cobranças de tributos em formato acessível. A acessibilidade possibilita o gozo de direitos por pessoas com deficiência e, ao se basear na ideia de desenho universal, permite efetivar o pluralismo abrangente desenvolvido por Rosenfeld, já que possibilita a elaboração de produtos e serviços inclusivos ao mesmo tempo às pessoas com deficiência e sem deficiência, conforme disciplinado constitucionalmente e, mais detalhadamente, no art. 56 da LBIPD. O desenho universal constitui-se desenho de produtos e ambientes22 para serem utilizados por todas as pessoas, ao máximo grau 22 A fim de possibilitar uma abordagem mais ampla da acessibilidade, adota-se aqui a ideia de serviços (e da própria formulação de políticas públicas acessíveis) como correlata à ideia de produtos e ambientes de desenho universal. 248 possível sem a necessidade de adaptações ou de desenho especializado, e possui como base sete princípios23: I) uso equitativo – desenho útil e comerciável para qualquer grupo; II) flexibilidade no uso – acolhe amplo espectro de preferencias e capacidades individuais; III) utilização simples e intuitiva – dispensa experiência prévia ou técnica; V) tolerância para erros – minimiza riscos de ações acidentais; VI) baixo esforço físico; VII) tamanho e espaço para utilização e aproximação. Esses princípios norteiam a aplicação do desenho universal, como observa o Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência no parágrafo 15 dos Comentários Gerais n. 2 à Convenção Internacional: La aplicación estricta del diseño universal a todos los nuevos bienes, productos, instalaciones, tecnologias y servicios debe garantizar un acceso pleno, en pie de igualdad y sin restricciones a todos los consumidores potenciales, incluidas las personas con discapacidad, de una manera que tenga plenamente en cuenta su dignidad y diversidad intrínsecas. Debe contribuir a la creación de una cadena irrestricta de desplazamientos de la persona de un espacio a otro, y también dentro de un espacio en particular, sin barrera 23 Romeu Kazumi Sasaki trabalhou esses princípios em curso ministrado pela Escola Superior do Ministério Público da União (A Nova Lei de Inclusão da Pessoa com Deficiência), realizado entre 31.5.2016 e 2.6.2016. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA IV) informações perceptíveis – independem do ambiente para compreensão; 249 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA alguna. Las personas com discapacidad y los demás usuarios deben poder desplazarse por calles sin barreras, entrar en vehículos accesibles de piso bajo, acceder a la información y la comunicación y entrar en edifcios de diseño universal y desplazarse dentro de ellos, recurriendo a ayudas técnicas y asistencia humana o animal en caso necesario. Em virtude do papel capilar da acessibilidade, torna-se inviável abordar no presente artigo sua aplicação em todas as áreas, concedendo-se aqui especial ênfase à interface entre acessibilidade e mobilidade, conforme determinado no art. 60, I, e nos arts. 46 a 52, todos da LBIPD. Nesse sentido, podem-se destacar três grandes pontos fundantes da mobilidade acessível determinada pela LBIPD: I) a necessidade de adequação e integração do sistema às pessoas com deficiência, por intermédio de acessibilidade de veículos, instalações, estações, pontos de parada, sistema viário24 e prestação do serviço (art. 46, § 1º c/c art. 48); II) a imposição de regras para a concessão/outorga dos serviços públicos, que não podem persistir sem observância das regras de acessibilidade (art. 46, § 2º); e III) a ampliação dos percentuais de veículos acessíveis (arts. 49 a 51). Apesar de significarem avanços, os três eixos de mobilidade acessível delimitados pela LBIPD dependem da efetivação de outro instrumento normativo que ainda encontra baixo grau de efetivação: 24 Há no texto legal uma redução dos diferentes modais de transporte urbano e rural ao modal viário, o que se revelaria incoerente com o pluralismo abrangente norteador da inclusão pela acessibilidade e também com a própria regulamentação da Lei n. 12.587 – Lei de Mobilidade Urbana. Por essa razão, quando se fala de sistema viário, deve entende-lo como metonímia, em que a única interpretação possível é aquela que abrange os diferentes modais (ferroviário, viário e aquaviário, por exemplo). 250 o plano municipal de mobilidade, previsto pela Lei n. 12.587/2012 e longe ainda de se tornar uma realidade no cotidiano das pessoas. A implantação da mobilidade acessível só é possível quando pensada de maneira estruturada, sistêmica e com participação social, na medida em que pretensas soluções isoladas ou salvacionistas ignoram a necessária integração do sistema de mobilidade. Como efetivar um modal metroviário acessível que não seja integrado a um sistema rodoviário acessível? Não existe meia acessibilidade nem meio direito; ou tem-se acessibilidade integral no âmbito da mobilidade (o que, frise-se novamente, só é possível a partir de uma estruturação conjunta) ou não se tem mobilidade acessível alguma. 3 Desafios de acessibilidade, mobilidade e fiscalização e a experiência do 4º Ofício da Procuradoria da República no Amazonas – ou: bem no fundo25 e os problemas que não se resolvem por decreto Por mais que seja possível utilizar diálogos literários para abordar aspectos jurídicos de questões sociais, o fato é que direitos apenas 25 Bem no fundo no fundo, no fundo, bem lá no fundo, a gente gostaria de ver nossos problemas resolvidos por decreto […] Mas problemas não se resolvem, problemas têm família grande e aos domingos saem todos passear o problema, sua senhora e outros pequenos probleminhas (LEMINSKI, 2013). MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Quais os desafios que se apresentam então nesse contexto? 251 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA reduzidos a metáforas não são direitos, tampouco serão os problemas resolvidos apenas a partir da simples edição de textos normativos, que são, quando muito, pontos de partida. É necessário indagar o papel dos atores jurídicos envolvidos na concretização desses direitos. A concretização dos três eixos de mobilidade acessível da LBIPD depende de atuação integrada e planejada, não sendo possível a partir de medidas isoladas. Apesar da relevância dessa política pública, menos de 30% dos municípios brasileiros possuem planos de mobilidade26. O que deve constar de tais planos? A quem cabe a fiscalização pela sua realização e implementação? Se o direito à acessibilidade parece pacífico de estar incluído nas atribuições do Ministério Público Federal, o mesmo não se pode dizer do direito à mobilidade, em especial à mobilidade urbana. A experiência desenvolvida no âmbito do 4º Ofício da Procuradoria da República no Amazonas procurou romper com a redução das discussões de mobilidade a uma pauta de interesse local, ressaltando a concomitância do papel federal, seja por um viés de benefícios tributários (ocasionando em diminuição de arrecadação de tributos federais), seja pela determinação de competência comum de União, estados e municípios para assegurar as garantias das pessoas com deficiência (art. 23, II, da CF). Em 2014, por ocasião da proximidade do término do prazo original de implantação dos planos de mobilidade urbana, foi instaurado pelo 4º Ofício da Procuradoria da República no Amazonas o Procedimento Preparatório n. 1.13.000.001282/2014-62, com o objetivo de acompanhar a elaboração do Plano de Mobilidade Urbana de Manaus27. 26 Disponível em: . 27 O principal objetivo do acompanhamento era permitir a participação democrática na elaboração do plano de mobilidade urbana de Manaus, conforme noticiado em: . 252 O entendimento pela existência de atribuição federal partiu da previsão de que a Constituição Federal determina como competência da União o estabelecimento de diretrizes para o transporte urbano, nos termos do art. 21, XX 28, e que a Lei n. 12.587/2012 – Lei de Mobilidade Urbana (LMU) –, de acordo com a competência constitucionalmente delineada para a União, estabeleceu diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana, a serem observadas por todos os entes federativos. Nesse sentido, o art. 24, § 1º, da LMU estabeleceu que os municípios com mais de 20.000 habitantes devem elaborar Plano de Mobilidade Urbana integrado ao Plano Diretor Municipal, contemplando: II) a circulação viária; III) as infraestruturas do sistema de mobilidade urbana; IV) a acessibilidade para pessoas com deficiência e restrição de mobilidade; V) a integração dos modos de transporte público e destes com os privados e os não motorizados; VI) a operação e o disciplinamento do transporte de carga na infraestrutura viária; VII) os polos geradores de viagens; VIII) as áreas de estacionamentos públicos e privados, gratuitos ou onerosos. Conjuntamente, deve-se observar que todos os envolvidos na prestação de serviços de mobilidade urbana foram beneficiados 28 “Art. 21. Compete à União: [...] XX - instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos”. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA I) os serviços de transporte público coletivo; 253 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA pela desoneração de tributos federais e seu consequente impacto na composição da política tarifária, conforme a Lei n. 12.830/2013, que assim dispôs: Art. 1o Ficam reduzidas a 0% (zero por cento) as alíquotas da Contribuição para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público – PIS/PASEP e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social – COFINS incidentes sobre a receita decorrente da prestação de serviços regulares de transporte coletivo municipal rodoviário, metroviário, ferroviário e aquaviário de passageiros. Parágrafo único. O disposto no caput alcança também as receitas decorrentes da prestação dos referidos serviços no território de região metropolitana regularmente constituída. Ademais, o aporte de verbas federais para intervenções de maior amplitude no âmbito da mobilidade urbana29 permite também uma atuação preventiva do Ministério Público Federal na questão de mobilidade, reforçada inclusive pela previsão do art. 24, § 4º, da LMU, que determinou que houvesse o bloqueio do repasse de verbas orçamentárias federais pertinentes à mobilidade urbana aos municípios que não tenham elaborado seus respectivos Planos de Mobilidade Urbana até 14 de abril de 2015, verbis: Art. 24. O Plano de Mobilidade Urbana é o instrumento de efetivação da Política Nacional de Mobilidade Urbana e deverá contemplar os princípios, os objetivos e as diretrizes desta Lei, bem como: […] § 4o Os Municípios que não tenham elaborado o Plano de Mobilidade Urbana na data de promulgação desta Lei terão o prazo máximo de 3 (três) 29 Conforme noticiado à época e bastante ilustrativo do peso da União nas questões de mobilidade, por ocasião da realização da Copa do Mundo de 2014 no Brasil, houve a liberação de linha de crédito própria do BNDES para obras de mobilidade, segundo informação disponível em: . Maiores detalhes sobre a atuação do MPF em obras de mobilidade urbana podem ser encontrados nas páginas 35 e 36 do Relatório de Atividades de 2013 da 5ª CCR, em que se mencionam as atividades desenvolvidas pelo GT Copa do Mundo: . 254 anos de sua vigência para elaborá-lo. Findo o prazo, ficam impedidos de receber recursos orçamentários federais destinados à mobilidade urbana até que atendam à exigência desta Lei. O direito à acessibilidade é também previsto como princípio e diretriz da Lei de Mobilidade Urbana, devendo estar presente no Plano de Mobilidade Urbana, e deve contemplar os princípios e diretrizes delineados no art. 5º da LMU, com especial ênfase à gestão democrática (que foi à época o principal foco do Procedimento Preparatório em questão) e controle social do planejamento e avaliação da Política Nacional de Mobilidade Urbana, verbis: Art. 5º A Política Nacional de Mobilidade Urbana está fundamentada nos seguintes princípios: II - desenvolvimento sustentável das cidades, nas dimensões socioeconômicas e ambientais; III - equidade no acesso dos cidadãos ao transporte público coletivo; IV - eficiência, eficácia e efetividade na prestação dos serviços de transporte urbano; V - gestão democrática e controle social do planejamento e avaliação da Política Nacional de Mobilidade Urbana; VI - segurança nos deslocamentos das pessoas; VII - justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do uso dos diferentes modos e serviços; VIII - equidade no uso do espaço público de circulação, vias e logradouros; IX - eficiência, eficácia e efetividade na circulação urbana. Conforme já apontado, contudo, verifica-se a carência de planos de mobilidade urbana em execução, dificultando a efetivação do direito à acessibilidade na mobilidade por parte das pessoas com deficiência. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA I - acessibilidade universal; 255 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Não é possível sequer estabelecer-se um retrato fiel, hoje, do estado da mobilidade acessível. Quais exemplos de acessibilidade na integração de diferentes modais de mobilidade existem hoje? Quais localidades observam as regras de acessibilidade (bem como seu efetivo cumprimento) nos processos de licitação para concessão e outorga de linhas de ônibus? Qual o percentual de veículos acessíveis disponíveis em frotas de táxi nos municípios? Na ausência dessas informações nos poucos planos de mobilidade urbana existentes, compete aos Ministérios Públicos Estaduais e ao Ministério Público Federal, em diálogo horizontal com os movimentos sociais, exercerem seu munus em face da Administração Pública para a efetivação dos eixos de mobilidade acessível previstos na LBPD, seja por meio da fiscalização da própria elaboração dos Planos de Mobilidade Urbana, seja mediante o controle judicial da efetivação das medidas necessárias a permitir a mobilidade acessível. Esse trabalho integrado, com o necessário protagonismo da sociedade civil e perpassando a fiscalização da elaboração dos planos de mobilidade urbana, bem como sua efetivação quanto aos eixos de mobilidade acessível, é o que pode permitir a concretude de direitos para além de metáforas, é o que pode permitir que o direito à mobilidade acessível seja levado para além da atual violação. Referências FERRAZ, Carolina Valença; LEITE, Glauber Salomão. A proteção jurídica das pessoas com deficiência como uma . (Coords.). Direito questão de direitos humanos. In: à diversidade. São Paulo: Atlas, 2015. GONZAGA, Eugênia Augusta. A pessoa com deficiência e o direito à acessibilidade. In: FERRAZ, Carolina Valença; LEITE, 256 Glauber Salomão (Coords.). Direito à diversidade. São Paulo: Atlas, 2015. p. 114-126. HABERMAS, Jürgen. Inclusão: integrar ou incorporar? Sobre a relação entre nação, estado de direito e democracia. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 52, nov. 1998. . A inclusão do outro – estudos de teoria política. Tradução de George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2004. LEMINSKI, Paulo. La vie en close. São Paulo: Brasiliense, 1991. REYES, Maria Soledad Cisternas. Desafios y avances en los derechos de las personas con discapacidad: una perspectiva global. Anuario de Derechos Humanos, n. 11, 2015. ISSN 0718-2058. ROSENFELD, Michel. Hacia una reconstrucción de la igualdad constitucional. In: CARBONELL, Miguel (Org.). El princípio constitucional de igualdad: lecturas de introducción. México D.F.: Comisión Nacional de los Derechos Humanos, 2003. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA . Toda Poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. 257 Livro em formato acessível: direito fundamental da pessoa com deficiência Marcia Morgado Miranda Weinschenker1 À medida que se adquire o conhecimento, surge a possibilidade de trilhar o caminho do crescimento pessoal, profissional e cidadão. É um direito básico de qualquer pessoa poder escolher o tipo de leitura que se quer e também acessar toda essa fonte de riqueza intelectual na hora em que se deseja, comprando um livro numa livraria da esquina ou pela Internet, ou, ainda, pegando emprestado numa biblioteca. Também não há dúvida de que é um direito essencial de todos o acesso ao livro didático para a completa absorção do conteúdo ministrado em sala de aula, desde a educação infantil até o ensino superior. No entanto, atos tão corriqueiros para muitos tornam-se um verdadeiro martírio para a parcela da sociedade que tem deficiência visual 2, já que os livros, em sua grande maioria, não são ofertados pelas editoras no Brasil em formato acessível, gerando grave lesão a princípios e direitos fundamentais previstos constitucionalmente, 1 Procuradora Regional da República. Membro do Grupo de Trabalho Inclusão para Pessoas com Deficiência da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão/Ministério Público Federal. 2 No Brasil, existem mais de 6,5 milhões de pessoas com deficiência visual, sendo 582 mil cegas e 6 milhões com baixa visão, segundo dados do Censo 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Diz o velho ditado: “quem lê sabe mais”. E, de fato, assim é. A leitura leva ao conhecimento e abre portas para um mundo sem limites. A busca pela informação, pelo autoconhecimento e pelo saber é inerente ao ser humano, devido ao simples fato de que o saber é necessário, prazeroso e traz dignidade. 259 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA tais como o princípio da dignidade da pessoa (art. 1º, inciso III), o direito de igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (art. 5º, caput), o direito à educação (art. 205 e seguintes) e o direito à cultura (art. 215 e seguintes). Esses são princípios e direitos fundamentais ditos e repetidos a todo momento, mas, infelizmente, nem sempre cumpridos por aqueles que têm o dever de fazê-lo, embora de eficácia plena e irradiante a todo o ordenamento jurídico. Sobre a eficácia irradiante dos direitos fundamentais, merece ser transcrito o seguinte ensinamento de Daniel Sarmento (2006, p. 124): Uma das mais importantes consequências da dimensão objetiva dos direitos fundamentais é o reconhecimento da sua eficácia irradiante. Esta significa que os valores que dão lastro aos direitos fundamentais penetram por todo o ordenamento jurídico, condicionando a interpretação das normas legais e atuando como impulsos e diretrizes para o legislador, a administração e o Judiciário. A eficácia irradiante, neste sentido, enseja a “humanização” da ordem jurídica, ao exigir que todas as suas normas sejam, no momento de aplicação, reexaminadas pelo operador do direito com novas lentes, que terão as cores da dignidade humana, da igualdade substantiva e da justiça social, impressas no tecido constitucional. A concretização plena de tão relevantes princípios e direitos somente é possível com a efetiva disponibilização dos meios de acesso aos direitos básicos pelo Poder Público e por todos aqueles que exercem atividade de relevância social, ainda que de iniciativa privada, sem que seja necessária a intervenção do Poder Judiciário, que acaba sendo demandado por aqueles que se sentem diuturnamente lesados pela impossibilidade do exercício de seus direitos. Nesse contexto, é inevitável refletir e chamar a atenção sobre tema pouco debatido, que consiste na importância do livro em formato acessível para as pessoas com deficiência visual, já que é 260 o meio que lhes torna possível o acesso a direitos em igualdade de condições, em especial ao direito à educação e ao direito à cultura. O movimento que temos visto, em todo o mundo, pela INCLUSÃO de quem possui deficiência é um passo muito importante rumo a seu direito à IGUALDADE e à eliminação da discriminação. Para a completa igualdade, como já ensinava Aristóteles, “é preciso tratar desigualmente aos desiguais”. A inclusão prega exatamente isso, pois em certas situações há a necessidade de tratamento diferenciado. Assim, a inclusão preconiza que cabe à sociedade e aos ambientes em geral promoverem as adequações necessárias para possibilitar o pleno acesso de quem tem limitações físicas, sensoriais ou mentais. [Destaques do original]. A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, assinada em Nova York, em 30 de março de 2007 e, conforme rito previsto no art. 5º, § 3º, da Constituição Federal, ratificada pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo n. 186, de 9 de julho de 2008, e promulgada pelo Decreto n. 6.949, de 25 de agosto de 2009, incorporada como Emenda à Constituição Federal, dispõe, em seu art. 1º, que O propósito da presente Convenção é promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente. Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua par- MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Não se pode deixar de mencionar que, para o exercício de direitos “em igualdade de condições”, faz-se imprescindível a referência à igualdade material, ou seja, à igualdade efetiva, que demanda tratamento diferenciado em determinadas situações para o alcance da igualdade e da inclusão em seu sentido pleno, conforme ensinamento de Eugênia Augusta Gonzaga (2012, p. 34): 261 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA ticipação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas. Fica claro, portanto, a partir da Convenção, o enfoque à necessidade de eliminação de barreiras que impedem o pleno exercício de direitos pela pessoa com deficiência, a fim de abolir todo e qualquer tipo de discriminação. A Convenção garante, em seu artigo 30, o direito à educação e a bens culturais em formatos acessíveis, bem como estabelece que os Estados-Partes deverão tomar todas as providências, em conformidade com o direito internacional, para assegurar que a legislação de proteção dos direitos de propriedade intelectual não constitua barreira excessiva ou discriminatória ao acesso de pessoas com deficiência a bens culturais. Não faltam leis no país que garantam, há anos, o direito de acesso da pessoa com deficiência visual ao livro3, a começar pela Lei n. 9.610/1998, relativa a direitos autorais, que, em seu art. 46, inciso I, letra d, prevê a possibilidade de reprodução “de obras literárias, artísticas ou científicas, para uso exclusivo de deficientes visuais, sempre que a reprodução, sem fins comerciais, seja feita mediante o sistema Braille ou outro procedimento em qualquer suporte para esses destinatários”. Da mesma forma, a Lei n. 10.753/2003, que instituiu a Política Nacional do Livro – por cuja regulamentação se lutou por anos, embora essa nunca tenha ocorrido –, assegura “às pessoas com deficiência visual o acesso à leitura” (art. 1º, inciso XII), e o Decreto n. 5.296/2004, que regulamenta as Leis n. 10.048/2000 e n. 10.098/2000, prevê que o “Poder Público adotará mecanismos de incentivo para tornar disponíveis em meio magnético, em formato de texto, as obras publicadas no País” (art. 58). 3 Nota Técnica 50015/2015/MEC/SECADI/DPEE. 262 No Brasil, foi criado o Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL), por meio do Decreto n. 7.559/2011, coordenado pelo Ministério da Educação (MEC) e pelo Ministério da Cultura (MinC), tendo como um de seus objetivos a inclusão da pessoa com deficiência (art. 1º, § 2º). A acessibilidade consta dos eixos estratégicos do PNLL, conforme previsto no art. 10: Eixo estratégico I – democratização do acesso: […] d) linha de ação 4 - distribuição de livros gratuitos que contemplem as especificidades dos neoleitores jovens e adultos, em diversos formatos acessíveis. f) linha de ação 6 - disponibilização e uso de tecnologias de informação e comunicação, contemplando os requisitos de acessibilidade; [...] Eixo estratégico IV – fomento à cadeia criativa e à cadeia produtiva do livro: d) linha de ação 18 - fomento às ações de produção, distribuição e circulação de livros e outros materiais de leitura, contemplando as especificidades dos neoleitores jovens e adultos e os diversos formatos acessíveis. No âmbito dos sistemas de ensino, mais especificamente quanto aos programas de material didático, dispõe o art. 28 do Decreto n. 7.084/2010: Art. 28. O Ministério da Educação adotará mecanismos para promoção da acessibilidade nos programas de material didático destinados aos alunos da educação especial e seus professores das escolas de educação básica públicas. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA […] 263 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Parágrafo único. Os editais dos programas de material didático poderão prever obrigações para os participantes relativas a apresentação de formatos acessíveis para atendimento do público da educação especial. Na mesma linha, o Plano Nacional de Educação (PNE), previsto na Lei n. 13.005/2014, determina que os entes federados estabelecerão, nos respectivos planos de educação, estratégias que “garantam o atendimento das necessidades específicas na educação especial, assegurado o sistema educacional inclusivo em todos os níveis, etapas e modalidades” (art. 8º, § 1º, inciso III). Apesar de toda a legislação existente no País, pouco se avançou concretamente por parte do Poder Público no dever de incentivo à produção, distribuição e comercialização de livros em formato acessível e, menos ainda, por parte das editoras quanto à oferta de livros em tal formato, tornando necessária a provocação do Poder Judiciário por pessoas com deficiência visual para o cumprimento da lei. A justificativa historicamente utilizada pelas editoras para o não cumprimento da legislação perante o Poder Público e, na maioria das vezes, acatada por este, diz respeito – no caso do oferecimento do livro acessível por meio de arquivo eletrônico – à proteção dos direitos autorais, os quais acabaram por se constituir em uma barreira excessiva e discriminatória à pessoa com deficiência, ao contrário do que determina a Convenção. O argumento das editoras, em síntese, se refere à suposta facilidade de os arquivos eletrônicos de livros digitais serem alvo de “pirataria”, uma vez disponibilizados ao consumidor com deficiência visual, o que traria graves e irreversíveis prejuízos aos direitos do autor. No caso de livros acessíveis em braile, alegam-se os elevados custos para a oferta nesse formato. Todavia, não são comprovados pelo mercado editorial os alegados “elevados” custos para a edição de livros digitais em formatos acessíveis. 264 Nos dias atuais, com o avanço da tecnologia, a possibilidade de publicação do livro nos novos formatos digitais em formato acessível permite a superação de todas essas alegações históricas. Também não se vislumbram maiores riscos de cópia ilegal do livro digital em relação aos riscos existentes para a publicação impressa, sendo certo que já existem mecanismos tecnológicos aptos – e até mais seguros – a evitar tal prática no meio digital. Em relação ao sistema braile, observa-se que é um sistema de leitura mais eficaz para a pessoa que nasce cega e é nele alfabetizada, conforme explica Naziberto Lopes de Oliveira, Coordenador do Movimento pelo Livro e Leitura Acessíveis no Brasil (Molla): Na verdade a alfabetização no código braile é eficaz quando a pessoa nasce cega e é educada desde cedo nesse sistema de escrita e leitura desenvolvido pelo francês Louis Braille no início do Século XIX, especificamente para a comunicação entre pessoas cegas. Entretanto a cegueira, na maioria dos casos, é a conseqüência de alguma patologia ou trauma que acomete as pessoas em vida adulta, e em número muito menor de casos se apresenta como decorrência de uma patologia ou complicação no nascimento. (OLIVEIRA, 2008). Pode-se afirmar, portanto, que o livro digital em formato acessível atende a todas as pessoas com deficiência visual, de todas as idades, independentemente da causa da deficiência. Todavia, mesmo com o avanço da tecnologia e da legislação, o discurso das editoras no País permaneceu inalterado – não só pela MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA De fato, não se vislumbra qual seria o grande ônus com que deveria arcar o editor para disponibilizar uma obra em formato digital acessível, visto que o livro atualmente já tem por origem, necessariamente, um arquivo digital, existindo, inclusive, tecnologia de código aberto, ou seja, sem custo, para a produção e adequação do livro digital para um formato acessível, visando atender a todo tipo de pessoa com deficiência visual. 265 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA alegação da proteção aos direitos autorais mas, provavelmente, também pelo não crescimento esperado da demanda por livro digital, o que o torna desinteressante do ponto de vista econômico. O que se constata com isso é que a pessoa com deficiência visual não é respeitada como um consumidor e cidadão, que possui os mesmos deveres e direitos que qualquer outra pessoa, em violação também ao Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/1990). Trata-se, portanto, repita-se, de direito da pessoa com deficiência visual também como consumidor, que pagará pela aquisição do livro como qualquer outra pessoa. Não se trata de política assistencialista. A alegada proteção aos direitos autorais em detrimento dos direitos fundamentais da pessoa com deficiência já não encontrava respaldo do Judiciário, com base na Constituição Federal, no Código de Defesa do Consumidor e na Lei n. 10.753/2003, citando-se, como exemplo, a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo4, cujo trecho vale ser transcrito: Ademais disso, a Lei 10.753/03, ao implantar a Política Nacional do Livro, teve em vista assegurar ao cidadão o pleno exercício do direito de acesso e uso do livro e assegurar às pessoas com deficiência visual o acesso à leitura. E esse acesso não é feito somente pelo método braile, sendo perfeitamente lícito e viável a forma digital do livro sem que isso implique em violação ao direito autoral e dá-se pressa em dizer que esta decisão não pode e nem deve entrar no mérito do direito autoral, cuja discussão fica reservada para casos concretos que possam porventura surgir5. 4 Vide Apelação 0141210-84.2010.8.26.0100, TJSP. 5 Cita-se, ainda, a decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (autos n. 20110119933-3), nos autos do processo que condenou a editora a fornecer o livro em formato digital acessível, por entender não ter havido o cumprimento fiel do contrato pela editora (): “A Editora Saraiva Ltda foi condenada a fornecer na forma digital livro adquirido por um deficiente visual que não conseguiu ter acesso ao conteúdo da obra. A sentença do juiz do 3º Juizado Especial Cível de Taguatinga é de novembro de 2011, mas a ré não atendeu a ordem judicial. Em contrapartida, 266 Dada a problemática instalada em função da proteção aos direitos autorais como suposto impeditivo à oferta de livro em formato acessível, veio apontado como grande avanço, pelo Poder Público e pelo mercado editorial, o Tratado de Marraqueche, promulgado pelo Decreto Legislativo n. 261, de 25 de novembro de 2015, nos seguintes termos: No entanto, em que pese a sua importância, não o entendemos como significativo avanço, já que se refere à reprodução (e não produção) de obras e condiciona o acesso a estas, em regra, à intermediação de uma entidade autorizada, fazendo cair por terra a autonomia necessária que se deve garantir à pessoa com deficiência na prática de seus atos. o magistrado arbitrou multa de R$ 1 mil que deverá ser paga ao autor da ação por força de mandado de penhora já expedido contra a editora. Consta dos autos que o consumidor adquiriu o livro em formato digital, via internet, no site da editora. No entanto, ao tentar ler o livro, descobriu que ele era incompatível para interação com leitores de tela (softwares de síntese de voz que permitem o uso de computadores por pessoas com deficiência visual). Procurada pelo cliente, a editora se recusou a fornecer o livro em versão PDF, a devolver a quantia paga ou a dar qualquer satisfação ao consumidor. Apenas informou que não poderia atendê-lo. O autor ajuizou ação de obrigação de fazer c/c pedido de danos morais, na qual pleiteou a troca do produto em formato compatível às suas limitações visuais, bem como condenação da editora por danos morais. Em contestação, a editora não negou os fatos narrados, mas pediu a realização de perícia para comprovação do alegado pelo autor. Em preliminar, arguiu incompetência do juizado para julgar o caso por complexidade na produção das provas. O magistrado rejeitou a preliminar e ante a não contestação dos fatos, considerou dispensável a realização da perícia. Segundo ele, as partes firmaram um negócio jurídico tendo como um dos atrativos a data de entrega do produto. Ocorre que a ré não demonstrou de forma cabal e cristalina que o contrato foi fielmente cumprido. Na sentença, o juiz julgou parcialmente procedente o pedido do autor, determinando a disponibilização da obra em formato digital, no prazo de 15 dias. Negou, porém o pedido de danos morais. N. do processo: 20110119933-3. Fonte: Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios”. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Art. 1º Fica aprovado, nos termos do § 3º do art. 5º da Constituição Federal, o texto do Tratado de Marraqueche para Facilitar o Acesso a Obras Publicadas às Pessoas Cegas, com Deficiência Visual ou com outras Dificuldades para Ter Acesso ao Texto Impresso, celebrado em Marraqueche, em 28 de junho de 2013. 267 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Tanto é assim que, antes mesmo da promulgação do tratado pelo referido decreto, foi editada a Lei Brasileira de Inclusão, que deu um passo adiante ao impedir a recusa de oferta de livro em formato acessível sob qualquer argumento, inclusive sob a alegação de proteção aos direitos de propriedade intelectual, em total consonância com a Convenção da ONU, garantindo a autonomia plena da pessoa com deficiência. A Lei Brasileira de Inclusão – Lei n. 13.146, de 6 de julho de 2015 –, também denominada Estatuto da Pessoa com Deficiência, entrou em vigor em janeiro de 2016 e veio a consolidar expressamente o direito ao livro em formato acessível, dando um basta à política assistencialista, conforme disposto no art. 426 , com destaque para o § 1º, que veda “a recusa de oferta de obra intelectual em formato acessível à pessoa com deficiência, sob qualquer argumento, inclusive sob a alegação de proteção dos direitos de propriedade intelectual”. O Estatuto também trouxe um mecanismo importante ao Poder Público, que tem o dever de incentivar a produção, edição, difusão, distribuição e comercialização de livro em formato acessível (art. 687), dispondo no § 1º que: 6 “Art. 42. A pessoa com deficiência tem direito à cultura, ao esporte, ao turismo e ao lazer em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, sendo-lhe garantido o acesso: I - a bens culturais em formato acessível; II - a programas de televisão, cinema, teatro e outras atividades culturais e desportivas em formato acessível; e III - a monumentos e locais de importância cultural e a espaços que ofereçam serviços ou eventos culturais e esportivos. § 1º É vedada a recusa de oferta de obra intelectual em formato acessível à pessoa com deficiência, sob qualquer argumento, inclusive sob a alegação de proteção dos direitos de propriedade intelectual. § 2º O poder público deve adotar soluções destinadas à eliminação, à redução ou à superação de barreiras para a promoção do acesso a todo patrimônio cultural, observadas as normas de acessibilidade, ambientais e de proteção do patrimônio histórico e artístico nacional.” [Grifo nosso]. 7 “Art. 68. O poder público deve adotar mecanismos de incentivo à produção, à edição, à difusão, à distribuição e à comercialização de livros em formatos acessíveis, inclusive em 268 § 1º Nos editais de compras de livros, inclusive para o abastecimento ou a atualização de acervos de bibliotecas em todos os níveis e modalidades de educação e de bibliotecas públicas, o poder público deverá adotar cláusulas de impedimento à participação de editoras que não ofertem sua produção também em formatos acessíveis. No parágrafo 2º do mesmo dispositivo (art. 68), a Lei n. 13.146/2015 traz a definição de formatos acessíveis: Não há dúvida de que, a partir do efetivo cumprimento pelo Poder Público da determinação legal mencionada, ou seja, da implementação da cláusula de impedimento nos editais à participação das editoras que não ofertem sua produção também em formatos acessíveis, certamente a consequência natural será o cumprimento da obrigação pelo mercado editorial. Atualmente, o formato acessível que se considera mais adequado é o denominado ePub3, abreviatura de Eletronic Publication, que é uma tecnologia de código aberto (ou open source, o que significa que não é preciso pagar pela tecnologia necessária para se produzir publicações da administração pública ou financiadas com recursos públicos, com vistas a garantir à pessoa com deficiência o direito de acesso à leitura, à informação e à comunicação. § 1º Nos editais de compras de livros, inclusive para o abastecimento ou a atualização de acervos de bibliotecas em todos os níveis e modalidades de educação e de bibliotecas públicas, o poder público deverá adotar cláusulas de impedimento à participação de editoras que não ofertem sua produção também em formatos acessíveis. § 2º Consideram-se formatos acessíveis os arquivos digitais que possam ser reconhecidos e acessados por softwares leitores de telas ou outras tecnologias assistivas que vierem a substituí-los, permitindo leitura com voz sintetizada, ampliação de caracteres, diferentes contrastes e impressão em Braille. § 3º O poder público deve estimular e apoiar a adaptação e a produção de artigos científicos em formato acessível, inclusive em Libras.” [Grifo nosso]. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA § 2º Consideram-se formatos acessíveis os arquivos digitais que possam ser reconhecidos e acessados por softwares leitores de telas ou outras tecnologias assistivas que vierem a substituí-los, permitindo leitura com voz sintetizada, ampliação de caracteres, diferentes contrastes e impressão em Braille. 269 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA um ePub, pois seus meios de produção são de uso gratuito e livre). Esse formato tem recursos que extrapolam, e muito, a experiência da leitura, pois, além de fornecer o conteúdo textual, permite o acesso a um rico conteúdo multimídia, e a toda a facilitação de pesquisa por meio de metadados. Na sua especificação mais recente, o ePub 3, também é possível inserir hiperlinks, áudios, vídeos, formulários e audiodescrição com muito mais facilidade. O formato ePub foi desenvolvido para ser extremamente flexível e acessível, e visa também suprir as necessidades de pessoas com deficiências visuais e auditivas. Ao contrário do PDF, a própria fonte do conteúdo de um ePub pode aumentar ou diminuir à vontade, permitindo que pessoas com dificuldades de visão tenham uma leitura melhor. E, caso o editor use o recurso da audiodescrição, é possível acompanhar o texto por meio do áudio, ou descartar a leitura e acessar o conteúdo apenas pelo áudio, fornecendo além de um livro digital, um audiobook (PLUVINAGE, 2015). O Edital de Convocação n. 04/2015 do Ministério da Educação para o processo de inscrição e avaliação de obras didáticas para o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) 2018, no item 7, relativo à acessibilidade, com a alteração realizada em março de 2016, passou a permitir apenas o formato ePub3 e a participação somente dos editores que ofertarem as obras participantes do PNLD também em formato acessível. 270 O Edital de Convocação n. 01/2017 para o PNLD 2019, no item 4, da mesma forma, permite somente o formato ePub3 para o livro digital acessível e dispõe que apenas poderão participar do certame os editores que também ofertarem as suas obras em formato acessível, nos termos da Lei Brasileira de Inclusão e conforme especificado no edital. Este último requisito, a nosso ver, não atende integralmente o disposto na lei, que tem por objetivo garantir a participação nas licitações das editoras que cumpram o Estatuto da Pessoa com Deficiência, ou seja, que ofertem a sua produção – como um todo no mercado – também em formato acessível – e não apenas as obras objeto do edital. Isto porque, neste contexto descrito, deixa-se de provocar o incentivo necessário para o cumprimento da lei, que consiste na disponibilização pelas editoras de seu acervo como um todo no mercado em formato acessível, sendo esta a condição que, na verdade, deveria ser exigida pelo Poder Público para a habilitação das editoras. Na forma restritiva em que o edital se apresenta, basta a terceirização da produção em formato acessível para as obras aprovadas para compra, em pontual atendimento aos termos da licitação, sem observância de serem os concorrentes cumpridores de suas obrigações legais quanto às normas de acessibilidade na sua prática comercial, mantendo-se inalterada a realidade já existente. Com a Lei Brasileira de Inclusão, o direito da pessoa com deficiência visual de adquirir livros em formatos acessíveis, que já era indubitável, restou escancarado, não havendo que se falar em necessidade de regulamentação, ante a expressa previsão legal de que a recusa não pode se dar sob qualquer argumento, inclusive sob a alegação de proteção dos direitos de propriedade intelectual. Mais claro, impossível. A edição da Lei Brasileira de Inclusão trouxe a certeza de que não há mais o que tolerar ou esperar para o cumprimento da oferta de livros em formatos acessíveis pelas editoras e para o cumprimento, pelo Poder Público, do dever que lhe é imposto quanto à exigência da oferta desses formatos. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA A restrição pelo Poder Público da aplicação do § 1º do art. 68 apenas às obras objeto de compra no formato acessível não observa o sentido da exigência legal de que somente as editoras que ofertem a sua produção em formato acessível possam participar dos certames. Essa questão resta ainda mais evidente ao ser contextualizada com o item 4.6 do edital, no qual os editores ficam autorizados a realizar a produção e a distribuição de suas obras aprovadas, em formato acessível, diretamente ou mediante a contratação de instituição parceira. 271 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA No entanto, o que se observa é que o tema está longe de ser considerado prioridade, dada a total invisibilidade, na prática, da concretização do direito ao livro em formato acessível no dia a dia da pessoa com deficiência visual, por aqueles que têm o dever legal de lhe dar cumprimento. Há, portanto, sério risco de que tal direito continue a ser ignorado ou demande uma via crucis no Judiciário para ser garantido. Além da pouca conscientização no País de que se trata de um direito que deve ser cumprido – sem qualquer opção de não cumprimento –, há a demora na adequação tecnológica para a produção do livro, ressaltando-se, ainda que, muitas vezes, as plataformas oferecidas para os livros digitais também não permitem a leitura do arquivo em formato acessível. Sobre este aspecto, importante transcrever, como contraponto, o seguinte texto extraído da Internet que demonstra a tecnologia já disponibilizada por algumas empresas no mercado mundial e as tendências que vêm sendo constatadas: A vantagem de vender um eBook por uma distribuidora é que você pode potencialmente ampliar o acesso da sua publicação em plataformas muito populares. Há também a vantagem de que alguns sistemas são bem fechados no quesito segurança. Um livro comprado na Apple, por exemplo, fica preso a uma conta Apple ID e não pode ser distribuído via e-mail para amigos do leitor por exemplo. Ou então é possível usar recursos como DRM, Digital Rights Management, oferecidos por algumas destas plataformas, como a Kobo. Com um DRM é possível limitar a quantidade de dispositivos que podem acessar uma publicação comprada, em geral cinco dispositivos no máximo. [...] Outro detalhe importante: além das plataformas de vendas avulsas de livros, há uma nova tendência no mercado, a assinatura para acesso a uma nuvem de livros, ou uma espécie de Netflix 272 dos livros, na qual você paga mensalmente para ter acesso a uma grande biblioteca. Exemplos atuais são o Kindle Unlimited, Oyster e uBook (para audiolivros). (PLUVINAGE, 2015). Em setembro de 2015, foi realizado pelo GT Inclusão na Bienal do Livro no Rio de Janeiro, no Riocentro, o debate “Livro com acessibilidade: direito à leitura e pessoa com deficiência”, o qual foi o marco inicial para interlocução entre os diversos atores que têm papéis relevantes na efetiva implementação da previsão legal, tanto pelo setor público como pelo setor privado. Como desdobramento da atuação extrajudicial, foi instaurado inquérito civil pelo procurador regional dos direitos do cidadão no Rio Grande do Sul, que resultou na assinatura, no mês de julho de 2017, de Termo de Ajustamento de Conduta (TAC)9 entre o Ministério Público Federal, o Sindicato Nacional dos Editores de Livros e as editoras aderentes, o qual se destaca como verdadeiro marco de atuação do Ministério Público no tema. Em síntese, o TAC – que tem validade de cinco anos, já que se espera nesse período a adequação plena do mercado editorial à lei – prevê o desenvolvimento de plataforma on-line acessível para o direcionamento de requisições de pessoas com deficiência aos edi8 GT Inclusão Para Pessoas com Deficiência da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) – . 9 Disponível em: . MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Ainda há muito a avançar para a efetivação do direito ao livro em formato acessível no Brasil. O Ministério Público Federal tem se utilizado da ferramenta de atuação extrajudicial, por meio do Grupo de Trabalho (GT) Inclusão para Pessoas com Deficiência, da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC)8 , que se revela fundamental na busca da efetividade da política pública, a partir do consenso e da colaboração entre os principais setores envolvidos na temática. 273 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA tores das obras, bem como o estabelecimento de prazos máximos, pelas editoras aderentes, para atendimento às solicitações de livros em formato acessível. Tais medidas, como mencionado, visam auxiliar e fiscalizar a adequação do mercado editorial a médio prazo à legislação, dando-se efetividade a direito fundamental. Não há dúvida de que, mais uma vez, a conquista no plano concreto dos avanços legislativos será resultado da persistência na exigência do cumprimento da lei e do Termo de Ajustamento de Conduta pelo Ministério Público, o que, infelizmente, costuma ser necessário em matéria de direitos das pessoas com deficiência. Todavia, é importante registrar que, independentemente da atuação extrajudicial ou judicial por parte do Ministério Público para tornar efetivos os inegáveis avanços da Lei Brasileira de Inclusão, o direito ao livro em formato acessível é de aplicabilidade imediata e, como tal, pode e deve ser exigido pela pessoa com deficiência visual. Portanto, em conclusão a tudo o que foi apresentado, resta claro que a efetividade de direitos fundamentais é a meta a ser alcançada. Nos termos de Joaquín Herrera Flores: Como se vê, para nós, o conteúdo básico dos direitos humanos não é o direito a ter direitos (círculo fechado que não cumpriu com seus objetivos desde que se “declarou” há quase seis décadas). Para nós, o conteúdo básico dos direitos humanos será o conjunto de lutas pela dignidade, cujos resultados, se é que temos o poder necessário para isso, deverão ser garantidos por normas jurídicas, por políticas públicas e por uma economia aberta às exigências da dignidade. (2009, p. 39). 274 Referências GONZAGA, Eugênia Augusta. Direito das pessoas com deficiência – garantia de igualdade na diversidade. 3. ed. Rio de Janeiro: WVA, 2012. HERRERA FLORES, Joaquín. A reinvenção dos direitos humanos. Tradução de Carlos Roberto Diogo Garcia, Antônio Henrique Graciano Suxberger e Jefferson Aparecido Dias. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009. PLUVINAGE, Jean-Fréderic. Glossário dos formatos de publicação digital. FoxTablet, Salto, 6 jul. 2015. Disponível em: . SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA OLIVEIRA, Naziberto Lopes. Saiba por que a maioria dos cegos não usa braile. São Paulo, 2008. Disponível em: . 275 O mundo do trabalho e as pessoas com deficiência Maria Aparecida Gugel1 Tenha-se em conta que as pessoas com deficiência continuam a enfrentar barreiras arquitetônicas e de atendimento em todas as áreas, principalmente de atitudes preconceituosas, o que as impede de participar plenamente como membros iguais da sociedade. As violações contra seus direitos já conquistados persistem e as colocam, quase sempre, frente à discriminação com variadas causas (raça, cor, religião e outras), agravada quando se trata de mulher e criança com deficiência. Não se iluda, no mundo do trabalho, não fosse a lei de ordem pública (Lei n. 8.213/1991) obrigando ao cumprimento de reserva de postos de trabalho para trabalhadores com deficiência em empresas com cem ou mais empregados, não haveria lugar nem vez para trabalhadores com deficiência, seja por preconceito explícito em relação às suas capacidades laborativas, seja em relação aos argumentos de eventuais custos a serem arcados pelo empregador para tornar o ambiente de trabalho acessível. 1 Subprocuradora-Geral do Trabalho. Membro Auxiliar no Núcleo Especial em Acessibilidade do Conselho Nacional do Ministério Público. Doutora pela Università degli Studi di Roma “Tor Vergata”, Facoltà di Giurisprudenza, Autonomia Individuale e Collettiva. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Introdução às normas e para o mundo das pessoas com deficiência 277 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Não obstante essa introdução negativa, as luzes trazidas pelas novas concepções da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) e da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, também conhecido como Estatuto da Pessoa com Deficiência, ou LBI, Lei n. 13.146, de 6 de julho de 2015, impulsionam a sociedade brasileira a reconhecer a importância da convivência com a diversidade da deficiência, como parte integrante de uma sociedade mais justa, solidária e sustentável, na qual as pessoas com deficiência possam viver dignamente com autonomia e independência. O novo paradigma a exigir a atenção da sociedade diz respeito ao conceito de pessoa com deficiência, segundo o qual os impedimentos de longo prazo de diferentes naturezas de deficiência (física, sensorial, intelectual e mental) estão intrinsecamente ligados ao meio onde essa pessoa vive e atua. As barreiras existentes nesse ambiente são o vetor principal do conceito, pois elas podem obstruir a plena participação da pessoa que tem uma deficiência em igualdade de condições com as demais pessoas. Para tanto, a importância da análise da funcionalidade da pessoa em relação ao ambiente comandada pela LBI, na qual a avaliação da deficiência deverá ocorrer quando for necessária, tendo por base a visão biopsicossocial da pessoa, realizada por uma equipe de profissionais das diferentes áreas da deficiência, levando em conta os impedimentos, os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais, as limitações e as restrições de participação (art. 2º da LBI). Conforme já afirmado, a interação da pessoa com deficiência com o ambiente pode ser deduzida na fórmula de Marcelo Medeiros, apresentada em 2005: DEFICIÊNCIA = LIMITAÇÃO FUNCIONAL X AMBIENTE. Se for atribuído valor zero ao ambiente porque é acessível e não oferece nenhuma barreira, o resultado da equação será sempre zero, independentemente do valor atribuído à funcionalidade da pessoa. Contudo, se o ambiente tiver valores progressivamente maiores elevará o resultado, e evidenciará a deficiência da pessoa (GUGEL, 2016). 278 Em capítulo reservado ao direito ao trabalho, nos arts. 34 a 38, contempla regras específicas para as relações de trabalho desde a formação profissional e o recrutamento até as condições de contratação do trabalhador com deficiência para um emprego competitivo, incluído o emprego apoiado. Importantes novas medidas foram criadas: o contrato de trabalho por tempo determinado para a habilitação da pessoa com deficiência no trabalho; as diretrizes para o emprego apoiado; o auxílio-inclusão para a pessoa com deficiência que ingressa no mercado de trabalho; e a afirmação de pleno acesso do aprendiz com deficiência à aprendizagem, afirmando expressamente que a cota do aprendiz não conta para a reserva de postos de trabalho. A LBI está pautada no princípio internacional de não retrocesso de direitos conquistados. Ao mesmo tempo, alterou determinadas normas existentes para adaptá-las ao novo momento, seguindo a determinação da CDPD no Artigo 4, item 1, letra b. São alterações pontuais de significativa importância, inclusive no campo da assistência social e da previdência social e sua relação com as regras do direito ao trabalho. Há também as alterações relativas à previsão de crime para quem obstar o acesso a cargo público e privado, à obrigação de manutenção da reserva de empresas terceirizadas junto ao poder público, e às práticas discriminatórias de lei específica. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA A LBI entrou em vigor em 7 de janeiro de 2016 e trouxe avanços importantes também na área do direito do trabalho para o trabalhador com deficiência. Tem como regra geral e base para todo o direito nela constituído a acessibilidade e a adaptação razoável. A acessibilidade, para além de ser um elemento eficaz para que as pessoas com deficiência alcancem a autonomia e a independência, é direito fundamental decorrente de um dos princípios fundantes da CDPD (art. 3), cuja natureza de norma constitucional é indiscutível em decorrência de sua incorporação ao ordenamento jurídico conforme o rito especial do art. 5º, parágrafo 3º, da Constituição da República. 279 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA 1 Trabalho de livre escolha. Ambiente de trabalho acessível. Adaptação razoável. Igualdade de oportunidades. Reconhecimento igual perante a lei2. A afirmação do art. 34 da LBI de que a pessoa com deficiência tem direito ao trabalho de sua livre escolha e aceitação, em ambiente acessível e inclusivo, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, normatiza ordinariamente alguns dos conteúdos principiológicos da CDPD, ou seja, a dignidade, a não discriminação, a acessibilidade e a igualdade de oportunidades. A liberdade para escolher um trabalho, em contraponto a velhos costumes de estigmatizar, relacionando determinados ofícios e profissões para determinadas naturezas de deficiência, diz respeito à dignidade inerente da pessoa e a sua autonomia individual. O resultado esperado dessa liberdade de escolha de um trabalho e/ou uma profissão é uma contraprestação salarial justa que leve a pessoa com deficiência a conquistar sua independência financeira e pessoal. Desse pressuposto resulta outro critério, que é a proibição de restrição ao trabalho da pessoa com deficiência (parágrafo 3º do art. 34) em todas as etapas da relação de trabalho, ou seja, recrutamento, seleção, contratação, admissão, exames admissional e periódico, permanência no emprego, ascensão profissional e reabilitação profissional e, também, dos cursos de formação profissional e de capacitação. Está excluída expressamente, em harmonia com a vedação à restrição ao trabalho, a exigência de aptidão plena para o exercício de qualquer trabalho, ofício ou função, cuja acepção está intrinsecamente ligada às condições de acessibilidade do ambiente de trabalho e não do atributo da natureza da deficiência. O trabalho deve ser desenvolvido em um ambiente acessível e inclusivo. Esse ambiente acessível referido na LBI, lembre-se, é o propósito máximo da CDPD, isso porque é ele, em suas concepções 2 Esse artigo ampliado é o capítulo do livro Comentários ao Estatuto da Pessoa com Deficiência. LEITE, Flávia Piva Almeida; RIBEIRO, Lauro; MACIEIRA, Waldir (Orgs.). São Paulo: Saraiva, 2016. 280 Agregam-se à obrigatória implantação da acessibilidade dois outros elementos essenciais para que o trabalhador com deficiência desempenhe suas atividades laborativas e que se colocam como condição sine qua non do contrato de trabalho: o fornecimento de recursos de tecnologia assistiva e a adaptação razoável. A tecnologia assistiva ou ajuda técnica, conforme o art. 3º, item III, da LBI, consiste em produtos, equipamentos, dispositivos, recursos, metodologias, estratégias, práticas e serviços que objetivem promover a funcionalidade, relacionada à atividade visando à sua autonomia e independência. Esses elementos possibilitam potencializar a funcionalidade do trabalhador com deficiência e, porque dizem respeito ao meio ambiente do trabalho, cabe ao empregador adotar todas as medidas de acessibilidade arquitetônica interna e externa do local da empresa e do local de trabalho; de acessibilidade de comunicação a todas as pessoas com deficiência (física, intelectual e sensorial - auditiva e visual) por meio de apoios e tecnologias assistivas adequadas a cada necessidade; de acessibilidade nos procedimentos, mecanismos e técnicas MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA físicas (espaços arquitetônicos, mobiliários, equipamentos urbanos, transportes, informação e comunicação) e humanas (atitudes e procedimentos criados), que permite (ou não) o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, incluído o direito ao trabalho. A importância do ambiente em relação à pessoa com deficiência é tanta que a interação das diferentes naturezas de deficiência (física, mental, intelectual ou sensorial) com as barreiras é que proporciona a medida de sua participação na vida em sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. Portanto, para os ambientes de trabalho não poderia ser diferente, lembrando que as atividades de trabalho (ofício, cargo ou função), não importam quais sejam elas, devem estar concebidas sempre em condições plenas e adequadas de saúde, higiene e segurança para o trabalhador; para o trabalhador com deficiência, as questões técnicas de acessibilidade são sempre implicitamente exigidas. 281 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA utilizadas para a realização das tarefas da função, assim como nos instrumentos e utensílios utilizados no trabalho; e de preparação de todo o corpo de trabalhadores da empresa para a conscientização sobre a capacidade e contribuições das pessoas com deficiência de forma a eliminar estereótipos e preconceitos também previstos na CDPD. (DEFICIÊNCIA, 2014, p. 180). Lembre-se que as leis da acessibilidade (leis n. 10.048/00 e 10.098/00) e seus regulamentos (Decreto n. 5.296/04) são também aplicáveis às relações de trabalho e seu meio ambiente, da mesma forma como todas as medidas de proteção ao meio ambiente de trabalho da CLT (arts. 154 a 200) e normas regulamentares decorrentes. (GUGEL, 2007, p. 112). Quanto à adaptação razoável e seu caráter de obrigatório cumprimento, estes merecem a atenção especial de empregadores e intérpretes da norma. Primeiro, diante do efeito gerador da igualdade em relação às demais pessoas, uma vez implantada a adaptação segundo a necessidade individual do trabalhador com deficiência. Segundo, pelo fato de a CDPD (art. 2) entender que a recusa em realizar a adaptação razoável significa discriminar por motivo de deficiência. Esse ato de discriminar em razão da deficiência é reconhecido como tipo penal, previsto no art. 88, da LBI, passível de pena de reclusão de um a três anos e multa. Por adaptação razoável entendam-se as adaptações, modificações e os ajustes necessários e adequados que não acarretem ônus desproporcional e indevido, quando requeridos em cada caso, a fim de assegurar que a pessoa com deficiência possa gozar ou exercer, em igualdade de condições e oportunidades com as demais pessoas, todos os direitos e liberdades fundamentais (art. 3º, item IV, da LBI). A relação de razoabilidade e proporcionalidade presente no conceito indica que os ajustes (ou adaptações) necessários e adequados para cada caso concreto dizem respeito à forma de realizá-los, sem ônus desproporcional para o empregador. Não significa deixar de fazer a adaptação ou o ajuste com a alegação de onerosidade pois, 282 A adaptação razoável envolve direito personalíssimo da pessoa com deficiência, não só com os atributos gerais de acessibilidade como também com aqueles decorrentes de seu caso em particular, segundo a natureza de sua deficiência. Somente com a implantação das regras de acessibilidade comuns (presentes nas leis e nas normas técnicas) mais a adaptação razoável e os ajustes adequados é que a pessoa poderá demonstrar as suas habilidades e competências no âmbito das relações de trabalho (públicas ou privadas). Um exemplo de obrigatoriedade de concessão da adaptação razoável, aplicado o critério do menor (desproporcional ou indevido) ônus para o empregador, clareia melhor o argumento: um trabalhador cego trabalha em uma empresa cujas instalações ambientais estão de acordo com as regras de saúde e segurança do trabalho e as normas técnicas de acessibilidade. O trabalhador cego utiliza em suas atividades leitor de tela de computador. Este trabalhador está habituado a utilizar o leitor X, que tem o maior custo no mercado. O empregador oferece o leitor Y, de custo médio no mercado e que dá as mesmas condições para o trabalhador cego realizar as tarefas, ou seja, foi possível realizar a obrigatória adaptação razoável sem ônus desproporcional ou indevido para o empregador. A pessoa com deficiência tem direito, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, a condições justas e favoráveis de trabalho, incluindo igual remuneração por trabalho de igual valor, a qual se inspira na Convenção n. 100 da Organização Internacional do Trabalho, em vigência no Brasil desde 1958, compondo a base para a remuneração igual entre homens e mulheres. São vedadas qualquer restrição ao trabalho da pessoa com deficiência e a exigência de aptidão plena, conforme acima referido. A igualdade real de oportunidades, junto ao princípio da não discriminação, que mereceu capítulo específico na LBI (arts. 4º ao 9º), compõe um leque de direitos decorrentes da relação de trabalho, como a participação e o acesso a MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA lembre-se, a adaptação razoável é condicionante para a promoção da igualdade e eliminação da discriminação presente tanto no art. 5.3 da CDPD quanto no art. 4º da LBI. 283 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA cursos, treinamentos, educação continuada, planos de carreira, promoções, bonificações e incentivos profissionais oferecidos pelo empregador, e tudo com a garantia de acessibilidade. A proibição de adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para o efeito de acesso à relação de trabalho ou à sua manutenção, prevista na Lei n. 9.029/1995, com a motivação da condição de deficiência, foi estendida às pessoas com deficiência que, sem prejuízo dos dispositivos legais que tipificam os crimes resultantes de preconceito de etnia, raça, cor ou deficiência, são passíveis de multa administrativa de dez vezes o valor do maior salário pago pelo empregador, elevado em cinquenta por cento em caso de reincidência, e a proibição de obter empréstimo ou financiamento junto a instituições financeiras oficiais. O reconhecimento da capacidade legal da pessoa com deficiência, um dos comandos de sustentação da CDPD no art. 12, relaciona-se diretamente ao direito à igualdade perante a lei e leva a LBI a afirmar que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa (art. 6º). Cria mais à frente, no art. 84 e correspondentes alterações no art. 114, dois mecanismos de proteção para assegurar o exercício dos direitos da pessoa com deficiência, como a tomada de decisão apoiada para decisões sobre atos da vida civil e a curatela afeta tão somente aos direitos de natureza patrimonial e negocial. Felizmente, no mundo das relações de trabalho, não se duvida da capacidade civil e laborativa e do direito ao trabalho da pessoa com deficiência, independentemente de sua condição de interdição segundo o antigo modelo ou da situação de curatela pelo atual paradigma. 2 A habilitação profissional e a reabilitação profissional. A novidade dO parágrafo 6º do art. 36. A habilitação profissional e a reabilitação profissional previstas no art. 36, decorrentes do compromisso assumido no art. 26 da 284 CDPD, são da atribuição do poder público e envolvem a elaboração e implementação de serviços e programas completos de habilitação profissional e de reabilitação profissional para que a pessoa com deficiência possa ingressar, continuar ou retornar ao trabalho, respeitados sua liberdade de escolha, sua vocação e seu interesse. Para tanto, quaisquer serviços ou programas dessa natureza deverão contar com equipe multidisciplinar, com profissionais da área da deficiência, visando a descobrir/florescer habilidades no caso da habilitação profissional, ou restaurar capacidades e/ou adquirir novas capacidades e habilidades de trabalho no caso da reabilitação profissional. Referidos serviços e programas, como não poderia deixar de ser, devem ser disponibilizados também na área da educação profissional. habilitação profissional é um processo orientado de forma a possibilitar que a pessoa com deficiência, a partir da identificação de suas potencialidades, adquira o nível suficiente de desenvolvimento em todos os aspectos da vida tais como educação, saúde, esporte, dentre outros. (BRASIL, 2014, p. 173). Habilitar uma pessoa com deficiência no âmbito das relações de trabalho, do trabalho autônomo, do empreendedorismo, do cooperativismo [como possibilidades de oportunidade, produtividade e independência, artigo 27, f] é torná-la apta para o ingresso no mundo do trabalho. Compreende a formação profissional visando a alcançar qualificação prática e os conhecimentos específicos necessários para a ocupação de um determinado emprego ou de um grupo de emprego e, a capacitação profissional para o desenvolvimento de atividades laborais específicas, conforme suas potencialidades. Considera-se habilitada a pessoa com deficiência que concluiu o curso de educação profissional de nível básico, técnico ou tecnológico, ou curso superior, com certificação ou diplomação expedida por instituição pública ou privada, legalmente credenciada [no Brasil trata-se do Ministério da Educação ou órgão equivalente], ou aquela com certificado de conclusão de processo de habilitação ou reabilitação profissional [fornecido pelo INSS] e, também, aquela MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Para evitar interpretações confusas, entenda-se que a 285 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA pessoa com deficiência que, não tendo se submetido a processo de habilitação ou reabilitação, esteja capacitada para o exercício de uma função. (GUGEL, 2007, p. 88). A reabilitação profissional, conforme já afirmado, é o processo contínuo e coordenado, de duração limitada, orientado de forma a possibilitar que a pessoa com deficiência, a partir da identificação de suas potencialidades residuais [decorrente de um acontecimento relacionado a doenças crônico-degenerativas, traumatismos, lesões ou envelhecimento], adquira o nível suficiente de desenvolvimento para o reingresso na vida cotidiana e no mundo do trabalho. Deve ter início nos estágios iniciais de uma doença ou lesão. Tratando-se de reabilitação profissional, deve ocorrer na própria empresa, com ambiente de trabalho adaptado e flexibilização da jornada diária, em conjunto com o trabalhador e a equipe multiprofissional. Com a reabilitação garante-se autonomia e independência funcional [capacidade física, mental, social e profissional, conforme comanda o item 1, do Artigo 26, da CDPD] da pessoa com deficiência, resultando em bem-estar e efetiva inclusão social. (BRASIL, 2014, p. 173). Assim, segundo o comando do art. 36 da LBI, os serviços de habilitação profissional, de reabilitação profissional e de educação profissional devem: I) ser dotados de recursos necessários para atender a toda pessoa com deficiência, não importa a natureza de sua deficiência porquanto todas as exigências de acessibilidade e recursos de tecnologia assistiva deverão estar presentes; II) estar articulados com as redes públicas e privadas de saúde, de ensino e de assistência social, em todos os níveis e modalidades e abertas para as entidades de formação profissional (sistema S e entidades da sociedade civil) ou diretamente com o empregador. A novidade trazida pelo art. 36, parágrafo 6º, que já vinha ocorrendo na prática por ação dos órgãos de fiscalização (Ministério Público do Trabalho e Ministério do Trabalho e Emprego) mediante termos de ajustamento de conduta, é a de a habilitação profissional poder ocorrer diretamente nas empresas com a formalização de um con286 3 A inclusão da pessoa com deficiência no trabalho. Trabalho competitivo. Reserva. Reserva em empresas terceirizadas no âmbito da Administração Pública. Contrato de aprendizagem. Emprego apoiado. O modo de inclusão da pessoa com deficiência no trabalho, diz o art. 37, ocorre por meio da colocação competitiva em igualdade de oportunidades com as demais pessoas. Segue todas as regras de contratação da legislação trabalhista e previdenciária, observado o cumprimento de todas as normas e técnicas de acessibilidade, o fornecimento de recursos de tecnologia assistiva e de adaptação razoável, se necessária para cada caso concreto. A contratação do trabalhador com deficiência poderá ocorrer por meio da ação afirmativa de reserva de postos de trabalho em empresas com cem ou mais empregados, seguindo a regra do art. 93 da Lei n. 8.213/1991, inclusive para a contratação de substituto em MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA trato de trabalho, ou seja, a pessoa com deficiência pode habilitar-se profissionalmente no curso de um contrato remunerado de trabalho. Essa forma regular de contratação tem a característica de ser por tempo determinado, enquanto perdurar o processo de formação/habilitação da pessoa com deficiência para a função almejada. Uma vez concluída a formação profissional e presentes as condições para a manutenção do contrato de trabalho, este se transforma em contrato por prazo indeterminado, seguindo a regra comum. A contratação por tempo determinado para a habilitação profissional do trabalhador com deficiência é também considerada para o cumprimento da reserva de vagas prevista no art. 93 da Lei n. 8.213/1991. Descortinou-se, portanto, mais uma ação afirmativa voltada exclusivamente para o trabalhador com deficiência que se disponha a participar de um processo de habilitação profissional na empresa. Os procedimentos, segundo a LBI, deverão ser regulamentados. 287 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA condição semelhante (parágrafo 1º do art. 93), cujo objetivo principal é a manutenção da reserva do posto de trabalho para a pessoa com deficiência. Para a composição da reserva de cargos concorrem todas as naturezas de deficiência já conhecidas como a física, a sensorial (cegos e surdos) e a intelectual (relacionada ao déficit cognitivo), acrescida da deficiência mental, associada à saúde mental. A avaliação da deficiência, necessária para a reserva de cargos, para não gerar desigualdade entre as pessoas com deficiência, será biopsicossocial e feita por equipe multiprofissional. A avaliação será baseada em instrumento de avaliação nos moldes e parâmetros da Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) conforme a classificação indicada nos itens I-IV, parágrafo 1º, do art. 2º da LBI, isto é, os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo; os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais; a limitação no desempenho de atividades e a restrição de participação. Para tanto, deverão ser criados instrumentos específicos que, espera-se, sejam uniformes para todas áreas que necessitem adotá-los como a previdência, a assistência social, a saúde e a reabilitação, o trabalho, entre outros. Daí porque afirmar-se que a designação das deficiências, baseada no padrão médico dos Decretos n. 3.298/1999 e n. 5.296/2004, está revogada. No entanto, até a edição do instrumento de avaliação a que se refere o art. 2º, parágrafo 2º, da LBI e diante da lacuna legal, entende-se que as designações dos referidos decretos servem somente como balizas para identificar as naturezas das deficiências a serem aplicadas em conjunto com os parâmetros de avaliação levados a efeito pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome para a concessão do benefício da prestação continuada e que resultou na Avaliação Médico-Pericial e Social da Incapacidade para Vida Independente e para o Trabalho (AMES/BPC), além daqueles concernentes à concessão da aposentadoria especial da Previdência Social previstos no Decreto n. 8.145/2013, visto que ambos 288 foram concebidos seguindo o conceito de pessoa com deficiência da CDPD e algumas das regras da Classificação Internacional de Funcionalidade (CIF). Destaque-se a alteração produzida pelo art. 101 no § 3º do art. 93 da Lei n. 8.213/1991 ao esclarecer que para a reserva de cargos será considerada somente a contratação direta de pessoa com deficiência, excluído o aprendiz com deficiência. Esta assertiva vem colocar pá de cal em insistentes tentativas de se utilizar o contrato de natureza especial da aprendizagem para o cumprimento da reserva prevista na referida lei. O contrato de aprendizagem com o empregador, segundo a lei da aprendizagem (Lei n. 10.097/2000, complementada pelas Leis n. 11.180/2005, n. 11.788/2008 e LBI), está inserido em programa de aprendizagem de um ofício, aderido ao processo de ensino e formação escolar, de jovens entre 14 e 24 anos, com jornada não superior a seis horas diárias, sem possibilidade de hora extra, e pelo prazo máximo de dois anos. É, portanto, um contrato de natureza especial e dirigido a um público determinado, com objetivo determinado e com alíquotas fiscais específicas. Lembre-se que para o aprendiz com deficiência não se aplica a idade limite de 24 anos. Relativamente à aprendizagem a LBI no art. 97 introduz importante alteração no parágrafo 6º do art. 428 da CLT ao indicar que para o contrato de aprendizagem devem-se considerar as habilidades e competências relacionadas com a profissionalização para todos os MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Em relação às regras de contratação de empresas terceirizadas por meio de processo licitatório, na forma da Lei n. 8.666/1993, está expresso no art. 104 da LBI que as empresas deverão comprovar o cumprimento da reserva de cargos durante todo o período de execução do contrato para pessoas com deficiência ou reabilitado da Previdência Social, além de atenderem as regras de acessibilidade previstas na legislação e normas técnicas. Torna-se mais uma forma de controle do cumprimento efetivo da reserva para o setor de serviços. 289 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA aprendizes com deficiência, e não só, como era a regra anterior, para o aprendiz com deficiência mental ou intelectual. A LBI acerta ao determinar no art. 105 que os rendimentos decorrentes de estágio supervisionado e do contrato de aprendizagem não serão computados para os fins de cálculo da renda familiar per capita a que se refere a LOAS (Lei n. 8.742/1993), estimulando que eventualmente outros integrantes da família nessa condição possam participar desses processos de formação e, ao mesmo tempo, não se contraponham aos próprios critérios de concessão do BPC. Permite-se dirigir severas críticas ao novo parágrafo 8º introduzido no art. 428 da CLT porque fere pressupostos máximos da aprendizagem para pessoas com deficiência. O texto diz o seguinte: Para o aprendiz com deficiência com 18 (dezoito) anos ou mais, a validade do contrato de aprendizagem pressupõe anotação na CTPS e matrícula e frequência em programa de aprendizagem desenvolvido sob a orientação de entidade qualificada em formação técnico-profissional metódica. Ora, o primeiro pressuposto da aprendizagem em relação à idade do aprendiz com deficiência é não considerar a faixa etária máxima de 24 anos para o término da aprendizagem, portanto admite qualquer idade do aprendiz na educação básica (fundamental e médio), ou modalidade (educação de jovens e adultos, educação profissional). O segundo pressuposto da aprendizagem para pessoas com deficiência é a não exigência de comprovação da escolarização, consideradas tão somente as habilidades e competências. Além disso, o marco de 18 anos de idade está em desacordo com o conteúdo da regra geral do caput do art. 428, que assegura a aprendizagem, e todas as exigências contratuais, ao jovem entre 14 e 24 anos de idade. Para as hipóteses de extinção antecipada do contrato de aprendizagem, foram bem introduzidas no item I do art. 433 da CLT as ressalvas de que não pode ser considerado desempenho insuficiente ou inadaptação do aprendiz com deficiência, se no curso do contra290 A colocação competitiva da pessoa com deficiência pode ocorrer por meio de trabalho com apoio, ou emprego apoiado, atividade que já vem sendo desenvolvida por inúmeras instituições da sociedade civil, sobretudo aquelas voltadas para a proteção e defesa da pessoa com deficiência intelectual, algumas com resultados de excelência. O fato é que o emprego apoiado no Brasil nasceu no âmbito das oficinas protegidas de produção e terapêuticas, previstas no Decreto n. 3.298/1999, que já tinham como parâmetro obrigatório a anotação da carteira de trabalho pelas próprias entidades, mas, via de regra, não ocorriam em ambientes de trabalho de empresas. A evolução e experiências acumuladas ao longo desses quinze anos devem espelhar um sistema aberto de emprego apoiado, no qual todas as instituições com experiência possam atuar, com a definição do tempo de duração do apoio, a frequência, o ambiente, o recurso a ser empregado, segundo a realidade de cada pessoa com deficiência. Assim, as condições pessoais do trabalhador apoiado, de formação e de situação de vida da pessoa devem ser sempre levadas em consideração para o efeito da intensidade do apoio, que pode ser episódico ou contínuo de acordo com a necessidade. O art. 37 traça diretrizes, a serem necessariamente regulamentadas para uniformizar formas e procedimentos a serem adotados pelos interlocutores do apoio. São elas: prioridade no atendimento à pessoa com deficiência com maior dificuldade de inserção no mundo do trabalho; suportes individualizados que atendam as necessidades específicas da pessoa com deficiência, inclusive com a disponibilização de recursos de tecnologia assistiva, de agente facilitador e de apoio no ambiente de trabalho; respeito ao perfil vocacional e ao interesse da pessoa com deficiência apoiada; oferta de aconselhamento e de apoio aos MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA to de aprendizagem não foram implantados os elementos de acessibilidade, os recursos de tecnologia assistiva e o apoio necessário ao desempenho de suas atividades, reforçando, mais uma vez, que a acessibilidade está intrinsecamente ligada ao ambiente de formação e trabalho. 291 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA empregadores, com vistas à definição de estratégias de inclusão e de superação de barreiras, inclusive atitudinais; realização de avaliações periódicas; articulação intersetorial das políticas públicas; possibilidade de participação de organizações da sociedade civil. 4 A relação de trabalho da pessoa com deficiência com a assistência social e a previdência social. Auxílio-inclusão. O art. 40 da LBI assegura à pessoa com deficiência que não possua meios para prover sua subsistência nem de tê-la provida por sua família o benefício mensal de um salário-mínimo, nos termos da Lei n. 8.742/1993 (LOAS), o que significa afirmar que não mais prevalecem as concepções de incapacidade para o trabalho para o recebimento do benefício assistencial. Essa nova proposição está mais consentânea com as alterações ocorridas na LOAS por força da Lei n. 12.470/2011, ou seja, a possibilidade de o jovem aprendiz acumular o benefício da prestação continuada (BPC) com a remuneração do contrato de aprendizagem pelo período de dois anos (arts. 20, parágrafo 9º, e 21-A, parágrafo 2º). Igualmente quanto à possibilidade de a pessoa com deficiência ter seu benefício suspenso se exercer atividade remunerada, inclusive na condição de microempreendedor individual (art. 21-A), e poder retornar à condição de beneficiário da assistência social. Referida previsão contém medida de ação afirmativa contundente, uma vez que, ao mesmo tempo em que reconhecem a realidade do país, no qual muitos jovens com deficiência estão completamente à margem do aprendizado do ensino metódico e da formação profissional, criam e disciplinam a possibilidade de o jovem aprendiz poder acumular os valores recebidos da remuneração do contrato de aprendizagem e do benefício da prestação continuada (salário + BPC). Embora o contrato de aprendizagem para o aprendiz com deficiência não tenha o limite de dois anos (art. 428, parágrafo 5º, da CLT), há 292 Outro critério inovador trazido pela LBI no art. 94 é o direito ao auxílio-inclusão para pessoas com deficiência moderada ou grave que recebem o BPC, ou o tenham recebido nos últimos cinco anos, e escolhem passar a exercer uma atividade remunerada, em qualquer modalidade (contrato de trabalho, microempreendedor, trabalhador autônomo, por exemplo), e desde que sejam enquadradas como segurados obrigatórios do Regime Geral da Previdência Social. Nesse caso, segue-se a regra da suspensão do BPC. Enquanto a pessoa com deficiência “moderada ou grave” permanecer na atividade remunerada, poderá acumular o salário com o auxílio-inclusão (salário + auxílio-inclusão). Essa acumulação, em vista dos atributos dos regimes assistenciais e do celetista, só é possível se o auxílioinclusão não for considerado benefício assistencial. A natureza desse auxílio-inclusão é retributiva e pretende-se que funcione como um incentivo, um estímulo, um prêmio pago à pessoa com deficiência que ingresse no mundo do trabalho. Espera-se a regulamentação do auxílio-inclusão da pessoa com deficiência o mais breve possível, visto que seu objetivo principal é incentivar a pessoa com deficiência moderada ou grave a se lançar no mundo do trabalho, mantendo o recebimento do valor do auxílio-inclusão para as despesas decorrentes de manutenção e necessidades da natureza da deficiência. Com isso, o receio (justo) de perda do BPC é compensado pelo auxílio-inclusão, acrescido da remuneração decorrente do contrato de trabalho, o que irá contribuir para a sua plena participação da vida em sociedade. Relativamente à previdência social, a LBI trata de afirmar no art. 41 que a pessoa com deficiência segurada do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) tem direito à aposentadoria nos termos da Lei Complementar n. 142, de 8 de maio de 2013. O que importa para as MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA limitação do prazo de dois anos para a acumulação da remuneração decorrente do contrato de trabalho e BPC (art. 21-A, parágrafo 2º, da Lei n. 8.742/1993). 293 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA relações de trabalho e no cotidiano de muitas famílias que têm filhos com deficiência intelectual ou mental na condição de dependentes é assegurar o recebimento da pensão previdenciária em caso de morte. O comando da Lei n. 8.213/1991, antes das alterações ocorridas em 2011 e da mais recente na Lei n. 13.183/2015, era implacável, ou seja, a pessoa com deficiência beneficiária da pensão estava proibida de exercer qualquer atividade remunerada. A ordem da Lei n. 12.470/2011 redirecionou a imprópria designação de “inválido” não mais a atrelando à condição da deficiência da pessoa e a sua capacidade para o trabalho. Passou a permitir que os dependentes com deficiência intelectual e com deficiência mental ingressassem no mundo do trabalho com a redução de 30% do valor da pensão. Com isso, passaram também à condição de contribuintes do sistema previdenciário. Lembre-se que essas duas condições, de beneficiário e contribuinte, são permitidas, com natureza semelhante a outras previstas na própria lei previdenciária. A Lei n. 12.470/2011 dirigiu-se para duas categorias de pessoas com deficiência: a deficiência intelectual e a deficiência mental. Portanto, em sintonia com a CDPD. Quanto à segunda natureza de deficiência, a mental, nada mais fez do que consolidar a evolução do pensamento mundial por meio de decisões de associações e da própria agência da Organização Mundial da Saúde, que sempre considerou como deficiência a deficiência mental associada à saúde mental. Ao ampliar e incluir também as pessoas com deficiência de natureza mental, relacionada à saúde mental, a CDPD resgata antiga reivindicação do movimento de pessoas com doença mental. A concepção de deficiência mental está ligada às funções mentais do corpo e que podem gerar transtornos mentais. São exemplos, esquizofrenia, depressão, síndrome do pânico, transtorno obsessivo-compulsivo, paranoia, mania, entre outros, controlados por meio de medicamentos. Com os princípios norteadores da CDPD (art. 3), o direito ao trabalho (art. 27) e o igual acesso de pessoas com deficiência a programas e benefícios de aposentadoria (art. 28), novas alterações 294 Além disso, a Lei n. 13.183/2015, publicada posteriormente à LBI, acrescentou o parágrafo 6º ao art. 77 da Lei n. 8.213/1991, garantindo o direito à pensão integral pelo dependente com deficiência intelectual ou mental ou com deficiência grave, mesmo que este tenha um trabalho remunerado ou seja microempreendedor. Isso significa que a pessoa com deficiência intelectual/mental/grave pode ingressar no mundo do trabalho sem qualquer alteração no valor de sua pensão previdenciária e acumular os valores recebidos da pensão e da remuneração recebida por exercer uma atividade laborativa. 5 A reforma trabalhista e o contrato de trabalho intermitente. Incompatibilidade com a reserva de cargos para pessoas com deficiência em empresas com cem ou mais empregados3. A reforma trabalhista produzida pela Lei n. 13.467/2017, com vigência a partir de novembro/2017, introduz no art. 443, § 3º, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) a modalidade de contrato de trabalho intermitente, no qual há a prestação de serviços com subordinação, porém de forma descontínua. Ocorre com alternância de 3 Resumo do artigo “O contrato de trabalho intermitente é incompatível com a reserva de cargos para pessoas com deficiência em empresas com cem ou mais empregados”, acessível em: . MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA ocorreram na Lei n. 8.213/1991, por meio da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (art. 101), que definitivamente coloca a pessoa com deficiência intelectual ou mental ou grave como dependente do segurado, sem qualquer necessidade de restrição à capacidade civil. Dessa forma, a pessoa com deficiência não precisará ser colocada em situação de curatela para ser inscrita como dependente do segurado no sistema previdenciário. Lembre-se que essa inscrição deverá ser feita com o segurado ainda em vida. 295 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA períodos de prestação de serviços e de inatividade, determinados em horas, dias ou meses, independentemente do tipo de atividade do empregado e do empregador, à exceção dos aeronautas. No art. 452-A estão definidos os critérios para a validade do contrato de trabalho intermitente, quais sejam: I) deve ser celebrado por escrito; II) deve conter especificamente o valor da hora de trabalho, que não pode ser inferior ao valor horário do salário mínimo ou àquele devido aos demais empregados do estabelecimento que exerçam a mesma função em contrato intermitente ou não; III) a convocação para a prestação de serviço se dará por qualquer meio de comunicação eficaz, com três dias corridos de antecedência; IV) recebida a convocação, o empregado terá o prazo de um dia útil para responder ao chamado; V) se não responder ao chamado no tempo aprazado de um dia útil, presume-se a recusa da oferta, a qual não descaracteriza a subordinação para fins do contrato de trabalho intermitente; VI) aceita a oferta para o comparecimento ao trabalho, a parte que descumprir, sem justo motivo, pagará à outra parte, no prazo de trinta dias, multa de 50% da remuneração que seria devida, permitida a compensação em igual prazo; VII) o período de inatividade não será considerado tempo à disposição do empregador, podendo o trabalhador prestar serviços a outros contratantes; VIII) ao final de cada período de prestação de serviço, o empregado receberá o pagamento imediato da remuneração, das férias proporcionais com acréscimo de um terço, do décimo terceiro salário proporcional, do repouso semanal remunerado, e dos adicionais legais; IX) o recibo de pagamento deverá conter a discriminação dos valores pagos relativos a cada uma das parcelas referidas; X) o empregador efetuará o recolhimento da contribuição previdenciária e o depósito do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, na forma da lei, com base nos valores pagos no período mensal e fornecerá ao empregado comprovante do cumprimento dessas obrigações; XI) a cada doze meses, o empregado adquire direito a usufruir, nos doze meses subsequentes, um mês de férias, período no qual não poderá ser convocado para prestar serviços pelo mesmo empregador. 296 A modalidade de trabalho intermitente inserida no § 3º do art. 443 da CLT choca-se com a concepção de empregado do art. 3º, na medida em que elimina um dos elementos da relação de emprego, que é a não eventualidade ou a habitualidade. Cria a descontinuidade do serviço prestado, desobrigando o empregador de qualquer dever quando dos períodos de inatividade, provocadas por ele próprio. Permite e confunde tudo e, pior, cria desigualdades na medida em que, no mesmo estabelecimento, idêntica função poderá ser exercida por trabalhador em situação de contrato comum de trabalho e outro de contrato intermitente (caput, art. 452-A). Ao desobrigar o empregador dos períodos de inatividade, que se registre são geradas pelo próprio negócio segundo a demanda, transfere para o empregado intermitente parte do risco do empreendimento. Portanto, em descompasso com o caput do art. 2º da CLT, que atrai para o empregador a totalidade dos riscos da atividade econômica. Além disso, conforme lembrado por Flávio da Costa Higa (2017, p. 47), há ilicitude manifesta decorrente de condição ilícita prevista no art. 122 do Código Civil, ao sujeitar ao puro arbítrio de uma 4 As justificativas para o projeto de lei e respectivos substitutivos estão na p. 50 das justificativas do Deputado Rogério Marinho, em: . Acesso em: 18 set. 2017. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA As justificativas para o contrato de trabalho intermitente são variadas e se baseiam em “modernizar as relações do trabalho, sem que haja precarização do emprego”, na possibilidade de “gerar cerca de catorze milhões de postos de trabalho formais no espaço de dez anos”, e no “ efeito social da implantação do contrato intermitente em situações como a obtenção do primeiro emprego, especialmente para os estudantes, que poderão adequar as respectivas jornadas de trabalho e de estudo da forma que lhes for mais favorável”4, prevenindo a evasão escolar. Todas as referidas justificativas são questionáveis diante do sistema jurídico, da realidade social e do mercado brasileiros. 297 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA das partes (o empregador) a manifestação de demanda pelo empregado intermitente. Do ponto de vista da reserva de cargos para pessoas com deficiência em empresas com cem ou mais empregados, decorrente do art. 93 da Lei n. 8.213/1991, são gritantes as desigualdades que poderão ser geradas, assim como a antinomia criada entre ser e não ser empregado. Refere-se, primeiro, à possibilidade instituída no § 2º do art. 452-A de, em um mesmo empreendimento, existirem trabalhadores exercendo as mesmas funções, sendo alguns regidos pelo contrato de trabalho ordinário e outros mediante contrato de trabalho intermitente. Tal concepção fere o comando de natureza constitucional da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), que tem entre seus princípios a não discriminação e a igualdade de oportunidades com as demais pessoas (art. 3), repetidos no âmbito do trabalho e emprego (art. 27), que determina a proteção dos direitos das pessoas com deficiência em condições justas e favoráveis de trabalho. Segundo, a concepção criada no § 5º do art. 452-A de que o período de inatividade não será considerado tempo à disposição do empregador e/ou que o trabalhador intermitente poderá prestar serviços a outros contratantes é incompatível com a reserva de cargos para pessoas com deficiência ou de beneficiários reabilitados da Previdência Social, cuja norma é de ordem pública e está comandada no art. 93 da Lei n. 8.213/1991. A reserva de cargos – número que decorre de percentual de 2% a 5% sobre o total de cargos – ocorre sobre os cargos existentes na empresa, ou quando da criação de novos cargos ou, ainda, em substituição ao trabalhador com deficiência ou beneficiário reabilitado da Previdência Social dispensado (§ 1º do art. 93 da Lei n. 8.213/1991). Assim, confrontada a principal característica do contrato de trabalho intermitente, que é a descontinuidade da prestação de serviços e a possibilidade de o trabalhador intermitente poder prestar serviços a outros emprega298 dores, este (o trabalhador intermitente) não poderá concorrer para a reserva de cargos. Admiti-lo seria criar a figura do “trabalhador com deficiência profissional da reserva de cargos”, ao mesmo tempo, e para diferentes empresas. Primeira: considerar de ordem pública, decorrente do art. 8º, inciso III, da Constituição da República, a obrigação de a previsão do contrato intermitente decorrer somente de acordo ou convenção coletiva de trabalho, tal como nos direitos francês e italiano, de forma a convalidar uma das justificativas da reforma trabalhista baseada no “fortalecimento da negociação coletiva, conferindo maior eficácia às cláusulas que forem acordadas entre as partes”5. Segunda: descrever na lei, a exemplo do direito francês, as hipóteses de não permissão da contratação intermitente, ou seja, para substituir trabalhadores em greve e para efetuar trabalhos insalubres e perigosos. E, acrescidas das previsões do direito italiano porque mais completas, quando a empresa não tiver realizado a avaliação de risco; substituir trabalhadores em greve; realizar dispensa coletiva nos seis meses anteriores à chiamata, salvo disposição em convenção coletiva de trabalho e em casos de suspensão do contrato de trabalho ou redução da jornada de trabalho. Terceira: diante da característica do contrato de trabalho intermitente (descontinuidade da prestação de serviços e possibilidade de o trabalhador intermitente poder prestar serviços a outros empre5 Cf. p. 25 das justificativas do deputado Rogério Marinho. Disponível em: . Acesso em: 18 set. 2017. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Admitida a nova realidade, observa-se que faltam salvaguardas à modalidade de contrato de trabalho intermitente, de forma a proteger, ao mesmo tempo, o trabalhador em situação de trabalho intermitente e os demais trabalhadores da empresa e, ainda, a prevenir fraudes às relações de trabalho. Portanto, são necessárias as seguintes medidas: 299 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA gadores), o trabalhador intermitente não concorrerá para a reserva de cargos prevista no art. 93 da Lei n. 8.213/1991. Quarta: quanto à finalidade, se o contrato intermitente for mesmo capaz de gerar N empregos para os próximos 10 anos, seria oportuno “a lei declarar expressamente que ela só se aplica aos casos em que a contratação representar aumento do número de empregados” (HIGA, 2017, p. 52), nos mesmos termos do art. 1º da Lei n. 9.601/1998, que determinou a exceção à modalidade de contrato por prazo determinado, decorrente de convenção ou acordo coletivo de trabalho, previsto na alteração que fez ao mesmo art. 443 da CLT. Conclusões A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, Lei n. 12.146, de 6 de julho de 2015, que entrou em vigor no dia 7 de janeiro de 2016, traz avanços importantes na área do direito do trabalho para o trabalhador com deficiência e está pautada no princípio internacional de não retrocesso de direitos conquistados. Nesse sentido, consolida princípios relevantes para as relações de trabalho como o princípio da igualdade e não discriminação e da acessibilidade mais a adaptação razoável, e do reconhecimento igual perante a lei. Relativamente à acessibilidade e adaptação razoável, são parâmetros fundamentais quando se trata de ambientes de trabalho acessíveis para trabalhadores com deficiência: a acessibilidade obrigatória para todos os ambientes de trabalho onde pessoas com deficiência exercem suas atividades; a adaptação razoável também obrigatória para cada caso concreto, cuja recusa implica discriminação baseada na deficiência, tipificada penalmente. A LBI firma a ação afirmativa de reserva de cargos em empresas com cem ou mais empregados, esclarecendo pontos antes duvidosos em relação à não acumulação da reserva do aprendiz, bem como a obrigatória comprovação do cumprimento da reserva de trabalhadores com deficiência durante todo o período de contrato de 300 empresas terceirizadas com a Administração Pública. Insere norma específica quanto à habilitação profissional poder ocorrer diretamente nas empresas com a formalização de um contrato de trabalho, por tempo determinado, podendo ser considerado para o cumprimento da reserva prevista na Lei n. 8.213/1991. A LBI cria o auxílio-inclusão para pessoas com deficiência moderada e grave que ingressem no mundo do trabalho e cuja natureza não pode ser assistencial. A natureza desse auxílio-inclusão é retributiva e pretende-se que funcione como um incentivo, um estímulo, um prêmio pago à pessoa com deficiência que ingresse no mundo do trabalho. Referências BRASIL. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH-PR). Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência (SNPD). Novos comentários à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Brasília: SDH; SNPD, 2014. GUGEL, Maria Aparecida. Pessoa com deficiência e o direito ao trabalho: reserva de cargos em empresas, emprego apoiado. Florianópolis: Obra Jurídica, 2007. . Pessoas com deficiência e o direito ao concurso público – reserva de cargos e empregos públicos – administração direta e indireta. 3. ed. revisada e ampliada. Goiânia: UCG, 2016. MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA A LBI assegura o benefício mensal de um salário-mínimo para pessoas com deficiência que não possuam meios para prover sua subsistência, abandonando de vez a hipótese de comprovação da incapacidade para o trabalho. Igualmente assegura o recebimento integral da pensão previdenciária pelo dependente segurado com deficiência que estiver trabalhando. 301 MINISTÉRIO PÚBLICO, SOCIEDADE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA . Benefício da prestação continuada, trabalho e auxílio-inclusão – mudanças da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), Lei n. 13.146/2015. Disponível em: . Acesso em: 6 jun. 2016. . Pensão do dependente com deficiência intelectual, mental ou grave. Direito de trabalhar e acumular a pensão com a remuneração. Disponível em: . Acesso em: 6 jun. 2016. LEITE, Flávia Piva Almeida; RIBEIRO, Lauro; MACIEIRA, Waldir (Orgs.). Comentários ao Estatuto da Pessoa com Deficiência. São Paulo: Saraiva, 2016. 302 Obra composta em Fira Sans e impressa em papel pólen 90g/m2 pela Gráfica e Editora Ideal Ltda. – Brasília-DF 3.200 exemplares