Maria Aparecida Gugel Waldir Macieira da Costa Filho Lauro Luiz Gomes Ribeiro (organização) DEFICIÊNCIA NO BRASIL UMA ABORDAGEM INTEGRAL DOS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA Copyright © 2007, by Maria Aparecida Gugel, Waldir Macieira da Costa Filho e Lauro Luiz Gomes Ribeiro Capa e projeto gráfico Fábio Brüggemann Ilustração da capa Revisão Editoração e preparação de originais Estúdio Letras Contemporâneas Conselho editorial Edson Ubaldo Fábio Brüggemann Péricles Prade Ficha Catalográfica elaborada pelo Bibliotecário Alzemi Machado – CRB 14 – 677 D313 Deficiência no Brasil : uma abordagem integral dos direitos com pessoas com deficiência / Organização de Maria Aparecida Gugel, Waldir Macieira da Costa Filho, Lauro Luiz Gomes Ribeiro _ . _ Florianópolis : Obra Jurídica, 2007. 544 p. : 16 x 23 cm ISBN 978-85-86145-46-7 1. Direito – Portadores de Deficiência . 2. Direitos Civis. I. Gugel, Maria Aparecida. II. Costa Filho, Waldir Macieira da. III.Ribeiro, Lauro Luiz Gomes CDD 344.01-087 Todos os direitos desta edição reservados a LETRAS CONTEMPORÂNEAS - OFICINA EDITORIAL LTDA. Rua Hermann Blumenau, 134/5 Florianópolis, SC - 88.020-020 www.letrascontemporaneas.com.br 4 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................................................................................................. 7 APRESENTAÇÃO .......................................................................................................................................................................... 9 SEÇÃO I – CONCEITUAÇÃO DE DEFICIÊNCIA ............................................................................................... 11 EM BUSCA DE UM CONCEITO DE PESSOA COM DEFICIÊNCIA Luiz Alberto David Araújo ................................................................................................................................. 11 SEÇAO II – DIREITO À IGUALDADE ........................................................................................................................ 25 O DIREITO À IGUALDADE, À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COM DEFICIÊNCIA E À AUTONOMIA Lauro Luiz Gomes Ribeiro ................................................................................................................................ 25 SEÇÃO III – NORMAS INTERNACIONAIS .............................................................................................................. 41 CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA DA ONU Laís Vanessa Carvalho de Figueirêdo Lopes ...................................................................................... 41 DEFINIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO Eugênia Augusta Gonzaga Fávero .............................................................................................................. 67 DIREITO A UMA EDUCAÇÃO INCLUSIVA Eugênia Augusta Gonzaga Fávero ............................................................................................................. 89 A DEFESA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E O SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS Vânia Maria Ruffini Penteado Balera e Eduardo Dias de Souza Ferreira .................. 111 SEÇÃO IV – EDUCAÇÃO ...................................................................................................................................................... 139 EDUCAÇAO INCLUSIVA Patrícia Albino Galvão Pontes ..................................................................................................................... 139 SEÇÃO V – SAÚDE E REABILITAÇÃO .................................................................................................................. 169 A PESSOA COM DEFICIÊNCIA E O DIREITO À SAÚDE Lenildo Queiroz Bezerra .................................................................................................................................... 169 MEDICINA DE REABILITAÇÃO - REABILITAÇÃO E O MODELO DA CIF Linamara Rizzo Battistella ................................................................................................................................. 181 SEÇÃO VI – BENEFÍCIO ASSISTENCIAL ............................................................................................................ 193 O BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA E A PREPONDERÂNCIA DOS CRITÉRIOS SUBJETIVOS NA ANÁLISE CONTEXTUAL Cláudio Drewes José de Siqueira .............................................................................................................. 193 SEÇÃO VII - CONCURSO PÚBLICO E TRABALHO ........................................................................................ 211 DIREITO CONSTITUCIONAL DE TER RESERVA DE CARGOS E EMPREGOS PÚBLICOS EM CONCURSOS PÚBLICOS Maria Aparecida Gugel ...................................................................................................................................... 211 CONSTITUIÇÃO e PESSOA COM DEFICIÊNCIA Manoel Jorge e Silva Neto ............................................................................................................................ 229 OS DIREITOS HUMANOS E A PESSOA COM DEFICIÊNCIA NO MERCADO DE TRABALHO Ricardo Tadeu Marques da Fonseca ........................................................................................................ 247 5 A INTERDIÇÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA - EFEITOS DA CURATELA NO CONTRATO DE TRABALHO Maria Aparecida Gugel ....................................................................................................................................... 259 SEÇÃO VIII – ACESSIBILIDADE .................................................................................................................................. 273 A ACESSIBILIDADE COMO CONDIÇÃO DE CIDADANIA Rebecca Monte Nunes Bezerra .................................................................................................................... 273 AJUDAS TÉCNICAS: INDEPENDÊNCIA E AUTONOMIA COMO ESTRATÉGIA DE INCLUSÃO Carolina A. Moreira Sanchez e Gabriela Rodrigues Veloso Costa .................................... 297 SER ACESSÍVEL É LEGAL Maria Elisabete Lopes ............................................................................................................................................ 313 SEÇÃO IX – TRANSPORTE ............................................................................................................................................ 325 DIREITO AO TRANSPORTE, LOCOMOÇÃO E LIBERDADE DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Sonia Maria Demeda Groisman Piardi ................................................................................................. 325 SEÇÃO X – ESPORTE, LAZER, CULTURA E TURISMO ............................................................................. 343 LAZER, CULTURA E TURISMO Naide Maria Pinheiro ....................................................................................................................................... 343 A SINERGIA ENTRE A PSICOLOGIA NO ESPORTE ADAPTADO E OS QUATRO PILARES DA EDUCAÇÃO Eliane Lemos .............................................................................................................................................................. 363 ESPORTE TRANSFORMANDO VIDAS Steven Dubner e Elisabeth Fernandes .................................................................................................... 377 SEÇÃO XI – BIOÉTICA E CÉLULAS-TRONCO ................................................................................................ 391 PESSOA COM DEFICIÊNCIA, BIOÉTICA E CÉLULAS-TRONCO Waldir Macieira da Costa Filho .................................................................................................................. 391 SEÇÃO XII – DEFESA DOS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA: ATRIBUIÇÕES DO MINISTÉRIO PÚBLICO; DA DEFENSORIA PÚBLICA; DOS CONSELHOS DE DIREITOS O MINISTÉRIO PÚBLICO E A PESSOA COM DEFICIÊNCIA Hugo Nigro Mazzilli .......................................................................................................................................... 405 A DEFESA DOS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA: ATRIBUIÇÕES DO MINISTÉRIO PÚBLICO, DEFENSORIA PÚBLICA E CONSELHOS DE DIREITOS Paulo Roberto Barbosa Ramos .................................................................................................................... 421 SEÇÃO XIII – CONSUMIDOR E ISENÇÕES TRIBUTÁRIAS ................................................................ 441 A PESSOA COM DEFICIÊNCIA NO DIREITO DO CONSUMIDOR Alexandre de Matos Guedes ....................................................................................................................... 441 A ISENÇÃO TRIBUTÁRIA COMO INSTRUMENTO GARANTISTA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS Cláudio Drewes José de Siqueira ............................................................................................................ 463 SEÇÃO XIV – DOS CRIMES ............................................................................................................................................. 477 CRIMES CONTRA AS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA – UMA ANÁLISE Alexandre de Matos Guedes .......................................................................................................................... 477 CRIMES CONTRA OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA Patrícia Albino Galvão Pontes ..................................................................................................................... 495 6 INTRODUÇAO E sta obra, Deficiência no Brasil: Uma Abordagem Integral dos Direitos das Pessoas com Deficiência, inaugura o selo Edições Inclusivas, idealizado pela Associação Nacional de Membros do Ministério Público de Defesa dos Di- reitos dos Idosos e Pessoas com Deficiência (AMPID), para a difusão de criações que tratam dos direitos humanos e a divulgação de temáticas relacionadas à inclusão social, ampliando o debate sobre estes temas que têm cada vez mais reconhecida sua importância na agenda mundial. A idéia da AMPID de organizar um livro multidisciplinar sobre os direitos das pessoas com deficiência nasce da constatação de que a produção jurídica nessa área é mínima. Por isso, é preciso escrever e levar o conhecimento da existência do direito e do sujeito do direito, no caso focado exclusivamente na pessoa com deficiência, aos operadores do direito (advogados, defensores, pro- motores e procuradores públicos e juízes), aos próprios cidadãos com deficiên- cia, e à sociedade brasileira em geral. Reunir numa só produção jurídica escritores de renome nacional e de atua- ção comprovada nas diferentes áreas da vida das pessoas com deficiência facili- tou as tarefas da Comissão Editorial, tanto que, em curto tempo, obtivemos a adesão de membros do Ministério Público do Brasil associados da AMPID e dos convidados especialistas em diferentes áreas (fisiatra, psicólogo, professor, arqui- teto, gestor público). Com êxito, finalizamos o livro com todos os textos reunidos. Optamos por utilizar a designação “pessoa com deficiência”, termo que reflete a vontade do movimento social de pessoas com deficiência, resguardan- do somente as citações literris da Constituição e Leis de “pessoa portadora de deficiência”. A obra tem como pilar a dignidade da pessoa humana e como objetivo lançar luzes de holofote sobre a pessoa com deficiência e seu direito à educação, saúde e reabilitação, trabalho, esporte, lazer, cultura, turismo, transporte, acessibi- lidade física dos ambientes, de informação e, quando necessário, assistencial. Os conteúdos dos artigos que compõem a obra, distribuídos em diversas seções, de inteira responsabilidade de seus autores, seguem os fundamentos constitucionais dirigidos às pessoas com deficiência, com a discussão exaustiva das leis e regulamentos vigentes. 7 Os autores são unânimes: o Estado brasileiro e a sociedade brasileira têm o dever de fazer, de implementar o direito de a pessoa com deficiência ser igual. As quatorze seções que abordam a conceituação de deficiência; direito à igualdade; normas internacionais; educação; saúde e reabilitação; benefício assistencial; concurso público e trabalho; acessibilidade; transporte; esporte, lazer, cultura e turismo; bioética e células tronco; defesa dos direitos das pessoas com deficiência: atribuições do Ministério Público, da Defensoria Pública e dos Con- selhos de Direitos; consumidor e isenções tributárias e, crimes, demonstram à saciedade o direito em tese e a prática implementada, com enfoques próprios de efetividade (ou não) da previsão legal. Foram trazidos para o conteúdo da obra temas polêmicos no âmbito das relações sociais e jurídicas: a interdição da pessoa com deficiência e os efeitos da curatela enfocando a necessidade de se resguardar os direitos civis e de trabalhar; o direito de acesso da pessoa com deficiência aos resultados da ciência no campo da bioética e células tronco; o direito do consumidor com deficiência e, a tipificação de condutas penais, preconizadas na Lei nº 7.853/89. Ao tratar sobre a gama de direitos das pessoas com deficiência, os autores fazem sugestões de eventuais melhorias na legislação pautadas nas atuais pro- postas de mudanças legislativas do Projeto de Lei nº 7.669/06, que trata do Estatuto da Pessoa com Deficiência, em discussão junto ao Congresso Nacional. A análise da grande maioria dos textos descortina os marcos das normas internacionais e, principalmente da recente conquista mundial das pessoas com deficiência com a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, da Organização das Nações Unidas – ONU, assinada pelo Brasil e que passará pelo processo de ratificação. A leitura da obra, tem-se a convicção, será um deleite para todos que buscam o conhecimento. A aspiração da Comissão Editorial é que a partir desse conhecimento adquirido, o leitor não mais seja o mesmo, e alie-se a todos que buscam a implementação dos direitos para a conquista efetiva da cidadania da pessoa com deficiência! Os organizadores 8 APRESENTAÇÃO A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988, tem sido um importante marco normativo no cenário dos modernos Estados Nacionais. Poucas Constituições, depois da II Guerra Mundial, contêm um complexo normativo tão amplo, capaz não somen- te de incorporar comandos sobre a estrutura do Estado, declaração de direitos, bem como instituições e institutos de defesa dos direitos em caso de lesões por ações ou omissões do Estado ou daqueles que compõem a sociedade civil. Nesse arcabouço, o Ministério Público possui um local de destaque, por- quanto ao mesmo tempo em que é responsável pela defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, pos- sui a obrigação de zelar pelo efetivo respeito dos poderes públicos e dos servi- ços de relevância pública aos direitos assegurados na Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia. Mesmo com esse novo perfil, os integrantes do Ministério Público não pas- saram a desempenhar suas atribuições instantaneamente e da maneira mais ade- quada. Passou e ainda está passando por um processo de aprendizagem. O Minis- tério Público integra o cenário brasileiro. Muito embora a Constituição determine aos seus Membros novas posturas, as quais devem estar comprometidas com a probidade, moralidade, garantia dos direitos fundamentais, muitas forças internas a essa própria instituição ainda impedem a aceleração desse processo, o que não quer dizer que muitos integrantes do Ministério Público não estejam fazendo um extraordinário esforço no sentido de romper essas barreiras. Os textos que integram esta coletânea são a prova de um sincero esforço pela construção de um meio ambiente no Brasil capaz de assegurar a efetividade das normas constitucionais. A consciência das desigualdades, bem como da finalidade da Constituição no sentido de eliminá-las, é marcante. Nesse processo, novas estratégias de relacionamento entre as autoridades e os cidadãos são apontadas, as quais, diga- se de passagem, encontram-se devidamente gravadas na Constituição. O exercício do poder impõe responsabilidade e fiscalização continua e responsável dos cidadãos e das próprias agências estatais incumbidas da fiscali- 9 zação de outras instâncias do Estado, responsáveis pela execução das ações pela efetivação de direitos, não somente sociais, culturais e econômicos, como também políticos e civis. Essa é uma tarefa intrínseca do Ministério Público. Conduzir o Brasil para a trilha do civilizatório, ou seja, do respeito a uma Constituição que reconhece e diz inaugurar um estado Democrático de Direito, implica enquadrar as atuações do Estado e dos cidadãos dentro das balizas impos- tas pelo estatuto Constitucional. Sendo assim, educar autoridades e cidadãos parece ser a principal tarefa do Ministério Público. Esse processo educativo processa-se por meio de vários mecanismos. Denunciando-se autoridades irresponsáveis e desonestas, cele- brando-se termos de compromisso de ajustamento de conduta, recomendando- se posturas compatíveis com a Constituição ou mesmo publicando textos, cujos conteúdos indicam como a Constituição deve ser entendida. Este livro cumpre uma tarefa educativa essencial para o aprimoramento do correto entendimento dos direitos constitucionais das pessoas com deficiên- cia, para utilizar a terminologia inaugurada com a recente Convenção dos Direi- tos das Pessoas com Deficiência, a primeira convenção do século XIX. Todos os colaboradores desta obra, integrantes da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público de Defesa dos Direitos dos Idosos e Pessoas com Deficiência – AMPID, e convidados especialistas, estão comprometidos com a dignidade da pessoa humana. É por isso que Deficiência no Brasil: uma Abordagem Integral dos Direi- tos das Pessoas com Deficiência – contribuirá seminalmente para a compreen- são dos direitos fundamentais, da realidade das pessoas com deficiência e afir- mação dos direitos desse segmento. Paulo Roberto Barbosa Ramos Promotor de Justiça Titular da Promotoria do Idoso de São Luís,da Associação Nacional dos Membros do Mi- nistério Público de Defesa dos Direitos dos Idosos e Pes- soas com Deficiência – AMPID e do Conselho Nacional dos Direitos do Idoso - CNDI 10 SEÇÃO I - CONCEITUAÇÃO DE DEFICIÊNCIA EM BUSCA DE UM CONCEITO DE PESSOA COM DEFICIÊNCIA1 Luiz Alberto David Araujo Resumo: O trabalho analisa as possibilidades e formas de se conceituar pessoa com deficiência a partir dos vetores constitucionais. Confronta as vantagens de um texto com perspectiva aberta e as dificuldades de sua aplicação, procurando mostrar que o texto fechado traria dificuldades de ampliação dos conceitos, impedindo a aplicação da proposta inclusiva constitucional. O texto propõe um temperamento das duas correntes, com o entendimento de que uma análise mais fechada serviria apenas como rol exemplificativo da questão, remanescendo a discussão aberta como regra a ser obedecida e como válvula de integração de novos grupos. Palavras-chave: pessoa com deficiência, pessoa portadora de deficiência, Convenção Internacional – ONU, definição de deficiência, texto aberto, texto fechado, princípios constitucionais. Abstract: This work intends to analyse the ways and possibilities to find the conception of person with disability, according to constitutional principles. The text mentions the advantages of an open-mind text and, at the same time, shows the difficulties of its application, trying to show how an “closed” text would hinder the ampliation of concepts, so, impeding the application of the including constitutional proposal. The text propose a combination of both doctrines, with the understanding that a “closer” analyse would just be useful as list of examples for the matter, still leaving open the discussion about rules to be followed and a way of integration of new groups. Key-words: Person with disability, International Convention (UN), Definition of disability, Closed text, Open text, Constitutional principles. 11 1. Introdução A questão da inclusão das minorias tomou relevo nos documen- tos internacionais e nacionais recentes. A história da inclusão convive com os movimentos democráticos e com a preocupação com a pluralidade de inte- resses da sociedade contemporânea. Questões recentes como minorias étnicas, culturais, de gênero, revelam uma aparente segmentação do movimento de inclusão, que pleiteia, no fundo, através de vários grupos, uma inclusão dos grupos vulneráveis na sociedade. Os grupos e interesses se revelam, cabendo ao Estado a harmonização de sua tutela, buscando a inclusão social de todos. No Brasil, o movimento de inclusão vem caminhando a passadas nem sempre uni- formes e nem sempre dentro da velocidade desejada. O papel da inclusão e da análise de seus obstáculos ou de formas para sua facilitação é uma das aborda- gens desse trabalho. Não se trata de discutir o tema de forma ampla mas, a partir da idéia de uma conceituação, tentar identificar caminhos para a efetivação da inclusão social das pessoas com deficiência. O comando constitucional principiológico, constante do Art. 3º, inciso IV, de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer formas de discriminação, hoje deveria reger a Administração Pública, o Poder Judiciário, o Poder Legislativo e as ações dos particulares. No entanto, verificamos ainda uma forte exclusão, quer com origem na pobreza, na falta de educação básica, no estabelecimento do preconceito, mui- tas vezes, ratificado pelos comportamentos da sociedade. O tema da pessoa com deficiência não foge desse quadro. Os problemas são estruturais e revelam uma dificuldade extra em relação a outros grupos: a multiplicidade de deficiências e suas origens, o que causa uma dificuldade de implementação de uma ação conjunta de proteção ao grupo. Os problemas pessoas com deficiência de audição são totalmente distintos daqueles com de- ficiência de visão, por exemplo. De toda forma, o Estado deve procurar, contor- nando as dificuldades, tratar de ajustar o temário para promover o bem de todos, dando seguimento ao comando constitucional principiológico do Art. 3º. Nesse estudo vamos procurar mostrar a evolução da proteção das pessoas com deficiência nos textos constitucionais, centrando nossa preocupação nos mais recentes e, a partir da previsão constitucional de 1.988, procurar encontrar uma definição, pelo sistema constitucional brasileiro, de pessoa com deficiência. 2. As Constituições brasileiras e a pessoa com deficiência Com exceção do princípio formal da igualdade, que estava presente nas Constituições Brasileiras, a questão da pessoa com deficiência ganha relevo na Constituição de 1.967. 12 Já encontrávamos na Constituição Brasileira de 1.934 alguma preocupa- ção com a pessoa com deficiência. O Art. 138 determinava que a União, Esta- dos e Municípios respeitadas as leis respectivas, assegurassem amparo aos des- validos, estimulasse a educação eugênica, protegesse a juventude contra toda exploração, bem como contra o abandono físico, moral e intelectual e adotas- sem medidas legislativas e administrativas tendentes a restringir a mortalidade e a morbidade infantis. Na Constituição de 1.937, encontramos, no Art. 127, norma próxima da Constituição anterior, mantendo-se o critério programático da prestação consti- tucional2. A Constituição de 1.946 menciona rapidamente a questão do trabalhador que se tornar inválido (Art. 157, inciso XVI). Na Constituição de 1.967, além da igualdade que estava presente em todas as constituições anteriores, traz o Art. 175, falando de educação de excep- cionais, em seu parágrafo quarto. Talvez seja a primeira menção explícita da condição de pessoas com deficiência, tratando-se das pessoas com deficiência mental que recebia a expressão “excepcional”. O maior avanço, no entanto, deu-se com a Emenda Constitucional nº 12, de 17 de outubro de 1.978, que cuidou do tema: Artigo único: É assegurado aos deficientes a melhoria de sua condição social e econômica especialmente mediante: I- educação especial e gratuita; II- assistência, reabilitação e reinserção na vida econômica e social do País; III- proibição de discriminação, inclusive quanto á admissão no trabalho ou ao serviço púbico e a salários; IV- possibilidade de acesso a edifícios e logradouros públicos. É inegável o avanço da Emenda Constitucional nº 12. Hoje, certamente, ela seria objeto de críticas se tivéssemos em mente o quadro atual da evolução, que criticaria fortemente o ensino segregado. Mesmo a terminologia “deficiente” já deixou de ser utilizada. No entanto, para 1.978 o avanço foi grande. O tema veio a lume constitucional e o debate começou a se instalar, revelando que a matéria exigia tratamento constitucional específico. Talvez o grande mérito da Emenda Constitucional nº 12 tenha sido o de sistematizar, em uma só Emenda, o rol de direitos específicos desse grupo de pessoas. O quadro se modifica sensivelmente em 1.988. O tratamento da pessoa com deficiência se altera, passando a um enfoque muito mais preocupado com a inclusão social. São reforçadas as regras que proíbem a discriminação, que 13 impedem o acesso aos serviços públicos e transportes. Na verdade, nada além do que o princípio da igualdade já reservava. O caráter didático da repetição tem força em nossa cultura e tem função própria e autônoma. Repetir significa deixar claro e evitar qualquer tipo de interpretação pouco progressista. Nesse particular, o constituinte de 1.988 tratou de repetir por diversas vezes a questão da igualdade voltada ao emprego, por exemplo. E, em relação à pessoa com deficiência, tratou de ressaltar a proibição de discriminação. No entanto, ainda há a necessidade de leis que implementem tais vetores constitucionais o que, ainda, encontra um certo obstáculo, passados quase vinte anos. A implementação dos valores constitucionais de 1.988 ainda não se efetivou, o que se verifica facilmente pela falta de acesso no ambiente urbano, pela existência ainda de dificuldades na educação inclusiva e, de outra forma, nas relações sociais que acabam dificultando a inclusão do grupo. Apresentado o quadro atual a partir de uma brevíssima referência consti- tucional, vamos passar ao conceito de pessoa com deficiência, objeto deste pequeno estudo, assim como a proposta de entendimento entre um critério mais estrito e um mais amplo. 3. A Constituição de 1.988 e sua terminologia O constituinte de 1.988 cuidou de utilizar a terminologia “pessoa portadora de deficiência”. Talvez fosse a forma mais inclusiva conhecida quando da elabora- ção do texto (já se passaram quase vinte anos!). Hoje haveria outros termos mais adequados como, por exemplo, “pessoas com deficiência”, expressão adotada neste trabalho. Já houve quem mencionasse a expressão “pessoas com necessi- dades especiais”. Nesse grupo de necessidades especiais, haveria a inclusão de tantos outros grupos vulneráveis que precisam de apoio e suporte por políticas públicas. Desta forma, a expressão não nos parece adequada. Como já observamos acima, vamos tratar do tema com a expressão “pesso- as com deficiência”, ressaltando que a Constituição da República Federativa do Brasil ainda se utiliza da expressão “pessoa portadora de deficiência”. A nomen- clatura, no entanto, já revela um avanço para o documento da época. A legislação infra-constitucional porém, não deu a efetividade que se imaginava com a clareza e velocidade esperadas. Deixamos, é verdade, a expressão “deficiente” no texto anterior para tratarmos de “pessoas portadoras de deficiência” como está ainda hoje formatada. Mas, em nenhum momento do texto constitucional encontra-se a definição de quem seria pessoa portadora de deficiência. Mesmo sendo um texto minucioso, com tantas repetições, especialmente em relação à igualdade, não entrou no campo específico da definição. Traz, é verdade, algumas diretrizes que podem ajudar na conceituação, vinculando o legislador infra-constitucional. Não 14 podemos deixar de atentar aos valores constitucionais na hora de fixar os concei- tos infra-constitucionais. Por tal razão, repetimos o princípio constante do Art. 3º, da Constituição, regra hermenêutica de importância para o tema, que será resgatado ao final, como instrumento para compreensão das conceituações propostas. Promover o bem de todos sem preconceito de origem, raça, sexo, idade e cor é regra que estará presente na interpretação do tema. Além disso, o princípio que assegura, como fundamento do Estado, a cidadania revela a necessidade de inclusão soci- al. Esses valores devem estar presentes em qualquer definição de pessoa com deficiência, como forma de dirigir o legislador infra-constitucional na tarefa de definir, pois tal atribuição é do legislador ordinário que, como afirmam as cons- tituições dirigentes, não está solto e sem qualquer vetor. Ao tratar do tema, deve-se limitar e aplicar a valoração constitucional constante dos princípios. Coube à doutrina iniciar a discussão do que se entendia por pessoa porta- dora de deficiência, pois a Constituição não definiu o grupo. A Lei nº 7.853/89 de caráter genérico não cuidou de definir quem seria pessoa portadora de defi- ciência. Traça a política para a pessoa com deficiência, cria um órgão para coordenação das ações do Estado de acompanhamento e implementação de políticas públicas do governo federal (CORDE) mas, não define quem é o obje- to de tal política. As primeiras definições são veiculadas por leis que tratam de assuntos específicos, como isenções para aquisição de veículos. Depois, encontramos definições tratadas por decreto regulamentar. O Decreto nº 914, de 6 de setem- bro de 1.993, ao regulamentar a Lei nº 7.853/89, tratou de definir quem seria pessoa portadora de deficiência, elencando as hipóteses do enquadramento. Ao definir deixou de fora outros grupos criando um critério fechado, dificultando a expansão do conceito. O referido Decreto foi alterado pelo Decreto nº 3.298, de 20 de dezembro de 1.999 que, em seu Art. 4º, definia quem seria pessoa portadora de deficiência. Mais uma vez houve a alteração do conceito pelo Decreto nº 5.296, de 02 de dezembro de 2004, desta vez regulamentando as Leis nº 10.048 e nº 10.098 de 2000. O Decreto parte de uma existência legal (definição do critério para isenção tributária da Lei nº 10.690, de 16.6.2003) e passa a definir quem seria pessoa portadora de deficiência, traçando hipóteses que caracterizariam defi- ciência. No Decreto nº 5.296/04, são pessoas portadoras de deficiência aquelas que possuem limitação ou incapacidade para o desempenho de atividade e se enquadrarem nas seguintes categorias (Art. 5º, § 1º e incisos): 15 a) deficiência física: alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da função física, apresentando-se sob a forma de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, ostomia, amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral, nanismo, membros com deformidade congênita ou adquirida, exceto as deformidades estéticas e as que não produzam dificuldades para o desempenho de funções; b) deficiência auditiva: perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas freqüências de 500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz e 3.000Hz; c) deficiência visual: cegueira, na qual a acuidade visual é igual ou menor que 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; a baixa visão, que significa acuidade visual entre 0,3 e 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; os casos nos quais a somatória da medida do campo visual em ambos os olhos for igual ou menor que 60o; ou a ocorrência simultânea de quaisquer das condições anteriores; d) deficiência mental: funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como: 1. comunicação; 2. cuidado pessoal; 3. habilidades sociais; 4. utilização dos recursos da comunidade; 5. saúde e segurança; 6. habilidades acadêmicas; 7. lazer; e 8. trabalho; e) deficiência múltipla - associação de duas ou mais deficiências; O Decreto regulamentar, pelo nosso entendimento, não poderia ter defi- nido quem é pessoa portadora de deficiência, ou seja, quem está enquadrado pelo benefício constitucional da proteção. No caso, somente a lei poderia criar direitos e obrigações. O Decreto teria apenas a função de operacionalizar a lei. Tanto os Decretos anteriores quanto o atual tratam de criar direitos, dizen- do quem se enquadra ou não no benefício. O Administrador poderia imaginar que as hipóteses do Decreto são exaustivas e indeferir a inscrição de alguém que, não se incluindo no Decreto tivesse deficiência como previsto pela Cons- tituição, dentro da valoração lá constante. A Administração Pública, no entanto, vem tratando de aplicar de forma singela a regra do Decreto, como se fosse um instrumento criador de direitos e obrigações. Como o enquadramento da pessoa implicará uma série de conseqüências (desde o direito a inscrever-se em vaga especial de concurso público como para requerer determinados benefícios previdenciários), a fixação de critério restritivo por Decreto em nada colabora para a inclusão do cidadão. A melhor interpretação, portanto, é que quem está albergado pelo Decre- to certamente se enquadra na prestação, o que não quer dizer que outras tantas situações não estariam enquadradas na condição de pessoa com deficiência. 16 Quer dizer que o Decreto regulamentar traria apenas uma parte dos enquadra- dos no conceito, ficando outros tantos com direito a tal inclusão. Desta forma, o Decreto regulamentar foi além de sua tarefa precípua, qual seja, tornar operacionalizável a lei. Ele foi adiante e definiu quem é pessoa com deficiência, o que a lei genérica (não a de escopo próprio, cuidando de tema específico) não fez, diga-se de passagem. Ao assim agir, ultrapassou os limites da legalidade, criando hipótese que contemplou direitos e obrigações por Decreto, sendo que o tema é reservado à lei. Ocorre que o Brasil é signatário da Convenção da Guatemala para a elimi- nação de todas as formas de discriminação contra as pessoas com deficiência, assinada em 1.999, ratificada, por manifestação do Poder Legislativo, e promul- gada pelo Decreto nº 3.956, de outubro de 2001. Trata-se de norma genérica sem escopo específico, que cuida da questão de forma ampla e sem qualquer finalidade específica. Não cuida apenas de isenção tributária ou de acessibilidade, mas revela o comportamento do Estado brasileiro diante de uma importante tarefa mundial, incorporando, na forma constitucional, o instrumento internacional à legislação ordinária. Isso significa que a norma vigente definidora de quem é pessoa portadora de deficiência é a constante da Convenção da Guatemala, ou seja: Para os efeitos desta Convenção, entende-se por: 1. Deficiência O termo “deficiência” significa uma restrição física, mental ou sensorial, de natureza permanente ou transitória, que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades essenciais da vida diária, causada ou agravada pelo ambiente econômico e social. Não podemos, portanto, desprezar o conceito legal trazido pela Conven- ção Internacional que tem status de lei ordinária. Como lei ordinária, incorporou- se ao sistema legislativo brasileiro, após a ratificação pelo Congresso Nacional e após a promulgação pelo Presidente da República. Desta forma, o conceito vi- gente de pessoa com deficiência é aquele adotado pela Convenção que, como se verifica, é genérico, e não é usado para uma determinada finalidade, como dito acima. A norma geral prepondera sobre a especial, razão da predominância do conceito sobre qualquer outro específico. Mas se o conceito legal é o previsto na Convenção, como assinado com propriedade Eugênia Augusta Gonzaga Fávero (2005, p. 152-174), como expli- car um Decreto regulamentar que não tem lei para a sua regulamentação (re- cordemos que o Decreto vai além dos seus limites, pois cria direitos e obriga- ções, matéria reservada à lei). Sendo assim, imaginamos que a melhor argumen- tação seria aquela que fixa o conceito legal na Convenção, como mencionado 17 acima e cuida do Decreto como uma manifestação da Administração Pública no sentido de reconhecer nos grupos indicados a condição de pessoa com defici- ência. A relação, no entanto, é exemplificativa, pois a interpretação só poderia favorecer ao grupo e não restringir o conceito protegido pela Constituição. A lei que trata da isenção de impostos para aquisição de veículo não tem o condão de tratar do tema de inclusão como um todo e atende a uma parte apenas da idéia desta inclusão. No momento, portanto, há o conceito da Convenção da Guatemala, um conceito específico para aquisição de veículos e um conceito determinado pelo Decreto nº 5.296/04 (que não regulamenta e lei da isenção mas, regulamenta as Leis nº 10.048/00 e nº 10.098/00 que cuidam da acessibilidade). 4. O Estatuto da Pessoa com Deficiência - Projeto de Lei do Senado nº 6 (substitutivo) de 2003 O Senado Federal, em tempo muito curto comparado com o andamento de outros projetos de lei, acaba de aprovar o Projeto de Lei nº 6, denominado Estatuto da Pessoa com Deficiência. A aprovação do Projeto provocou a preo- cupação da comunidade, que esperava debater o tema com mais amplitude. De qualquer forma, a matéria já está aprovada no Senado Federal. O conceito de pessoa com deficiência aparece no Art. 2º: Considera-se deficiência toda restrição física, intelectual ou sensorial, de natureza permanente ou transitória, que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades essenciais da vida diária e/ou atividades remuneradas, causada ou agravada pelo ambiente econômico e social, dificultando sua inclusão social, enquadrada em uma das seguintes categorias: I – Deficiência Física: a) alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando comprometimento da função física, apresentando- se sob a forma de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, ostomia, amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral, nanismo, membros ou face com deformidade congênita ou adquirida; b) lesão cerebral traumática: compreendida como uma lesão adquirida, causada por força física externa, resultando em deficiência funcional total ou parcial ou deficiência psicomotora, ou ambas, e que comprometem o desenvolvimento e/ou desempenho social da pessoa, podendo ocorrer em qualquer faixa etária, com prejuízos para as capacidades do indivíduo e seu meio ambiente; II – Deficiência Auditiva: a) perda unilateral total; 18 b) perda bilateral, parcial ou total média de 41 dB (quarenta e um decibéis) ou mais, aferida por audiograma nas freqüências de 500HZ, 1.000HZ, 2.000Hz e 3.000Hz; III – Deficiência Visual: a) visão monocular; b) cegueira, na qual a acuidade visual é igual ou menor que 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; a baixa visão, que significa acuidade visual entre 0,5 e 0,05 no melhor olho e com a melhor correção óptica; os casos nos quais a somatória da medida do campo visual em ambos os olhos for igual ou menor que 60º; a ocorrência simultânea de qualquer uma das condições anteriores; IV – Deficiência Intelectual: funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação no período de desenvolvimento cognitivo antes dos 18 (dezoito anos) e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como: a) comunicação; b) cuidado pessoal; c) habilidades sociais; d) utilização dos recursos da comunidade; e) saúde e segurança; f) habilidades acadêmicas; g) lazer; h) trabalho. V – Surdocegueira: compreende a perda concomitante da audição e da visão, cuja combinação causa dificuldades severas de comunicação e compreensão das informações, prejudicando as atividades educacionais, vocacionais, sociais e de lazer, necessitando de atendimentos específicos, distintos de iniciativas organizadas para pessoas com surdez ou cegueira; VI – Autismo: comprometimento global do desenvolvimento, que se manifesta tipicamente antes dos três anos, acarretando dificuldades de comunicação e de comportamento, caracterizando-se freqüentemente por ausência de relação, movimentos estereotipados, atividades repetitivas, respostas mecânicas, resistência a mudanças nas rotinas diárias ou no ambiente e a experiências sensoriais; VII – Condutas Típicas: comprometimento psicosocial, com características específicas ou combinadas, de síndromes e quadros psicológicos, neurológicos e/ou psiquiátricos, que causam atrasos no desenvolvimento e prejuízos no relacionamento social, em grau que requeira atenção e cuidados específicos em qualquer fase da vida; VIII – Deficiência Múltipla: associação de duas ou mais deficiências, cuja combinação acarreta comprometimentos no desenvolvimento global e desempenho funcional da pessoa e que não podem ser atendidas em uma só área de deficiência. § 1º Considera-se também deficiência a incapacidade conceituada e tipificada pela Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde – CIF. § 2º Entende-se como deficiência permanente aquela definida em uma das categorias dos incisos ou do parágrafo 1º deste artigo e que se estabilizou durante um período de tempo suficiente para não permitir recuperação ou ter probabilidade de que se altere, apesar de novos tratamentos. 19 § 3º As categorias e suas definições expressas nos incisos e parágrafo 1º não excluem outras decorrentes de normas regulamentares a serem estabelecidas pelo Poder Executivo, ouvido o Conselho Nacional da Pessoa com Deficiência. Primeiramente, o texto merece algum reparo formal. O § 3º permite ao Poder Executivo, ouvido o Conselho Nacional da Pessoa com Deficiência, in- cluir outras deficiências decorrentes de normas regulamentares a serem estabelecidas pelo Poder Executivo. Ou seja, volta-se à idéia de que o Poder Executivo por regulamento, possa criar direitos e obrigações. A regra do § 3º não merece ser acolhida porque apresenta possibilidade não contemplada pelo sistema constitucional. O poder regulamentar não pode chegar a ponto de criar obrigações ou direitos. Na forma como está, voltamos ao critério antes expendido e censurado de deixar o decreto regulamentar fazer o papel da lei. Se aprovado o Estatuto, como norma geral, irá modificar o critério previsto na Convenção da Guatemala, passando a ser o novo regente da questão. Verifi- ca-se que o Projeto de Estatuto trabalha com algumas aberturas, como a inclusão de deficiência e incapacidade conceituadas e tipificadas pela Classificação Inter- nacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde – CIF. No entanto, estamos diante de um texto predominantemente fechado, onde não se pode admitir ou- tros tipos de deficiência. A questão da fixação por um rol determinado favorece a aplicação clara da norma, mas colabora com o fechamento do sistema, dificultan- do a sua aplicação para outros grupos que poderiam estar incluídos no conceito. 5. A Declaração da ONU ou Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência Corroborando com a tendência de se manter a nomenclatura atual, o Bra- sil assinou a Convenção da ONU sobre os direitos das pessoas com deficiência. O texto está aguardando ratificação pelo Congresso Nacional e, uma vez apro- vado, deverá ser submetido ao Presidente da República para promulgação. Po- derá, inclusive, ser votado na forma como prescreve o Art. 5º, III, da Constitui- ção, ou seja, terá força de emenda à Constituição, porque se trata de um Trata- do de Direitos Humanos. Dentro dessa perspectiva, temos uma regra que hoje pode ser genérica (definição da Convenção); temos um projeto de lei já aprovado pelo Senado Federal, que especifica os motivos das deficiências, criando um modelo mais fechado, mas, no entanto, de mais fácil aplicação (apesar das restrições conceituais, impedindo que grupos não contemplados nas hipóteses fechadas sejam consi- derados pessoas com deficiência). E, aguardando votação, um documento inter- nacional assinado pelo Brasil. 20 A Convenção da ONU assim define deficiência: Artigo 1 [...] Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de natureza física, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas. Trata-se de documento aberto, permeável, que certamente permitiria a compreensão mais ampla do conceito definido pelo Estatuto. Ou seja, prevalecendo a Convenção da ONU, teremos um texto mais aberto e mais democrático. Importante, no entanto, afirmar que a aplicação seria um pou- co mais difícil, porque os exemplos são fluídos e permitiriam uma análise mais genérica (o que pode ser interessante, porque mais abrangente) da questão da deficiência. 6. Norma fechada ou norma aberta? Estaremos, certamente, diante de um conflito de leis no tempo, caso haja a aprovação do Projeto de Lei do Estatuto da Pessoa com Deficiência depois da aprovação da Convenção da ONU sobre os direitos das pessoas com deficiên- cia, dentro dos limites constitucionais. Prevalecerá o Estatuto da Pessoa com Deficiência, porque é norma genérica posterior. Ou, ao contrário, o Congresso Nacional se esforça para aprovar o Estatuto e o país, por sua representação internacional, assina A Convenção que depois de ratificada substituirá o Estatuto na parte do conceito. Logo se vê que há, no mínimo, uma tarefa complementar a ser elaborada, diante dos trâmites dos dois instrumentos. O objeto do trabalho não seria o de discutir qual seria a melhor definição, a contida no Estatuto da Pessoa com Deficiência ou a da Convenção da ONU. A idéia é tentar verificar qual é o critério mais adequado para o Brasil: uma aplica- ção genérica de um princípio ou uma cláusula mais fechada, com hipóteses mais determinadas? Ao escolher a prevalência do projeto de Estatuto (que segue, em linhas gerais, os modelos constantes dos Decretos regulamentares, com algumas nuances), estamos diante da escolha de um modelo fechado, de mais fácil aplicação. Ao escolher a Convenção da ONU (que segue hoje o modelo da vigente Convenção da Guatemala) estamos diante de um modelo mais permeável, mais aberto, permitindo a agregação de outras tantas deficiências que não estão contempladas. Inegável que a Administração Pública sentir-se-ia muito mais confortável com a aplicação de um modelo fechado, com cláusulas determinadas e, se possí- 21 vel, bem arrematadas de maneira a não se poder acrescentar. De outro lado, teríamos a certeza de que – presente hipótese de subsunção –, a pessoa com deficiência estaria facilmente contemplada. Num sistema de muita insegurança jurídica como o nosso poderia fornecer, para um país continental, roteiro seguro de aplicação da norma. Não são todos os Estados brasileiros que estão bem apare- lhados para a aplicação dos conteúdos, sendo que são milhares de pessoas de direito público que fazem seus concursos públicos e, para tanto, devem ter clara a idéia de quem é pessoa com deficiência para o efeito da vaga reservada, por exemplo. Ou, diante do grande número de pessoas com deficiência excluídas, de- sejamos um critério útil e de fácil aplicação para resolver a questão. Esse critério pode ser encontrado – apesar de fechado – na aplicação de uma listagem do que seria causa para enquadramento na situação de deficiência. No entanto, estaríamos dificultando o ingresso de outros grupos, o que impediria o Estado de cumprir o papel que lhe foi determinado pelo Art. 3º, da Constituição, qual seja, promover o bem de todos. O modelo aberto exigiria uma cultura da Administração Pública mais per- meável, com possibilidade de o administrador público decidir caso a caso, a partir de determinados parâmetros. Haveria necessidade de uma construção jurisprudencial mais forte. E, a partir da abertura normativa, o Poder Judiciário e a Administração poderiam cumprir o seu papel de efetivar os comandos consti- tucionais. Ao permitir a inclusão de novos grupos há o reconhecimento de que o Estado tem um papel de não exclusão e sim inclusão. O modelo aberto permite a permanente análise de portas de inclusão para o sistema. Os excluídos encon- trariam na norma infra-constitucional abertura suficiente para pleitear a inclusão e fugir do estigma apontado por Baumann (2005). O ideal seria a conjunção dos dois tipos de normas, servindo a idéia geral como princípio a ser aplicado (dentro de um sub-sistema legal da pessoa com deficiência) e outra mais específica, como uma das formas a definir pessoa com deficiência, sem, no entanto, entender a questão como taxativa. As idéias se complementariam, formando um sub-sistema que parte do genérico (conteúdo das declarações internacionais) para chegar no específico- exemplificativo, ou seja, nas regras do Estatuto (como hoje deveriam ser inter- pretadas as questões dos Decretos regulamentares). Compostas as duas idéias, formando o sub-sistema, teríamos a abertura das Convenções Internacionais, tão importante pela permeabilidade dos con- ceitos, autorizando a interpretação mais efetiva dos valores constitucionais bra- 22 sileiros; e, ao lado, teríamos a regra mais fechada, concretizando (mas não exau- rindo) as hipóteses, servindo, de guia efetivador dos direitos mas, não impedin- do que outras situações fossem contempladas diante de seu caráter exemplificativo e didático. A realidade da Administração Pública estaria contemplada, com um guia seguro para a aplicação da norma, desde que tivéssemos clareza de que o rol de pessoas com deficiência é exemplificativo. Ao mesmo tempo, teríamos a aber- tura para uma interpretação mais favorável e inclusiva de novos grupos com a regra genérica dos vetores internacionais. Notas 1 A organização da obra escolheu a terminologia pessoa com deficiência para referência. No entanto, continuamos acompanhando a terminologia da Constituição, pessoa portadora de deficiência. Para uniformização da temática, utilizaremos o termo escolhido pelos organizadores. 2 Artigo 127, da Constituição Federal de 1937. A infância e a juventude devem ser objeto de cuidados e garantias especiais por parte do Estado, que tomará todas as medidas destinadas assegurar-lhes condições física s e morais de vida são e de harmonioso desenvolvimento das suas faculdades. Bibliografia ARAUJO, Luiz Alberto David. A proteção das pessoas portadoras de deficiência, 3a. edição, Corde, Brasília, 2001. na internet: http://www.mj.gov.br/sedh/ct/corde/ dpdh/corde/protecao_const1.asp ARAUJO, Luiz Alberto David (organizador). Defesa dos Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiência, Revista dos Tribunais, São Paulo, 2005. BAUMANN, Sigmund. Vidas Desperdiçadas, Jorge Zahar, 2005. FÁVERO, Eugênia Augusta Gonzaga. Direito das Pessoas com Deficiência, Garantia de igualdade na diversidade, WVA, Rio de Janeiro, 2004. 23 24 SEÇAO II – DIREITO À IGUALDADE O DIREITO À IGUALDADE, À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COM DEFICIÊNCIA E À AUTONOMIA Lauro Luiz Gomes Ribeiro Resumo: Alguns temas, já bastante tratados na doutrina tradicional, merecem maior atenção quando direcionados às pessoas com deficiência, exigindo uma reflexão sobre as mudanças por que passa o mundo e a irreversível inclusão social deste segmento. Dentre eles, selecionamos para discorrer no presente texto, a igualdade no ponto de partida, que remete à igualdade de oportunidade e de condições reais de vida, a dignidade da pessoa humana, como valor intrínseco e distintivo de cada ser humano e que deve ser invocada em todas as ações judiciais e a autonomia, esta última voltada à real compreensão do conceito de acessibilidade. Palavras-chave: igualdade, dignidade da pessoa humana, liberdade, autonomia, acessibilidade, pessoa com deficiência. Abstract: Several subjects analyzed by the national doctrine deserve more attention when related to person with disability, demanding reflection on actual changes the world has passing through and on the promotion of social inclusion of this class. Regarding those subjects, we chose to be the object of this present study, the equally on the beginning, which mens equality on opportunities and on real life conditions, human dignity, as intrinsic and distinguish value of each human being, that should be invoked on all judicial claims and autonomy, regardin to the real meaning of acessibility. Keywords: equally, human dignity, liberty, autonomy, acessibility, person with disability. 25 1. Introdução O propósito deste estudo, dentro dos limites de espaço de que dispomos, é chamar atenção sobre alguns pontos que entendemos mais relevantes dentro de temas que são por demais conhecidos por todos. Parafra- seando Montesquieu, o que queremos é mais do que fazer ler, é fazer pensar. Reconhecemos que erramos ao imaginar que no momento em que vi- vemos é mais importante abandonar um pouco o discurso para seguir com uma ação mais efetiva, concreta; as duas coisas devem seguir, sempre, em paralelo, com a mesma relevância, ainda que uma ou outra mereça maior energia aqui ou ali. Nossa sociedade, infelizmente, ainda não está preparada para incorporar tantas novidades (para ela e não para nós que lidamos, vivenciamos e estuda- mos isto, quase diariamente) ou avanços nesta área. Desta constatação nos vem à mente duas lições importantes, para refle- xão: a primeira é de Max Weber sobre a “ética da convicção”, traduzida em uma linguagem simples como: “cumpro com minhas obrigações e as conseqüências decorrentes de minha ação, se não favoráveis, são de responsabilidade do mundo, da tolice dos homens ou até mesmo da vontade de Deus e não minha” e a “ética da responsabilidade” que, diferentemente, obriga a respondermos pelas previsíveis conseqüências de nossos atos1. Certamente, muitos adotam a primeira, o que não deixa de ser um avanço, mas dão de ombros com as conse- qüências negativas que ocorrem no mundo, dentre as quais pode estar inserida a exclusão social das pessoas com deficiência. Melhor seria, portanto, a segun- da, cada qual engajado em assumir sua parcela de responsabilidade com o que acontece a seu lado, em sua casa, na escola, no trabalho, na cidade, no mundo; em qual nos encaixamos, neste momento? Outra reflexão é sobre o nosso papel de contribuinte, como cultores do direito, para a formação de uma consciência sobre a responsabilidade social. Explicando melhor, diz Celso Antonio Bandeira de Mello (1981, p. 57-58) que um importante mecanismo garantidor da eficácia das normas constitucionais é a formação de uma consciência social (ao lado de uma consciência jurídica nacio- nal) sobre a obrigatoriedade do cumprimento das disposições constitucionais. Afirma Bandeira de Mello que o direito não se aplica pela força e sim pela coercibilidade, ou seja, a possibilidade de coação ou, em outras palavras, ele se aplica, via de regra, pela convicção das pessoas de que aquelas regras devem ser cumpridas. Não basta que estejam escritas em um diploma legal, necessitan- do a criação de uma consciência social da sua obrigatoriedade, o que faz emer- gir a relevância do trabalho de todos aqueles que estão, de alguma forma, en- 26 volvidos com o tema das pessoas com deficiência, expondo idéias e discutindo questões relevantes, fazendo a interface entre o mundo do ser e o mundo do dever ser. Também aqui é um chamamento a todos para exporem idéias, dúvi- das, receios, colaborando para a formação da sobredita consciência social. 2. Igualdade no ponto de partida Muito já foi escrito sobre o consagrado princípio da igualdade, com suas vertentes da igualdade material e formal, resumidamente explicitadas em nosso sistema jurídico como sendo: a) igualdade formal, aquela que ilumina o Art. 5º da Constituição, ou seja, direitos fundamentais reconhecidos a todos, em igualdade de condições; a exi- gência de igualdade na aplicação do direito ou, como sintetiza Canotilho, exe- cução das leis sem olhar às pessoas (Canotilho : 1998, p. 399), valorizado no limiar das Revoluções Americana (1776) e Francesa (e respectiva Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão – 1789), como reflexo da exigência da garantia da liberdade e de um Estado-Mínimo, em substituição do Absolutismo e à sociedade estamental, mas que foi criticado, com o passar dos tempos, por considerar o indivíduo como uma abstração, não levando em conta sua singula- ridade e, b) igualdade material, consubstanciada na exigência de uma sociedade livre, justa e solidária, que promova o bem de todos, sem preconceitos e discri- minações de quaisquer espécies (Art. 3º da Constituição), quer dizer, igualdade dirigida ao legislador, que precisa criar um direito igual para todos – para os indivíduos com as mesmas características deve-se prever, através da lei, igual situação jurídica, mas sem limitar-se à universalização, que pode ser discriminatória, no sentido da tentativa de redução das perspectivas de uns em benefício de outros: toda pessoa com deficiência deve estudar em escola só para elas – ou seja, a igualdade perante a lei será insuficiente se não vier acompanhada da igualdade na própria lei, que considera o indivíduo em concreto, com suas particularidades2. A dificuldade, todos sabemos, é identificar quem é igual e quem é dife- rente, o que requer valoração ligada a momentos históricos, fatores culturais e, principalmente, valores sociais previstos na Constituição, havendo vários me- canismos apontados na doutrina, que têm como critério basilar a proibição do arbítrio3, é dizer, haverá violação ao princípio da igualdade quando a desigualda- de de tratamento for arbitrária. Por todos, mostra-se suficiente o critério de identificação de discriminação violadora do princípio da igualdade o apontado por Celso Antonio Bandeira de Mello, na obra Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, de leitura obrigatória e que, em apertada síntese, pode ser assim 27 resumido: deve ser levado em consideração o critério adotado como fator de desigualação (indagar-se: é razoável?) e a correlação lógica entre este fator de desigualação e a disparidade de tratamento, respeitados os valores constitucio- nalmente protegidos. Respondidas positivamente as indagações e a discrimina- ção, em tese, será aceita e legal. Sabemos que haverá situações especiais, que exigirão análise especial, motivo pelo qual, o mais correto é avaliar caso a caso, segundo os critérios referidos. Queremos apontar aqui outra abordagem, lembrada por Canotilho (1998, p. 402-403), que é da igualdade de oportunidades e de condições reais de vida, pilar do Estado de direito democrático social. Não é idéia nova, mas está em evidência em razão da conflituosidade global em que está inserida a sociedade na atualidade – e que se caracteriza como sendo uma grande competição por bens escassos – e significa a aplicação da regra de justiça social diante de uma situação onde se encontram várias pessoas em competição para a obtenção de um objetivo único. É explicada por Bobbio (2000, p. 30-31) nos seguintes termos: o princípio da igualdade de oportunidades, quando elevado a princípio geral, tem como objetivo colocar todos os membros daquela determinada sociedade na condição de participar da competição pela vida, ou pela conquista do que é vitalmente significativo, a partir de posições iguais. Esta idéia é relevante no ambiente das pessoas com deficiência para eli- minar o estigma de se ter a deficiência como sinônimo de ineficiência, de doen- ça, de incapacidade total. O que se apresenta aos nossos olhos é a exigência de garantia, real e efetiva4, de todos nos pontos de partida, uma igualdade de oportunidades “sustentável”, para utilizar um conceito da moda, cabendo a cada qual limitar seu ponto de chegada e, neste aspecto, permitimo-nos lembrar marcante passagem da obra “Emílio”, de Rousseau (1999, p. 45), que na metade do Século XVIII já advertia: Conhecemos, pois, ou podemos conhecer o primeiro ponto de onde cada um de nós parte para chegar ao grau comum de entendimento: mas quem conhece a outra extremidade? Cada qual avança mais ou menos segundo seu gênio, seu gosto, suas necessidades, seus talentos, seu zelo e as oportunidades que tem para se entregar a ele. Que eu saiba, nenhum filósofo até agora foi suficientemente ousado para dizer: eis o termo aonde o homem pode chegar e que não seria capaz de ultrapassar. Ignoramos o que nossa natureza nos permite ser; nenhum de nós mediu a distância que pode haver entre um homem e outro homem. Qual é a alma baixa que esta idéia nunca excitou e que alguma vez não disse para si mesma em seu orgulho: quantos já passei! Quantos ainda posso atingir! Por que meu igual iria mais longe do que eu? 28 É triste constatar como nossa civilização está perdendo ao esquecer todas as lições do passado, pois tudo o que discutimos hoje já foi tratado, de forma tão ou mais aprofundada pelos grandes intelectuais e filósofos da antiguidade. A partir da estrutura que sustenta o princípio da igualdade é desenvolvida a idéia de políticas sociais de apoio e promoção de grupos socialmente desprivilegiados, ou seja, são adotadas medidas tendentes à concretização da igualdade material, dentre elas as ações afirmativas ou discriminações positivas (de que é espécie o sistema de cotas), concebidas pioneiramente pelo direito americano e que são entendidas como políticas públicas e privadas voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, idade, origem nacional e com- pleição física e que também apresentam um conteúdo pedagógico de transfor- mação cultural e social relevantes, demonstrando a utilidade e necessidade de observância do pluralismo e diversidade no convívio humano5. 3. Dignidade da pessoa humana com deficiência Para tratar da dignidade da pessoa humana é imperiosa uma referência, ainda que rápida, aos direitos humanos, expressão aqui adotada como aquelas posições jurídicas que se reconhecem a todo ser Humano como tal, sem uma preocupação em relacioná-los com determinada ordem constitucional sendo, por isto mesmo, de validade universal, de caráter trans e supra-nacional, para todos os indivíduos e todos os povos, via de regra atrelados a documentos próprios de direito internacional. Como anotamos em outro estudo6, a noção de direitos inerentes à pessoa humana tem fronteiras em momentos históricos diferentes, pela matiz da formu- lação jurídica, através da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 da ONU (dada sua vocação eminentemente universal, apesar dos demais documen- tos internacionais já conhecidos, como o Bill of Rights da Revolução Inglesa, de 1689, a Magna Carta de 1215, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789) e pelas raízes do entendimento da proteção internacional dos direitos humanos, hipótese em que retroagimos a vários e vários séculos, em companhia de movimentos sociais, políticos, correntes filosóficas distintos7. Conseqüentemente, é correto afirmar que as idéias sobre os direitos humanos são tão antigas quanto a própria história da civilização e estão atreladas à dignidade da pessoa humana e à luta contra todas as formas de dominação, exclusão, opressão e discriminação e, mais recentemente, fruto das dramáticas conseqüências da Se- gunda Guerra Mundial (1939-1945), com a concepção de bem comum que pressu- põe a emancipação de todo o ser humano e em todas as suas facetas, independen- temente da cultura ou do ambiente físico em que se encontre, o que se convencionou 29 denominar de a “universalidade” dos direitos humanos, é dizer, “inerente a todo ser humano, em meio à diversidade cultural” (Trindade, 1997, p. 19). Afirma o sofista Protágoras que “o homem é a medida de todas as coisas”, de maneira que deve ocupar a posição mais proeminente no mundo dos fatos e para o mundo do direito deve ser o valor supremo da ordem jurídica, preexistindo até mesmo a uma criação constitucional. Fábio Konder Comparato (1999, p. 1-4) explica esta proeminência a partir de três vertentes: no campo religioso através da afirmação da fé monoteísta, com a criatura humana ocupando posição de destaque na ordem da criação, com poderes sobre “os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra (Gênesis 1,26)”; no campo filosófico, cuja principal indagação é: “quem é o homem?” e cuja formu- lação já aponta para singularidade deste ser, “capaz de tomar a si mesmo como objeto de reflexão” e, por fim, a justificativa científica apegada à descoberta do processo de evolução dos seres vivos, tendo o ser humano como “o ápice de toda a cadeia evolutiva das espécies vivas. A própria dinâmica da evolução vital se organiza em função do homem”. No âmbito das pessoas com deficiência, não custa lembrar, tais pessoas receberam tratamento diverso, que foi da exclusão social total ao atual patamar da proposta de inclusão, passando por períodos de institucionalização e de integração (a deficiência é tida como um problema da própria pessoa que a possui e por isso cabe unicamente a ela capacitar-se para viver em sociedade). O pós-Segunda Guerra aqui também foi um marco, especialmente pela le- gião de mutilados que ela produziu. Com a era da produção industrial e do consumo as pessoas com deficiência conviveram com as concepções de pessoas “úteis” e “inúteis” e com as idéias de habilitação/reabilitação, de paciente/doente, de incapaz e dependente de cuidados de terceiros (como é comum a uma pessoa “doente”). A partir dos anos oitenta há um avanço qualitativo no trato internacional deste tema, especialmente pelas Nações Unidas e suas agências, a Organização Internacional do Trabalho e a Organização Mundial de Saúde, despertando as pessoas com deficiência para uma reivindicação mais vigorosa de seu papel de cidadão, em igualdade de condições com seus pares8. No Brasil, o marco está fincado na Constituição de 1988, seguindo-lhe a Lei nº 7.853/89, que dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, sua integração social, define crimes e dá outras providências e, também, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, embora em 1978 tenha sido editada a Emenda Constitucional nº 12, assegurando alguma melhoria de condição social e econômica a este segmento. 30 Tratando da dignidade da pessoa humana, vale lembrar o poeta John Donne que no século XVII ensinava: “homem algum é uma ilha completa em si mesma, todo homem é um fragmento do continente, uma parte do oceano” ou seja, para se chegar à completude é preciso a presença de todos seres huma- nos, posto o homem não consegue viver isoladamente, uma vez que depende dos outros. Todos os homens devem receber tratamento igualitário, sem distin- ção em razão de qualquer característica física ou psíquica, pelo simples fato de ser humano. Luis Garcia San Miguel, citado por Maria Cristina de Souza Alvin afirma, em síntese, que todo homem tem dignidade, porque possui um valor intrínseco ao seu ser, pelo simples e único fato de ser homem; o que tem um preço pode ser substituído por alguma coisa equivalente; já a dignidade, por ser superior a todo preço, não permite nenhuma equivalência: dignidad de la persona quiere decir que ésta tiene valor en sí misma, independientemente de cualquier circunstancia o cualidad interna o externa. Por tanto, independientemente de sua raza, credo, ideología, sexo, clase social, nacionalidad, etc.; y también independientemente de su conducta, bueno o mala, heroica o delictiva. (ALVIN, p. 70) É a dignidade da pessoa humana que insere o indivíduo no centro das preocupações do universo, como anota Giovanni Pico Della Mirandola, no início de sua obra, ao afirmar categoricamente que “nada via de mais admirável do que o homem”. Mirandola (2001, p. 49 e 53) também contempla a dignidade como possibilidade de livre arbítrio do ser humano, porque, ao homem o Pai teria dito: “não constrangido por nenhuma limitação, determina-la-ás para ti, segundo o teu arbítrio, a cujo poder te entreguei”. Neste passo, vale transcrever interessante conceito proposto por Ingo Wolfgang Sarlet (2007, p. 62): a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. Portanto, é correto afirmar, em apertadíssima síntese, que da idéia de dignida- de da pessoa decorre uma gama de direitos fundamentais que podem ser classifica- dos em civis, políticos e sociais (Matteucci, 2000, p. 354), atrelados ao homem: a) como pessoa humana, temos as liberdades clássicas: pessoal, de pensa- mento, de religião etc. e que obrigam o Estado a uma atitude de não-interven- ção, de abstenção; 31 b) como pessoa política, envolve a liberdade de participação, de associa- ção nos partidos, de direitos eleitorais, implicando numa liberdade ativa de par- ticipação na definição dos objetivos políticos do Estado, dentro do âmbito da democracia; c) como homem social, temos as liberdades positivas ou concretas: direi- tos econômicos e sociais (direito ao trabalho, à assistência, à educação, à saúde, dentre outros), o que resulta na exigência de uma ação ativa do Estado ao garantir ao cidadão estas condições mínimas para uma vida digna, quer dizer, uma vida que valha a pena ser vivida. Para Sarlet (2007, p. 86-87), Com efeito, sendo correta a premissa de que os direitos fundamentais constituem – ainda que com intensidade variável – explicitações da dignidade da pessoa, por via de conseqüência e, ao menos em princípio (já que exceções são admissíveis, consoante já frisado), em cada direito fundamental se faz presente um conteúdo ou, pelo menos, alguma projeção da dignidade da pessoa e conclui: a dignidade da pessoa humana, na condição de valor (e princípio normativo) fundamental que ‘atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais’, exige e pressupõe o reconhecimento e proteção dos direitos fundamentais de todas as dimensões (ou gerações, se assim preferimos). Assim, sem que se reconheçam à pessoa humana os direitos fundamentais que lhe são inerentes, em verdade estar-se-á negando-lhe a própria dignidade. É exatamente esta a posição da pessoa com deficiência, pela simples condição de “pessoa”. Insistimos nesta abordagem porque acreditamos que essa idéia da dignidade da pessoa humana, como fundamento de nosso Estado De- mocrático de Direito (Art.1º, III, da Constituição), deva sempre dar arrimo às postulações judiciais. Isso irá suplantar as corriqueiras alegações fazendárias de insuficiência de orçamento, discricionariedade administrativa e outras tantas co- nhecidas, além de sua base constitucional, que permite maior diálogo com as instâncias superiores. E mais, será também a dignidade da pessoa humana um bom argumento para sustentar-se a aplicação, nesta área, do princípio da “proibição de retroces- so social”. Explicamos melhor: tem a doutrina constitucional européia, especial- mente a portuguesa, pelas mãos de Canotilho, tem sustentado que o princípio da democracia econômica e social aponta para a proibição do retrocesso social, ou seja, aqueles direitos sociais adquiridos pela comunidade – a exemplo da prestação de saúde, do subsídio de desemprego – não podem ser mais elimina- dos, sem sua substituição por outro de igual eficácia, pena de caracterizar viola- ção ao princípio da proteção da confiança, consectário do princípio do Estado 32 de Direito. Conseqüentemente, haverá inconstitucionalidade de todas as medi- das inequivocamente ameaçadoras do padrão de prestação estatal já alcançado. É um limite jurídico do legislador e uma obrigação ao administrador público de continuação de uma política congruente com estes direitos assegurados. Diz Canotilho (1998, p. 326-327), a respeito: O princípio da proibição do retrocesso social pode formular-se assim: o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efectivado através de medidas legislativas (‘lei de segurança social’, ‘lei do subsídio de desemprego’, ‘lei do serviço de saúde’) devem considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática numa ‘anulação’, ‘revogação’ ou ‘aniquilação’ pura e simples desse núcleo essencial. Entre nós, Luis Roberto Barroso (2003, p. 158-159) chama a atenção para esta idéia, que começa a ganhar força na doutrina constitucional brasileira, afirmando: Por este princípio, que não é expresso mas decorre do sistema jurídico- constitucional, entende-se que se uma lei, ao regulamentar um mandamento constitucional, instituir determinado direito, ele se incorpora ao patrimônio jurídico da cidadania e não pode ser arbitrariamente suprimido. Nessa ordem de idéias, uma lei posterior não pode extinguir um direito ou uma garantia, especialmente os de cunho social, sob pena de promover um retrocesso, abolindo um direito fundado na Constituição. O que se veda é o ataque à efetividade da norma, que foi alcançada a partir de sua regulamentação. Assim, por exemplo, se o legislador infraconstitucional deu concretude a uma norma programática ou tornou viável o exercício de um direito que dependia de sua intermediação, não poderá simplesmente revogar o ato legislativo, fazendo a situação voltar ao estado de omissão legislativa anterior. De notar que este argumento pode ser bastante útil e forte para uma pro- vidência administrativa (por exemplo, Inquérito Civil) ou judicial, quando há mudança legislativa em desfavor das pessoas com deficiência, por exemplo quando elimina programas de transporte ou de saúde que estavam atendendo a contento este segmento, por questões meramente políticas, no sentido negativo do termo. E para aqueles interessados em discussões mais acadêmicas, o pós-positivismo aponta para o desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais erguida sobre o fundamento da dignidade humana. Esse pós-positivismo é marco filosófico de uma transformação pelo qual passa o constitucionalismo contemporâneo, que se convencionou denominar de neoconstitucionalismo, e que traz a reboque a questão da constitucionalização do direito (os valores, os comportamentos, os fins públicos adotados nos princípios e regras da Constituição passam a condicionar a validade e o sentido a ser empregado nas disposições do direito infraconstitucionais, por exemplo no Direito Civil, no Direito Penal etc.)9. 33 4- Autonomia da pessoa com deficiência Neste tópico trataremos, basicamente, da noção de autonomia como ele- mento de extrema importância para a garantia de liberdade, igualdade e digni- dade das pessoas com deficiência10 e os reflexos que daí decorrem sobre o conceito legal de acessibilidade, conforme o Art. 2º, I, da Lei nº 10.098/00: – acessibilidade: possibilidade e condição de alcance para utilização, com segurança e autonomia, dos espaços, mobiliários e equipamentos urbanos, das edificações, dos transportes e dos sistemas e meios de comunicação, por pessoa portadora de deficiência ou com mobilidade reduzida. Preocupa-nos e estimula a reflexão o motivo que levou o Poder Executi- vo – Presidência da República –, por meio do Decreto nº 5.296/04, a alterar tal conceito, no Art. 8º: Art.8º – Para os fins de acessibilidade, considera-se: I – acessibilidade: condição para utilização, com segurança e autonomia, total ou assistida, dos espaços ... O que está por trás desta sutileza? Seriam bons propósitos? Era necessária a regulamentação da Lei nº 10.098/00, que continha elementos necessários e suficientes para sua aplicação e cujo texto não a exigia (Art. 27 Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.)? A Lei nº 10.048/00 a requeria, mas por ser anterior àquela e não específica sobre acessibilidade, como é a Lei nº 10.098/00, não deve prevalecer sobre esta (critérios cronológico e especialidade). O primeiro aspecto a considerar é a própria concepção de autonomia, no contexto jurídico, que pode não corresponder ao não-jurídico, da engenharia ou arquitetura, mas que deve prevalecer numa tarefa interpretativa. O que quere- mos referir é que um conceito exógeno (a exemplo da engenharia), ao ser introduzido no texto legislativo, deve ser interpretado no sentido que adquire por força de sua inserção no sistema legal. A palavra autonomia deriva do grego autos = si mesmo e nomos = lei, mode- lo a seguir, sendo entendida como a capacidade de auto-determinação ou, na ver- são dos dicionaristas, a “faculdade de se governar por si mesmo (...) Propriedade pela qual o homem pretende poder escolher as leis que regem sua conduta”11. Este sentido é exaltado por Kant, que o insere como integrante da con- cepção de liberdade, esta última, para ele, um valor supremo do homem e que o coloca acima do mundo dos fenômenos, como anota Vicente Ráo (1958, p. 75): “O homem é livre, enquanto ele próprio se determina de conformidade com a lei moral, que consiste em um princípio absoluto, implícito em seu pró- prio ser”. 34 É a vontade não heterodeterminada e sim autodeterminada a que alude Norberto Bobbio (2000, p. 51) ao discorrer sobre a liberdade positiva: a situação na qual um sujeito tem a possibilidade de orientar seu próprio querer no sentido de uma finalidade, de tomar decisões, sem ser determinado pelo querer de outros. Essa forma de liberdade é também chamada de autodeterminação ou, ainda mais propriamente, de autonomia (...) indica, ao contrário, a presença de algo, ou seja, de um atributo específico de meu querer, que é precisamente a capacidade de se mover para uma finalidade sem ser movido (...) quando se diz que autodeterminar-se significa não ser determinado por outros, ou não depender dos outros para as próprias decisões, ou determinar-se sem ser, por sua vez, determinado12. Para Maria Garcia (2004, p. 21) a autonomia está presa à concepção de dignidade da pessoa humana, quando define esta última como correspondente “à compreensão do ser humano na sua integridade física e psíquica, como auto- determinação consciente, garantida moral e juridicamente”13. Portanto, para o mundo do direito, a autonomia está presa à idéia de liberdade e de dignidade humana, valores absolutos, constitucionalmente pro- tegidos (Arts.1º, III; 3º, I; 5º, caput, inciso XV, dentre outros). E dentro de uma concepção sistêmica que caracteriza o nosso ordenamento jurídico, lembrando a lição de Eros Grau14 de que não se interpreta o direito ou qualquer texto normativo em pedaços, em tiras e, sim, no seu todo, para a interpretação do direito à autonomia devem ser levadas em conta, dentre ou- tros diplomas legais, as diretrizes estabelecidas na Lei nº 7.853/89. Na aplicação e interpretação da referida lei, observar em caráter prioritário, os valores básicos da igualdade de tratamento e oportunidade, da justiça social, do respeito à dignidade da pessoa humana, do bem-estar (Arts. 1º e 2º), o que está reforçado pelas disposições do Decreto nº 3.298/99, que definem como princípios da Política Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiên- cia, em consonância com o Programa Nacional de Direitos Humanos, dentre outros: o desenvolvimento de ação conjunta do Estado e da sociedade civil para a inclusão; o estabelecimento de mecanismos e instrumentos legais e operacionais para assegurar o exercício pleno e efetivo dos direitos básicos que propiciem o bem-estar pessoal, social e econômico e o respeito às pessoas com deficiência, que devem receber igualdade de oportunidades na sociedade, sem privilégios ou paternalismo (Art.5º). Também a Convenção da Guatemala impõe o trabalho prioritário dos Estados Partes na capacitação das pessoas com deficiência de molde a “garantir o melhor nível de independência e qualidade de vida”, além da exigência de adaptação dos edifícios, veículos e instalações (Art. III, itens 2.b e 1.b, respecti- 35 vamente), tudo com vistas a reduzir a discriminação, definida como toda dife- renciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência, antecedente de defici- ência, conseqüência de deficiência anterior ou percepção de deficiência pre- sente ou passada, que tenha o efeito ou propósito de impedir, anular o reco- nhecimento, gozo ou exercício por parte das pessoas portadoras de deficiência de seus direitos humanos e suas liberdades fundamentais (Art. I.2). Nesta senda, a autonomia deve ser interpretada como o domínio absoluto do espaço físico e/ou dos sistemas e meios de comunicação, com independência, liberdade de escolha e dignidade, o que se antagoniza com qualquer pretensão reducionista a esta “liberdade com dignidade”, como por exemplo o usuário de cadeira de rodas sujeitar-se (ou depositar toda confiança) de ser descolado (carre- gado) escada acima/abaixo por funcionários de uma repartição pública (alguém estranho), porque o local tem barreiras arquitetônicas de difícil superação, com todos os riscos que uma queda pode ocasionar (isto sem se esquecer dos prejuí- zos à integridade física do funcionário que carrega a pessoa e a cadeira de rodas – reflexos ao seu meio ambiente de trabalho); transporte coletivo adaptado com sistema de elevador operado por terceiro (motorista/cobrador); pessoa cega conduzida pelo braço por estranhos em espaços de uso público. E quando os funcionários faltam ao trabalho ou estão temporariamente ausentes de seus postos pelos motivos os mais variados? E quando o “elevador” do ônibus está quebrado ou o trânsito do local for muito intenso, inviabilizando a parada por alguns minutos para a operação do elevador? Às favas a liberdade e a dignidade da pessoa com deficiência? As situações excepcionais (devemos admitir que existem), assim devem ser tratadas e bem justificadas e nunca como regra; o provisório que se transforma em definitivo. A tecnologia está posta para permitir a autonomia (liberdade com digni- dade), na perspectiva do princípio do desenho universal, através de ônibus de piso baixo, elevadores que substituem os funcionários “carregadores”. Por isso, a legislação prevê as ajudas técnicas15 (qualquer elemento que facilite a autono- mia pessoal ou possibilite o acesso e o uso de meio físico – Art. 2º, VI, da Lei nº 10.098/00). A este respeito, remetemos o leitor ao texto da arquiteta Maria Elisabete Lopes, que também integra esta obra, onde é melhor analisada a pro- posta de desenho universal e de onde destacamos o seguinte trecho: Afinal, não basta fazer ‘rampinha’. É preciso pensar como, por quem serão usadas, e como o meio físico pode limitar o acesso a elas. Uma adequação mal feita é pior do que a sua inexistência, uma vez que pode se tornar uma referência equivocada, ampliando riscos, multiplicando e perpetuando erros. Este é o sentido que devemos extrair do texto normativo e pelo qual devemos continuar combatendo na luta pela inserção das pessoas com defici- 36 ência na sociedade, afastando o sentimento de incapacidade, de dependência de terceiros (associação entre deficiência e doença) ou de ineficiência que cos- tuma acompanhar a vida dessas pessoas. Foi assim também que decidiu o Superior Tribunal de Justiça ao apreciar recurso em Mandado de Segurança impetrado pela deputada estadual Célia Leão (usuária de cadeira de rodas), contra ato do Presidente da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo e que a certa altura afirma que se há impos- sibilidade arquitetônica absoluta de acesso da impetrante à tribuna da Assem- bléia, que seja designado, como local de tribuna, outro espaço acessível a ela e aos demais parlamentares16. Não bastasse tudo isto, cabe ainda destacar, sem maior aprofundamento, para não fugirmos de nossa proposta inicial, a ilegalidade de tal medida. Com efeito, sabemos que o Decreto nº 5.296/04 em causa, como regulamento exe- cutivo, é expedido para que se dê fiel observância das leis e, como conseqüên- cia, deve seguir fielmente os limites estabelecidos no ato legislativo que explicita, estando preso como a sombra ao corpo, ao texto da lei (Lei nº 10.098/00). A lição de Vicente Ráo (1958, p. 354) põe pá de cal na questão: Ao exercer a função regulamentar, não deve, pois, o Executivo, criar direitos ou obrigações novas, que a lei não criou; ampliar, restringir ou modificar direitos ou obrigações constantes de lei; ordenar ou proibir o que a lei não ordena nem proíbe; facultar ou vedar por modo diverso do estabelecido em lei; extinguir ou anular direitos ou obrigações que a lei conferiu; criar princípios novos ou diversos; alterar a forma que, segundo a lei, deve revestir um ato; atingir, alterando-o por qualquer modo, o texto ou o espírito da lei. Ou seja, não pode o Decreto alterar o conceito legal de acessibilidade17, com isto modificando substancialmente seu significado e o espírito da lei regulamentada. Desta forma, voltando à indagação inicial, temos que é absolutamente incompatível a associação feita pelo Decreto nº 5.296/04 de autonomia TOTAL OU ASSISTIDA, é dizer, assistência, aqui, é contraditória ao conceito legal de autonomia e, sabemos nós, que essa assistência poderá representar, exatamen- te, as situações que referimos alhures: rampas inadequadas, mas com auxílio de um funcionário; falta de piso podotátil, substituído por um funcionário-guia; sistemas motorizados conduzidos por terceiros substituindo elevadores, plata- formas elevatórias, etc.. Estes são os pontos sobre os quais incitamos os leitores interessados a refletir e debater. Concluímos reproduzindo, e reconhecemos a absoluta falta de criatividade, trecho final de outro texto que tivemos oportunidade de escrever (Ribeiro, p. 97) que reflete bem nosso sentimento: É tempo de mudanças e somos obriga- dos a reconhecer que apesar de já se ter avançado muito na efetivação dos 37 direitos das pessoas com deficiência, resultado do aprimoramento legislativo e do trabalho hercúleo de vários segmentos sociais, precisamos criar a consciência de que estamos no século XXI e que é muito mais agradável e bonito assistir a um desfile de carnaval, que prima pela diversidade, pela igualdade entre todos quando pisam na avenida, que a uma monótona parada militar, uniforme e hierarquizada, que a diversidade é a ordem do dia e que somos todos muito mais que paulistas, cariocas, baianos, brasileiros, pois somos cidadãos do mundo e como tais devemos afastar os fantasmas do preconceito e da discriminação negativa para reverenciar a igualdade e não a uniformidade (“somos o mesmo, mas não os mesmos” já disse o líder das “Novas Vozes Africanas”, Shafil Abu- Tahir); a tolerância sem conivência; a solidariedade sem paternalismo e a diver- sidade sem desigualdade, na busca pela paz e a felicidade. Notas 1 São as palavras de Weber: “O partidário da ética da convicção só se sentirá ‘responsável’ pela necessidade de velar em favor da chama da doutrina pura, a fim de que ela não se extinga, de velar, por exemplo, para que se mantenha a chama que anima o protesto contra a injustiça social”, ao passo que o partidário da ética da responsabilidade “contará com as fraquezas comuns do homem (pois, como dizia procedentemente Fichte, não temos o direito de pressupor a bondade e a perfeição do homem) e entenderá que não pode lançar a ombros alheios as conseqüências previsíveis de sua própria ação” (Ciência e Política, Duas Vocações, p.113/114). 2 A sempre citada idéia de Aristóteles, afirmada por Rui Barbosa, na Oração aos Moços, de que se deve tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam, para atingir a igualdade. 3 A proibição do arbítrio deve vir presa a critérios objetivos: haverá violação arbitrária quando a disciplina jurídica não se basear: a) em fundamento sério; b) não tiver sentido legítimo: c) estabelecer diferenciação jurídica sem fundamento razoável. 4 Ricardo Tadeu Marques da Fonseca, com suporte em Arion Sayão Romita (O acesso ao trabalho das pessoas deficientes perante o princípio da igualdade, Revista Gênesis, nº15), trabalha a idéia de igualdade real, um avanço à idéia de igualdade material, “calca um passo adiante rumo à especificidade da dignidade humana, especificidade que se corporifica na atenção às minorias, uma vez que a lei da maioria, formalmente justa, transmudou-se em substancialmente injusta, por excluir do conceito de maioria a infindável diversidade humana” (O Trabalho da Pessoa com Deficiência – Lapidação dos Direitos Humanos: O Direito do Trabalho, Uma Ação Afirmativa, p.148). 5 A este respeito ver Joaquim Barbosa Gomes, Ação Afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade, Renovar, Rio de Janeiro. 6 Direitos Humanos e a Dignidade da Pessoa Com Deficiência, Revista de Direito Social, nº21, RS: Notadez. 7 Neste sentido ver Antonio Augusto Cançado Trindade, Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, p.17. 8 Dentre os principais documentos internacionais produzidos a partir de encontros, eventos de pessoas com deficiência e de organismos nacionais e internacionais 38 de defesa desse segmento e que têm orientado as políticas públicas brasileiras nesta área, podem ser citados a Declaração dos Direitos do Impedido – 1975; a Carta dos anos 80; o Programa de Ação das Nações Unidas de 1982; as Normas Internacionais do Trabalho sobre a Readaptação Profissional – 1984; a Declaração de Cartagena das Índias sobre as Políticas Integrais para as pessoas portadoras de deficiência, na região Ibero-Americana – 1992; a Declaração de Manágua – 1993; a Primeira Conferência Internacional de Ministros responsáveis pela atenção de pessoas portadoras de deficiência – 1992; Normas Uniformes sobre a Igualdade de Oportunidades para as pessoas portadoras de deficiência (ONU – 1993); a Declaração de Salamanca e Marco das Ações sobre Necessidades Educativas Especiais; Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência (Convenção da Guatemala – 1999) e a recente Convenção Sobre os Direitos da Pessoa Com Deficiência (em fase de ratificação) - cf Maria de Lourdes Canziani, in Direitos Humanos e os Novos Paradigmas das Pessoas com Deficiência, in Defesa dos Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiência, coord. Luiz Alberto David Araújo, p. 252. 9 A esse respeito ver Luis Roberto Barroso, Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil), Revista de Direito Constitucional e Internacional, IBDC, vol .58, p.129/173. 10 Interessante notar que a autonomia também é motivo de preocupação dos civilistas, p.ex. quando comentam as virtudes da lei nº11.441/07, que altera a sistemática do inventário, separação e divórcio e permite, observadas algumas exigências, a formalização por meio de escritura pública. Assim ocorreu com Rodrigo da Cunha Pereira (“...Afinal, já está passando da hora de o Estado respeitar a autonomia privada”), Maria Berenice Dias (“...A dispensa da intervenção estatal, mesmo no âmbito do Direito de Família, empresta importância à vontade das partes”) e Luiz Edson Fachin (...do reconhecimento das pessoas nas relações familiares como sujeitos de seu próprio destino que conjuga liberdade e responsabilidade”) – cf. Boletim IBDFAM nº42, jan/fev 2007, p.03. 11 Novo Dicionário Aurélio, Nova Fronteira, verbete “autonomia”. 12 A liberdade negativa consiste em fazer ou não fazer tudo o que as leis permitem ou na proíbem, é a liberdade clássica, do homem enquanto pessoa humana. 13 No mesmo sentido, Alexandre de Moraes: A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas, sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos (Constituição do Brasil interpretada, p.128/129). 14 "A interpretação de qualquer texto de direito impõe ao intérprete, sempre, em qualquer circunstância, o caminhar pelo percurso que se projeta a partir dele – do texto – até a Constituição. Um texto de direito isolado, destacado, desprendido do sistema jurídico, não expressa significado normativo algum”, Ensaio e Discurso sobre ta Interpretação/Aplicação do Direito, Malheiros, 2ªed.,p.40. 15 Assim prevê a NBR 9050 ao dispor sobre tecnologia assistiva:conjunto de técnicas, aparelhos e instrumentos, produtos e procedimentos que visam auxiliar a mobilidade, percepção e utilização do meio ambiente e dos elementos por pessoas com deficiência (item 3.40). 16 RMS nº 9.613 – SP, STJ, Primeira Turma, rel. Min.José Delgado, Rev. STJ : 47-150, 39 setembro/99. 17 Especificamente sobre a ilegalidade do Decreto nº 5.296/04, conforme parecer exarado pelo Procurador de Justiça Oswaldo Luiz Palu, nos autos do Protocolado nº 15.218/05, da Procuradoria Geral de Justiça de São Paulo. Bibliografia ALVIN, Maria Cristina de Souza. Princípio da dignidade da pessoa humana e o direito constitucional do trabalho. Mestrado em Direito Constitucional. São Paulo: PUC, 1997. BARROSO, Luís Roberto. 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São Paulo : Cultrix, 2004. 40 SEÇÃO III - NORMAS INTERNACIONAIS CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA DA ONU Laís Vanessa Carvalho de Figueiredo Lopes Resumo: Análise do processo de construção da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, desde os antecedentes históricos normativos relacionados a pessoas com deficiência até a mudança de paradigma conceitual. Palavras chave: Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, pessoas com deficiência. Abstract: Analysis of the construction process of the UN Convention on the Rights of the Persons with Disabilities, from normative historical antecedents regarding people with disabilities to the change of conceptual paradigm. Keywords: Convention on the Rights of the Persons with Deficiency of the UN, persons with disabilities. 41 1. Antecedentes históricos dos direitos das pessoas com deficiência A discriminação de pessoas com deficiência já teve lastro em lei, desde as civilizações antigas até bem pouco tempo. Com a positivação da dignida- de humana como valor jurídico a ser protegido, ocorrida após o fim da Segunda Guerra Mundial, o advento da Organização das Nações Unidas (ONU) e a Decla- ração Universal dos Direitos do Homem, entre 1945 e 1948, a comunidade inter- nacional passou a buscar respostas aos horrores produzidos pelas Grandes Guer- ras, criando e fortalecendo um sistema global de proteção aos direitos humanos. Desde então, todas as pessoas passaram a ser reconhecidas como sujei- tos titulares de direitos em primeiro lugar, independentemente de sexo, raça, origem, idade, classe social, religião ou quaisquer outras condições físicas, sen- soriais ou intelectuais. A deficiência é, pois, uma das características parte da diversidade humana. O grande desafio é justamente construir e consolidar o novo paradigma social com base no respeito à diferença e aceitação das pesso- as com deficiência como parte da humanidade. Esta nova visão foi positivada na Convenção sobre os Direitos das Pesso- as com Deficiência, primeiro tratado internacional de direitos humanos do sécu- lo XXI, específico para as pessoas com deficiência e que define direitos e obri- gações de todos os seres humanos. A Convenção nasce como resultado da mobilização das organizações da sociedade civil “de” e “para” pessoas com deficiência, ativistas de direitos humanos, agências internacionais, além de Esta- dos que encamparam a causa. Em 2001 a ONU criou um Comitê ad hoc para avaliar propostas, discutir e elaborar o seu texto. Cinco anos depois o tratado foi aprovado na 61ª Assembléia Geral da ONU, em 13 de dezembro de 2006. Avaliaremos no presente ensaio, o processo de construção desta Con- venção, desde os antecedentes históricos normativos relacionados a pessoas com deficiência até a mudança de paradigma conceitual – dentro do consenso possível - encontrada no texto final. 1.1 Idade Antiga Nos primórdios da história, a deficiência era considerada expressão de inferioridade em relação aos demais seres humanos, sendo muitas vezes dita como castigo divino. A criança com deficiência era rejeitada desde o nascimen- to e recolhida em casa como se tivesse uma doença contagiosa e vergonhosa. Não tinha direitos como as demais crianças. Na Grécia antiga e em Roma, o corpo belo era cultuado como presente dos deuses. Com essa dicotomia entre a idéia de que a aparência boa era a do corpo 42 perfeito e a ruim era a do corpo imperfeito, os antigos criavam leis que legitima- vam práticas de exclusão e segregação em relação às pessoas com deficiência. Existiam leis que autorizavam que as crianças imperfeitas não tivessem direito à vida. A Lei das XII Tábuas (451 a.C.) de Roma dizia que o filho nascido monstru- oso deveria ser morto imediatamente. A regra olho por olho, dente por dente, reforçava a idéia de que deficiência era algo mal, que acometia a quem merecia. No Código de Hamurabi (1.800 a.C.) a deficiência era imposta como san- ção legal. Havia castigos que determinavam a mutilação de infratores. A cada ilícito cometido, proporcionalmente era aplicada uma pena de natureza seme- lhante. A língua do filho que renegou os pais deveria ser cortada. O olho do filho adotivo que reconheceu a casa do pai natural deveria ser decepado. No Código de Manu (1.500 a.C.), (Assis, 1992, p. 27-29), as pessoas com deficiência tinham proibição sucessória, sendo determinado em seu Art. 612 que os eunucos, os homens degradados, os cegos, surdos de nascimento, os loucos, idiotas, mudos e estropiados, não serão admitidos a herdar. A proteção da propriedade privada expressamente limitava as pessoas com deficiência como sujeitos de direitos. 1.2 Idade Média a Moderna Na Europa feudal e medieval, muitas pessoas com deficiência passaram a ser aceitas como parte de grupos para trabalhar nas terras ou nas casas de famílias. Mas sempre quando tinha alguma praga, elas eram as culpadas pelo mal social. Como reação, milhares de pessoas com deficiência vagavam em penitência para pagar as chagas ocasionadas na sociedade. Alguns acreditavam que com isso conseguiriam apagar a sua característica. Predominava o horror de ser diferente pois poderiam ser acusados de males com os quais não tinham nenhuma relação, dentre os quais a magia negra e a bruxaria - práticas que os protestantes categorizaram e abominavam. No século XV, Lutero, fundador do protestantismo, recomendava forte- mente que crianças com deficiência devessem ser jogadas no rio. No século XVI, os leprosos holandeses tiveram todos os seus bens confiscados pelo Estado para sustentar as boas almas que não foram castigadas pela lepra. Não bastasse a enfermidade, as pessoas ainda eram penalizadas pelo preconceito de que fizeram algum mal para merecê-la. Com a Revolução Industrial e o avanço dos conhecimentos técnico-cien- tíficos, o mundo passou a pregar a razão acima de tudo operando nova lógica sobre o corpo humano. Ainda assim, para as pessoas com deficiência, racional- mente não havia oportunidades de trabalho nem de convívio social com os demais. A segregação já institucionalizada passou a ser fundamentada por argu- 43 mentos científicos. Para otimizar o trabalho, as pessoas deveriam ser fisicamen- te uniformes como as máquinas recém descobertas. Aqueles que não se apre- sentassem com a melhor performance logo eram aposentados ou considerados mais fracos e esquecidos em instituições projetadas para que as pessoas com deficiência vivessem perpetuamente sendo cuidadas de maneira especial. Des- sa forma, as pessoas com deficiência ficavam dependentes de profissionais que buscavam sua cura, tratamentos e/ou benefícios. Na sociedade não tinham chances de serem incluídas, rotuladas pela aparência e total desconhecimento de potencialidades humanas do ser diferente. No fim do século XIX, um grande número de cientistas, escritores e políti- cos começaram a interpretar as teorias de Darwin sobre evolução e seleção natu- ral para seus próprios fins. Esses eugenistas acreditavam que poderiam melhorar a qualidade da raça humana selecionando os melhores genes. Diziam que as pessoas com deficiência, especialmente as com deficiências congênitas, enfra- queciam a raça e ainda poderiam comprometer a competitividade do povo. Esse argumento permitia o isolamento perpétuo das pessoas com deficiência em ins- tituições que só admitiam pessoas de um único sexo e/ou a sua esterilização. Muitas escolas especiais surgiram nesta época para ofertar atendimento espe- cializado para as crianças com deficiência, tendo também como pano de fundo poupar o convívio recíproco entre as pessoas normais e as ditas pessoas inferiores. 1.3 Século XX Em um célebre Congresso Internacional de Educação para Surdos em Milão (1881), representantes de 54 países definiram que a forma de educação de pessoas com deficiência auditiva era o oralismo, ou seja, a expressão verbal proibida a utilização de sinais. Durante 100 anos, a língua de sinais foi coibida nas escolas e em espaços públicos em diversas partes do mundo. Amarravam as mãos das crianças que se comunicam por sinais. A despeito da proibição, a língua de sinais foi transmitida entre gerações e só no fim do século XX e que voltou a ser permitida1. Entre os anos 20 e 30, em 37 estados nos EUA havia lei que obrigava a esterilização de mulheres nascidas com deficiência auditiva ou qualquer um que tivesse um teste de QI abaixo da média até os 70 anos. Nos anos 80, 17 países ainda mantinham essa lei em vigor. Na Inglaterra, foi criada em 1913 uma lei sobre deficiência mental que classificava as pessoas em idiotas, aquelas que são incapazes de se preservar de perigos físicos comuns; imbecis, aquelas que, não atingindo o estado de idiotia, é ainda considerada por ser incapaz de controlar seus atos ou de ser ensinadas a fazer algo; e defeituoso moral, aquelas que têm propensão a vícios 44 ou a crimes e que requerem o cuidado, a supervisão e o controle para a prote- ção de outra. Sob esta lei, 50.000 crianças com limitações sensoriais e físicas, além de mais de 500.000 adultos, foram encarcerados em instituições na pri- meira metade do século XX, muitos deles só tendo sido liberados nos anos 80. As crianças com dificuldades de aprendizagem significativas foram julgadas ineducáveis e aquelas com dificuldade de aprendizagem mais ou menos signi- ficativa foram às escolas especiais sub-normais até 19732. O marco das Grandes Guerras - mais especificamente após a 2ª Guerra Mundial - é um ponto de reflexão e mudança na história do mundo. Pela primei- ra vez as questões dos direitos do homem passam da esfera local para a esfera global, envolvendo todos os povos3. O reconhecimento de direitos humanos como um conjunto de direitos fundamentais de todos os seres humanos e a necessidade de sua proteção é conseqüência do processo de horror enfrentado. Na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) foi positivado um núcleo inderrogável de direitos inerentes a todo e qualquer ser humano inde- pendente de sua nacionalidade, sexo, idade, raça, credo ou condição pessoal e social. Com a proclamação universal da dignidade humana como valor, começa- ram a serem verbalizadas as críticas a este modelo de isolamento e segregação das pessoas com deficiência. Os estudiosos e defensores dos direitos humanos passaram a se preocupar com as pessoas com deficiência, seu convívio em comunidades e a necessidade de afirmação dos seus direitos. Além disso, os mutilados pela guerra que voltaram a suas casas como heróis exigiram serviços de reabilitação, infra-estrutura e acessibilidade das cidades para sua reintegra- ção. Assim, ocorreram mudanças no tratamento, mas o mundo não tratou de se adequar e prover os equipamentos necessários. A partir dos anos 50, a Assembléia Geral e o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas começaram a aprovar resoluções sobre prevenção e reabilitação. A Organização Mundial do Trabalho (OIT), em 1955, lançou a reco- mendação nº 99 sobre a Reabilitação de Pessoas Portadoras de Deficiência. Nos anos 70, o movimento pelo reconhecimento da pessoa com deficiência como sujeito pelo critério dos direitos e não pelo critério da atenção começou a ganhar corpo. Em 1971, a Assembléia Geral da ONU aprovou a resolução De- claração dos Direitos do Retardado Mental (Resolução 28/56). Em particular, além de afirmar que as pessoas com deficiência mental devem gozar dos mes- mos direitos dos demais seres humanos, essa Declaração adverte que a mera incapacidade do exercício pleno dos direitos não pode ser considerada carta branca para a supressão completa de seus direitos. Em 1975, a Assembléia aprovou outra resolução relacionada à Declara- ção dos Direitos dos Impedidos (Resolução 34/47), afirmando que as pessoas 45 com deficiência têm os mesmos direitos civis e políticos, econômicos, sociais e culturais que os demais seres humanos. Além do mais, enfatiza, que as pessoas com deficiência têm direito a medidas destinadas a permiti-las alcançar a maior autonomia possível. Na década de 80, vários acontecimentos na pauta internacional marcaram a nova concepção das pessoas com deficiência sustentada pela abordagem dos direitos humanos. O ano de 1981 foi proclamado o Ano Internacional das Pesso- as Deficientes (Resolução 31/123) pela Assembléia Geral das Nações Unidas com o tema Participação e Igualdade, com ênfase na prevenção, reabilitação e equiparação de oportunidades. Outros objetivos da resolução incluíam o au- mento da consciência pública, entendimento e aceitação, encorajando pessoas com deficiência e suas organizações a expressarem suas vozes e visões, promo- vendo ações para melhorar sua situação de vida. A maior lição, conforme regis- trado nas Nações Unidas, foi que a imagem das pessoas com deficiência depen- de da extensão das atitudes sociais4. Em 1982, a Assembléia também aprovou o Plano de Ação Mundial rela- tivo às Pessoas com Deficiência (Resolução 37/52), cujos objetivos gerais se- guiam o tripé do Ano Internacional: prevenção, reabilitação e equiparação de oportunidades. Os dois primeiros objetivos configuravam no modelo existente de assistência, enquanto que o terceiro denotava a evolução do modelo basea- do em direitos. Nesse documento, pela primeira vez, definiu-se a deficiência em função da sua interação com o entorno. Nessa época, foi declarado o decênio entre 1983 e 1992 como a Década das Nações Unidas para as Pessoas com Deficiência, que visava à execução das ações do Plano de Ação Mundial. Em 1987, na metade da década internacional das pessoas com deficiência, em Estocolmo, ocorreu a Reunião Mundial de Peritos para examinar o andamento da execução do Programa Mundial de Ação relativo às Pessoas com Deficiência. Constatou-se a necessidade de elaborar uma doutrina orientadora que indicasse as prioridades de ação no futuro, reco- nhecendo os direitos das pessoas com deficiência com mais força. Como resul- tado desta reunião, recomendou-se à Assembléia Geral que fosse feita uma conferência especial para redação de uma convenção internacional sobre a eli- minação de todas as formas de discriminação contra as pessoas com deficiência para ser ratificada pelos Estados ao finalizar a década. A delegação da Itália preparou um primeiro esboço da Convenção e o apresentou a 42ª Assembléia Geral, em 1987. A delegação da Suécia apresentou nova proposta na 44ª As- sembléia Geral, em 1989. Mas não havia um consenso sobre a necessidade de elaboração de uma Convenção específica. Para muitos países, os documentos de direitos humanos já existentes poderiam garantir as pessoas com deficiência 46 o exercício de direitos na mesma proporção que todos os outros seres huma- nos. Além disso, os progressos do decênio não podiam ser sentidos ainda, haja vista que apesar de reconhecidas boas iniciativas de alguns países, não havia suficientes esforços para que os resultados fossem considerados significativos. Em maio de 1990, o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas autorizou a Comissão de Desenvolvimento Social a estabelecer um grupo espe- cial de trabalho de peritos governamentais, de composição aberta, financiado por contribuições voluntárias, para elaborar regras gerais sobre a igualdade de oportunidades das crianças, jovens e adultos com deficiência, em estreita cola- boração com os organismos especializados do sistema das Nações Unidas e outras entidades intergovernamentais e não governamentais, em especial as formadas por pessoas com deficiência. A discussão não estando tão amadurecida para a Convenção, deu lugar para que em 1993 fosse aprovada a histórica resolução fruto do trabalho de 1990 intitulada de Normas Uniformes para Equi- paração de Oportunidades das Pessoas com Deficiência (Resolução 44/70). Era uma resposta intermediária à pressão da comunidade internacional para que a ONU firmasse posição acerca das pessoas com deficiência. As Normas Uniformes são um conjunto de recomendações das Nações Unidas sobre o tema, não constituindo um tratado formal com efeito vinculante, tendo eficácia limitada. No entanto, pelo teor de seu conteúdo e o uso reiterado - como discurso e prática - e pela inovação de previsão de mecanismo de supervisão (relator especial), as Normas Uniformes se destacaram das demais resoluções da ONU na área da deficiência e tiveram uma importância significa- tiva na história normativa dos direitos do seu público beneficiário, tanto no âmbito internacional, como regional e local. A linguagem dos direitos descritos apresentou-se mais concisa e alinhada com o paradigma social fundamentado nos direitos humanos. Entre as normas, há as endereçadas aos Estados indicando suas responsabilidades, solicitando, em linhas gerais, que se eliminem as barrei- ras que impedem a igualdade de participação das pessoas com deficiência. Também menciona que os Estados devem permitir e facilitar o trabalho de organizações não governamentais que atuam com pessoas com deficiência no desenvolvimento de políticas públicas relacionadas. Especial atenção foi dada aos grupos vulneráveis, tais como mulheres, crianças, jovens, negros, índios e pobres com deficiência. Entre os seus artigos, destacam-se os referentes as medidas de execução, que recomenda a aposição do critério deficiência em estatísticas e políticas públicas gerais, além de determinar que se deve ter como base jurídica uma legislação nacional. Essas recomendações serviram de parâmetro para práticas, políticas e leis mundo afora5. 47 Em 1994, Bengt Lindqvist (Suécia) foi designado o primeiro relator espe- cial em deficiência6 (Special Rapporteur on Disability) pela Comissão de De- senvolvimento Social das Nações Unidas para auxiliar no monitoramento das Normas Uniformes e estabelecer diálogos entre Estados membros e ONGs para a implementação destas regras. O seu mandato de três anos foi prorrogado duas vezes, de 1997 a 1999, e 2000 a 2002. Sheikha Hessa Khalifa bin Ahmed al- Thani (Catar) foi a sucessora com mandato de 2003 a 2006. Um excelente apoio para o trabalho do relator são os especialistas representantes de organiza- ções internacionais de pessoas com deficiência com caráter consultivo na ONU. Para citar um exemplo do resultado do trabalho realizado, cujos temas aponta- dos foram objetos de discussão da Convenção Internacional, destaca-se trecho de um relatório que analisava aspectos que deveriam ser atualizados nas Nor- mas Uniformes: No se han tratado lo suficiente algunos aspectos de la política sobre discapacidad, por ejemplo, en lo tocante a los niños con discapacidades, la cuestión de género y determinados grupos, principalmente las personas con discapacidades psiquiátricas y de desarrollo. […] También se ha omitido la cuestión de los discapacitados en condiciones de refugiados o situaciones de regencia […] [No] se ha hecho referencia alguna al ámbito de la vivienda. Entre otras cosas, ello significa que no existe ninguna orientación con respecto a la gestión de las instituciones, en que un gran numero de personas con discapacidades todavía pasan su vida entera e condiciones lamentables […] (Quinn : 2002, p.29). Em 1999, a Convenção Americana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência7 foi adotada pela Organização dos Estados Americanos (OEA), tendo sido considerada um exem- plo de ação na esfera regional. Define pessoa com deficiência, com base no modelo social de direitos humanos, considerando a interação com o meio eco- nômico e social como causadora ou agravante. Nesse meio tempo, a Secretaria das Nações Unidas organizou uma sé- rie de seminários anuais com especialistas em deficiência. Na Reunião realiza- da em 2000, em Estocolmo (Suécia), foram discutidos muitos mecanismos de vigilância dos direitos das pessoas com deficiência, com participação das ONG´s. Neste ano, foi realizada também uma Conferência Mundial de ONG´s sobre a Deficiência, na qual aprovou-se a Declaração de Beijing sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência no Novo Século. Este encontro histórico da socieda- de civil uniu organizações internacionais que firmaram posição em envidar esforços para apoiar a elaboração e a adoção de uma convenção temática. Organizações regionais e locais também começam a pressionar comprome- tendo-se a lutar pela sua consecução. A idéia da Convenção Internacional foi 48 ficando cada vez mais forte e bem argumentada pelas organizações internaci- onais e nacionais dedicadas à deficiência. Em 2001, numa Conferência Mundial das Nações Unidas contra o Racismo em Durban, na África do Sul, o presidente do México Vicente Fox, solicitou que na Declaração de Durban fosse incluído um parágrafo sobre a necessidade de elaboração de uma Convenção Internacional para Proteção e Promoção dos Direitos e Dignidade das Pessoas com Deficiência. No final do mesmo ano a Resolução 56/168 foi aprovada pela 56ª Assembléia Geral da ONU e com ela a criação do Comitê ad hoc que deveria contar com a participação de todos os Estados Membros e os observadores das Nações Unidas para que se examinas- sem propostas relativas à Convenção avaliando questões de desenvolvimento social, direitos humanos e não-discriminação, e levando em consideração reco- mendações da Comissão de Direitos Humanos e da Comissão de Desenvolvi- mento Social. O Comitê foi instaurado no ano seguinte, presidido por Luis Gallegos (Equador) que permaneceu como chairman até a 3ª Reunião. Don Mckay (Nova Zelândia) assumiu então o posto e literalmente com muita diplomacia liderou o processo até o fim, em 2006, tendo sido fundamental para que a Convenção tivesse sido feita em prazo recorde de 5 (cinco) anos. 2. O processo da elaboração da Convenção Em agosto de 2002 foi realizada a primeira sessão de trabalhos do Comitê Ad Hoc criado pela ONU para elaborar a Convenção Internacional Ampla e Integral de Proteção e Promoção dos Direitos e da Dignidade das Pessoas com Deficiência. Desde então, o Comitê se reuniu em junho de 2003 (2ª Sessão), maio de 2004 (3ª Sessão), agosto de 2004 (4ª Sessão), janeiro de 2005 (5ª Sessão), agosto de 2005 (6ª Sessão), janeiro de 2006 (7ª Sessão) e agosto de 2006 (8ª Sessão). Na 1ª Reunião do Comitê, o slogan Nothing about us without us (Nada sobre nós sem nós) torna-se logo lema do processo. Estiveram presentes 80 (oitenta) países, com participação das ONG’s representativas e de pessoas com deficiência. As organizações se constituíram em uma aliança internacional em rede denominada de IDC (International Disability Caucus). Essa sessão foi marcada pela presença de muitos especialistas que participaram do debate polêmico sobre a necessidade ou não de se fazer a Convenção. Terminou a sessão com o compromisso de realização de seminários regionais, realizados em abril de 2003, no Quito (Equador), em Bruxelas (Holanda), em Johannesburgo (África do Sul), em Bangkok (Thailândia) e em Beirute (Líbano). Na 2ª Reunião do Comitê, haviam mais Estados e ONG’s participantes. Nesta sessão o México desenvolveu uma proposta de Convenção com base nas 49 discussões dos seminários regionais e foi criado um Grupo de Trabalho para elaborar o draft da Convenção. Na 3ª Reunião continuava crescendo o número de representantes de Estados e ONG´s no processo. O trabalho foi realizado tendo por base uma minuta oficial; Grupo africano pediu que as ONG’s não participassem; A primei- ra leitura avançou muito lentamente; Coordenador dos trabalhos: D. Mc Kay; A reunião resultou pouco substantiva. Na 4ª Reunião foi feita a conclusão da primeira leitura da minuta inicial, considerando o título, a estrutura, parte do preâmbulo, definições (Artigo 3) e monitoramento (Artigo 25). Revisão dos Artigos 1 ao 15 e 24 bis. Na 5ª Reunião a leitura avançou dos Artigos 7, § 5º até 15 e Introdução. Foram feitas proposta de novos artigos. Não houve muita participação das ONG’s. Do Brasil foi enviada especialista técnica da Coordenadoria Geral para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (CORDE), órgão do Governo Federal ligado à Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, com subsídios escritos também para a participação do país. Na 6ª Reunião do Comitê, foram discutidos os Artigos 15, 15A, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24 e 24A. Faltou a reanálise do Artigo 3 que trata das definições no Preâmbulo. Pela primeira vez uma organização não governamental brasileira esteve presente para observar e intervir no processo: Instituto Paradigma. Como resultado desta sessão, em outubro de 2005 o Chairman elaborou nova minuta contemplando as discussões anteriores das duas leituras realizadas, retirando as inúmeras notas de rodapé que foram se acumulando ao longo das outras sessões. No Brasil, entre a 6ª e a 7ª sessões, foi realizado um seminário sobre a Convenção sediado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, capitane- ado pelo Instituto Paradigma com apoio da CORDE, do Banco Mundial e do CVI (Centro de Vida Independente). O evento reuniu as lideranças de pessoas com deficiência e estudiosos da área específica e de direitos humanos. Com uma metodologia que permitia aos participantes trabalhar os textos dos artigos em blocos agrupados por assuntos, as 12 oficinas realizadas foram compiladas em um único Relatório que serviu de base para a próxima sessão. Da mesma forma feita no Brasil, em outras regiões do mundo ocorreram debates com o intuito de preparar propostas para serem levadas à discussão. Com o novo texto em mãos, as delegações dos países e as organizações não- governamentais puderam se preparar para discussões de forma extremamente objetiva, com intervenções concentradas na essência do texto proposto. Outro elemento que auxiliou o avanço dos trabalhos foi o mandato da Assembléia Geral da ONU que determinou que a reunião fosse realizada em 50 três semanas para leitura integral do texto da Convenção. Na 7ª Reunião do Comitê, a reunião foi mais extensa, sendo sua duração de 3 (três) semanas, ao invés das 2 (duas) tradicionais. A agenda estrategicamente formulada foi cum- prida. As questões mais polêmicas foram programadas para a última semana, com o intuito de que os países tivessem mais tempo para, em paralelo, avaliar com profundidade as propostas e negociá-las. Os facilitadores dos Artigos fize- ram várias reuniões de trabalho para apresentar em plenária a redação que fosse mais consensual. Ao final da reunião o Chairman publicou relatório para situar o estágio das negociações, onde consta a análise de que os Artigos pode- rão ser enquadrados em três categorias, quais sejam: a maioria que não tem questões remanescentes ao permanecer no texto; alguns que ainda tem ques- tões a serem resolvidas e, os poucos com questões mais difíceis, dadas as diver- gências de opiniões entre os países. As duas últimas categorias constituem, em princípio, os temas que deveriam ser tratados na próxima sessão. No relatório também havia menção expressa para que na sessão seguinte não houvesse mais propostas de aprimoramentos lingüísticos e que as pessoas viessem pre- paradas para discutir os pontos ressaltados com entendimentos claros, tanto do ponto de vista técnico, quanto político. A sociedade civil internacional teve uma participação significativa durante todo o processo, tendo articulado em todos os momentos de maneira organiza- da por meio do IDC. A divisão norte e sul do mundo também pôde ser sentida nas salas da ONU. As primeiras organizações eram as oriundas de países desen- volvidos do norte do hemisfério. A partir da 7ª sessão, uma presença mais ex- pressiva de pessoas com deficiência do hemisfério sul capacitadas para a inter- venção, com participação financiada pelo Proyecto Sur. Muitas questões relaci- onadas às realidades de países em desenvolvimento foram colocadas e os con- sensos passaram a ter, além dos embates culturais naturais, pitadas de conflitos por contextos sócio-econômicos muitos diversos. Essa experiência ensinou e uniu os integrantes da sociedade civil, que afinal de contas, lutavam pela mes- ma razão de estar ali: a positivação e garantia de eficácia dos direitos humanos das pessoas com deficiência. Disse, Julio Fretes, um advogado com deficiência visual do Paraguai, que la Convencion tiene el sabor de sur! Entre as 7ª e a 8ª sessões, o governo brasileiro, por meio da CORDE, protagonizou em Brasília-DF uma Câmara Técnica para discutir os temas rema- nescentes polêmicos anunciados pelo Chairman com pessoas já envolvidas no processo, membros destacados do governo, representantes de diversos Minis- térios, especialistas das várias áreas da deficiência, do direito e da sociedade civil. A presença do Brasil ficou mais forte e visível nestes últimos dois anos do 51 processo, pela participação das organizações não governamentais e maior pre- sença de técnicos do seu governo, além do representante diplomático que já apresentava conhecimento acumulado na área de direitos humanos mas que foi cada vez mais se familiarizando com as políticas, leis e práticas do Brasil em relação às pessoas com deficiência. Todos esses ingredientes geraram uma po- sição ímpar de cooperação estreita entre os diversos atores participantes do Comitê ad hoc. Chamada a apoiar várias propostas, a delegação do Brasil tinha o mérito adicional de ter trabalhado o texto previamente na origem com pro- fundidade sugerindo redação aprimorada para alguns artigos propostos. Na 8ª e última sessão do Comitê, as duas semanas de trabalho realizadas foram marcadas por sessões tensas pelo deadline proposto. O Chairman foi particularmente rígido com o prazo do processo, suspendendo sessões oficiais para que dessem lugar as oficiosas que deveriam discutir assuntos específicos. Os temas mais difíceis de resolver foram a definição de pessoa com deficiência, capacidade legal e mecanismos de monitoramento, como adiante se verá. No último dia, a sessão histórica precisou ser transferida para outra sala para que existissem recursos técnicos para votação. Os EUA não queriam que tivesse qualquer menção no texto a proteção de pessoas com deficiência em situações de conflito armado e ocupação estrangeira ou territórios ocupados. Por 102 votos a favor, 5 contra e 8 abstenções, venceu a maioria que queria que o texto contemplasse a redação proposta. Os países que votaram contra foram Estados Unidos, Israel, Canadá, Austrália e Japão. Em meio a muita emoção os presen- tes na sala 2, do prédio sede da ONU, em Nova Iorque, assistiram a aclamação do cumprimento do trabalho de elaboração da Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, no dia 25 de agosto de 2006. O texto passou por um Drafting Group que garantiu a uniformidade da ter- minologia utilizada, harmonizando as versões nas 6 (seis) línguas oficiais da ONU, quais sejam, inglês, francês, espanhol, árabe, chinês e russo. Os resultados foram apresentados pelo Comitê ad hoc na 61ª Assembléia Geral da ONU que aprovou o texto final da Convenção e do Protocolo no dia 13 de dezembro de 2006. O processo ensinou a todos os envolvidos, tendo mudado conceitos e atitudes. O Comitê ad hoc designado na ONU para elaborar a Convenção expe- rimentou algumas das mudanças que terão que ser feitas em cada parte do planeta quando as pessoas com deficiência passarem a ser efetivamente consi- deradas como sujeitos de direitos: o material distribuído em papel deveria ter igual versão em braille, em tempo real para negociação; as pessoas deveriam falar pausadamente para que os intérpretes traduzissem para as respectivas 52 línguas, incluindo a língua de sinais; o prédio da ONU tornou-se acessível para recepcionar as pessoas com deficiência, entre outros aprendizados. 3. Por que uma Convenção específica? Outros tratados de direitos humanos não específicos para pessoas com de- ficiência são instrumentos aplicáveis para a defesa de seus direitos. Na ONU, os órgãos de vigilância dos tratados de direitos humanos recebem orientações para levar em conta os direitos das pessoas com deficiência. Assim, para a defesa de seus direitos, já se tem a Declaração Universal de Direitos Humanos (1948), a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial (1965), o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966), o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratos e Penas Cruéis, Inumanas ou Degradantes (1984), a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher (1979), a Convenção sobre os Direitos das Crianças (1989). Porque então ter uma Convenção específica para as pessoas com deficiência? Prefaciando a obra de Noberto Bobbio a Era dos Direitos, Celso Lafer resume diálogo do filósofo com Gregório Peces-Barba no qual apontou e distin- guiu em matéria de direitos humanos, etapas na construção do Estado Demo- crático de Direito. A primeira etapa seria a da positivação, ou seja, da conversão em direito positivo do valor da dignidade humana, legitimando a lente ex parte populi. A segunda é a da generalização, traduzida pelo princípio da igualdade e sua máxima de não discriminação. A terceira é a internacionalização, que advém do reconhecimento que a tutela dos direitos humanos dependem do apoio da comunidade internacional e das normas de Direito Internacional Público. Por fim, a quarta fase é a especificação, na qual há um aprofundamento da tutela, que deixa de levar em conta apenas os destinatários genéricos – o ser humano, o cidadão – e passa a cuidar do ser em situação, seja o negro, a mulher, a criança ou a pessoa com deficiência. Por essas etapas, os direitos humanos deixam gradualmente de serem direitos dos homens genéricos para serem direitos da pessoa humana específica. Nessa linha de raciocínio, foram positivados valores universais para todos os seres humanos, fundamentando bens, direitos e prestação a públicos beneficiários, dentro de um sistema internacional e um sistema especial de proteção aos direi- tos humanos, que coexistem e se complementam. Ter uma convenção específi- ca para pessoas com deficiência, é também reconhecer, pois, que este coletivo constitui uma minoria com contexto peculiar, o que requer proteção específica para acesso ao pleno usufruto dos direitos, que não é provido pela descrição genérica dos direitos contidos nos demais tratados existentes. 53 Como comprovação do alegado anteriormente, vejamos a experiência de aplicação dos demais tratados para as pessoas com deficiência. No caso dos direitos civis, por exemplo, a característica principal é de proteger e promover a dignidade humana e a autonomia, requerendo e ajudando a preservar uma divisão clara entre o Poder Público e a esfera privada. Protegem então de abu- sos de poder e abrem espaço para a satisfação de aspirações pessoais na socie- dade civil. Particularmente estamos tratando do direito à vida, à proibição da tortura e tratos desumanos e degradantes, direito à liberdade, direito à associa- ção e direito à igualdade. No caso das pessoas com deficiência, muitas vezes esses direitos não são nem considerados, tendo em vista que ainda existe em determinados países legislações que autorizam o aborto e a eutanásia em casos de deficiência, justificando as seleções que fazem alguns médicos e familiares. Muitas instituições que mantém pessoas com deficiência mental e distúrbios psicosociais mundo afora ainda praticam abusos e maus tratos nos tratamentos, sendo que as vítimas das violações geralmente são impossibilitadas de denunci- ar por estarem constantemente dopadas por medicações fortes e com efeitos colaterais sérios, sendo afrontadas também em seu direito de liberdade8. Quanto aos direitos políticos, pode-se dizer que estes visam a garantia do exercício da cidadania ativa e o acesso ao poder, que se pressupõe democráti- co. A idéia é de quanto mais acesso os cidadãos tiverem ao poder, mais respeito aos seus direitos eles terão. Também é importante para a participação política a liberdade de expressão e o direito a votar e ser votado. Ocorre que, de modo geral, o exercício desses direitos pelas pessoas com deficiência não são respei- tados. A invisibilidade que impera muitas vezes permite que as políticas sejam formuladas sem que sequer seja considerada esta população. Mesmo que ga- rantido por lei, os direitos eleitorais genéricos podem ser anulados para este público quando não há acessibilidade na comunicação das campanhas, nos trans- porte de acesso e tão pouco nos espaços físicos de votação. Se pensarmos nos direitos econômicos, sociais e culturais, estes constitu- em a base do sistema de liberdades fundamentais para os direitos civis e políti- cos. Essencialmente, estamos diante do direito à educação, à formação profissi- onal, ao trabalho, a saúde, a moradia, ao transporte entre outros. No entanto, no cotidiano das pessoas com deficiência, na maioria das vezes, esses direitos não são respeitados. Crianças com deficiência muitas vezes não são levadas a esco- la. Quando são, boa parte das famílias prefere matricular em escolas especiais, isolando-as do convívio com outras crianças. Isso também ocorre pela forma como o sistema de ensino esta estruturado. Apresentando baixo grau de escola- ridade, tem dificuldades de emprego e são discriminadas no mercado de traba- lho, que não se prepara para receber. Na saúde, são discriminadas por convêni- 54 os de planos de saúde que, ou denegam a sua admissão, ou cobram mais caro por ela. Os conjuntos habitacionais normalmente são inacessíveis, e pouco se preocupam também que o ambiente seja visitável, confinando pessoas com deficiência dentro de suas próprias casas. Esse ciclo vicioso também tem fulcro na falta de transporte acessível para o deslocamento. Enfrentando dificuldades de acesso e de atitudes durante toda a sua existência, as pessoas com deficiên- cia fazem parte de um ciclo de invisibilidade que as afastam de seus direitos desde seu nascimento ou quando adquirem a deficiência. A base conceitual desta Convenção é a mudança de paradigma da pers- pectiva médica e assistencial para a visão social dos direitos humanos. Segundo o modelo médico, a deficiência é um incidente isolado e do indivíduo, uma experiência do corpo a ser “combatida” com tratamentos como diz Cláudia Werneck (2005, p. 25). Para o modelo social, a deficiência é a resultante de uma equação que tem duas variáveis, quais sejam, as limitações funcionais do corpo humano e as barreiras físicas, econômicas e sociais impostas pelo ambi- ente ao indivíduo. Assim sendo, a deficiência em si não “descapacita” o indiví- duo mas, associa uma característica do corpo humano com o ambiente inserido. É a própria sociedade que coletivamente cria a “descapacidade”. Isto significa também que as pessoas não devem ser definidas como obje- tos por funcionalidade ou utilidade na sociedade, senão reconhecidas como sujeitos de direitos por valores que embasam o sistema de direitos humanos: a dignidade humana, a autonomia, a equiparação de oportunidades e a solidarie- dade. Parafraseando Bobbio sobre as lentes ex part principi e ex part populi, na deficiência podemos dizer que o que se quer é a positivação da mudança de enfoque conceitual, passando da lente modelo médico e assistencial para a lente modelo social de direitos humanos. A Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência como instrumento de proteção aos seus direitos humanos específicos faz parte do projeto de visibilidade do público-beneficiário. É preciso incorporar as pessoas com deficiência na pauta internacional de direitos humanos e garantir o reco- nhecimento de que as pessoas com deficiência têm lugar na sociedade e que a independência e autonomia delas estão diretamente ligadas ao acesso e a equi- paração de oportunidades para exercício da igualdade nas mesmas bases e condições. Flávia Piovesan (2006. P. 177-178) explica, segundo Bobbio, que o pro- cesso de multiplicação de direitos que envolveu não apenas o aumento dos bens merecedores de tutela, mediante a ampliação dos direitos à prestação [...] 55 como também a extensão da titularidade de direitos, com o alargamento do próprio conceito de sujeito de direito [...]. Esse processo implicou ainda a especificação do sujeito de direito, tendo em vista que, ao lado do sujeito genérico e abstrato, delineia-se o sujeito de direito concreto, visto em sua especificidade e na concretude de suas diversas relações. Sobre o sistema especial de proteção continua dizendo que adota como sujeito de direito o indivíduo historicamente considerado, com as particularidades de suas relações sociais, afirmando-se o reconhecimento de sua identidade própria. [...] Ao lado do direito a igualdade, nasce o direito a diferença. Além disso, é muito difícil obrigar os Estados a cumprirem com suas res- ponsabilidades de promoção do respeito aos direitos das pessoas com deficiên- cia se não há um instrumento de força jurídica coercitiva. A idéia da Convenção também é clarificar as obrigações dos Estados-Parte e os direitos das pessoas com deficiência, consideradas suas peculiaridades específicas, com regras de monitoramento visando à eficácia da sua aplicação. As Normas Uniformes tem a característica de não serem vinculantes e por isso não são exigíveis dos Estados. Tratados de direitos humanos também têm função educativa e podem auxiliar as organizações que trabalham na pauta dos direitos humanos das pes- soas com deficiência a influenciarem a legislação, as políticas públicas e práticas locais, incluindo a opinião pública. A convenção temática aprofunda conheci- mentos teóricos e práticos sobre os direitos humanos de pessoas com deficiên- cia e atende suas demandas mais específicas, podendo servir de referência positiva para os demais órgãos de monitoramento dos outros tratados. Contrários alegavam que a adoção de uma convenção específica perpe- tuaria o estereótipo e preconceito sobre a deficiência. Se isto não aconteceu na adoção de convenções específicas sobre raça, mulher e criança, porque haveria de ser com as pessoas com deficiência? Argumentavam que a existência de outros instrumentos de proteção aos direitos humanos era suficiente pois estes já poderiam abranger o coletivo em questão. E como forma de proteção espe- cífica já existiam as Normas Uniformes de 1993, o que dispensaria outro instru- mento. Somados aos demais, funcionários das Nações Unidas também levantam a questão do alto custo do processo de elaboração de uma Convenção tendo em vista o deslocamento das delegações dos Estados e sua permanência em Nova Iorque durante o período de sessões, acrescidos de custos posteriores de monitoramento no decorrer da aplicação do tratado. Por fim, havia posição dos EUA que alegavam que o custo de implementação da Convenção nos países em desenvolvimento seria transferido para países desenvolvidos. Diziam que, a seu exemplo, legislações nacionais poderiam ser criadas para que os direitos fossem implantados, sem necessidade de uma Convenção Internacional. 56 4. Público-beneficiário: quem são as pessoas com deficiência? A ONU estima que existem 650 milhões de pessoas com deficiência no mundo, o que equivale a 10% da população mundial. 80% deste público se encontra em países em desenvolvimento. Este número apresenta variações conforme o enquadramento da deficiência na legislação de cada país. Entre os assuntos mais polêmicos estava o artigo das definições (Art. 2). Grandes discussões tomaram lugar na plenária em torno da manutenção ou não da definição de deficiência e/ou de pessoa com deficiência. A maior preocupa- ção é que estes conceitos identificam os beneficiários da Convenção. Para che- gar a um consenso os países tiveram que ser flexíveis. Os integrantes do GRULAC (Grupo de países da América Latina e Caribe) sugeriram que a definição de deficiência fosse tal como a da Convenção Interamericana, segundo a qual o termo “deficiência” significa uma restrição física, mental ou sensorial, de natureza permanente ou transitória, que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades essenciais da vida diária, causada ou agravada pelo ambiente econômico e social. Esta definição pauta o ambien- te social como fator de limitação pessoal. Outros países não queriam que houvesse menção expressa a essa interação social e econômica, argumentando que o termo “deficiência” especificamente não deveria ser definido, de modo que cada país pudesse adaptar suas legisla- ções, utilizando-se da Convenção como base jurídica de referência. A proposta do Brasil era de pessoa com deficiência “cujas limitações físicas, mentais ou sensoriais, associadas a variáveis ambientais, sociais, econômicas e culturais tem sua autonomia, inclusão e participação plena e efetiva na sociedade estivessem impedidas ou restringidas”. A idéia era enfatizar a combinação entre os aspectos descritivos da deficiência, com os efeitos das características sociais, culturais e econômicas em que se encontra cada indivíduo. O adequado equacionamento dessas variáveis e combinações pode proporcionar, restringir ou impedir o exercício e gozo de direitos. Daí a importância da opção por definir pessoa com deficiência ao invés de focar a definição na deficiência em suas características, era o que dizia o relatório oficial emitido pela Câmara Técnica do Brasil realizada para formações de subsídios e propostas para a última sessão. No Brasil, a nossa legislação ainda categoriza a deficiência segundo critéri- os médicos, sendo a divisão feita em deficiência física, sensorial (visual e auditi- va) e mental. O Decreto nº 5.296/04 atualizou o conceito de nossa legislação conforme aposto abaixo: (...) § 1o Considera-se, para os efeitos deste Decreto: 57 I – pessoa portadora de deficiência, além daquelas previstas na Lei 10.69º de 16 de junho de 2003 a que possui limitação ou incapacidade para o desempenho de atividade e se enquadra nas seguintes categorias: a) deficiência física: alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da função física, apresentando-se sob a forma de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, ostomia, amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral, nanismo, membros com deformidade congênita ou adquirida, exceto as deformidades estéticas e as que não produzam dificuldades para o desempenho de funções; b) deficiência auditiva: perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas freqüências de 500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz e 3.000Hz; c) deficiência visual: cegueira, na qual a acuidade visual é igual ou menor que 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; a baixa visão, que significa acuidade visual entre 0,3 e 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; os casos nos quais a somatória da medida do campo visual em ambos os olhos for igual ou menor que 60o; ou a ocorrência simultânea de quaisquer das condições anteriores; d) deficiência mental: funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como: 1. comunicação; 2. cuidado pessoal; 3. habilidades sociais; 4. utilização dos recursos da comunidade; 5. saúde e segurança; 6. habilidades acadêmicas; 7. lazer; e 8. trabalho; e) deficiência múltipla – associação de duas ou mais deficiências. A sociedade civil pleiteou a substituição da palavra mental para intelectu- al, incluindo também o termo psico-social. Para nosso país, concordar com a inclusão de distúrbios psico-sociais como uma das hipóteses de deficiência, era um problema que poderia dificultar o processo de ratificação da Convenção, já que tratamos como públicos distintos em nossa legislação. No final, aceitando um meio termo, garantindo a redação segundo o modelo social de direitos humanos e que positivasse apenas a deficiência permanente e não a temporá- ria, a definição ficou da seguinte forma: Persons with disabilities include those who have long-term physical, mental, intellectual, or sensory impairments which in interaction with various barriers may hinder their full and effective participation in society on an equal basis with others. Las personas con discapacidad incluyen a aquellas que tengan deficiencias físicas, mentales, intelectuales o sensoriales a largo plazo que, al interactuar con diversas barreras, puedan impedir su participación plena y efectiva en la sociedad, en igualdad de condiciones con las demás. 58 Pessoas com deficiência incluem aquelas que têm limitações permanentes, física, mental, intelectual ou sensorial, as quais, em interação com várias barreiras podem obstacularizar a plena e efetiva participação na sociedade em igualdade de condições com outros (tradução livre). Ocorre que a palavra deficiência não é a mais adequada para definir a resultante da equação social. Vejamos. “No domínio da saúde, deficiência representa qualquer perda ou anormalida- de da estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatómica” (OMS, 1980: 35). Antes da definição da ONU internacionalmente utiliza-se como parâmetro a definição da CIF (Classificação Internacional de Funcionalidades) da OMS (Or- ganização Mundial de Saúde). Os três principais termos apostos na classificação são deficiência, incapacidade e desvantagem. Vale ressaltar que o debate sobre os direitos das pessoas com deficiência não se limita ao fato de que elas devam desfrutar direitos específicos, mas que as mesmas têm o direito de desfrutá-los em igualdade de condições com todos os direitos humanos, sem discriminação. 5. Alguns direitos definidos na Convenção A Convenção contempla artigos que tratam de direitos civis e políticos, direitos econômicos, sociais e culturais, além de direitos específicos de grupos duplamente vulneráveis tais como mulheres com deficiência e crianças com deficiência; fazendo menção à última hora aos indígenas com deficiência entre outras minorias no preâmbulo. A aplicação pois desses artigos será tanto de forma imediata no caso dos primeiros, quanto de forma progressiva no segun- do, seguindo as teorias de direitos humanos que versam sobre a matéria. Assim, trata-se de um tratado complexo, que carrega em si diferentes conceitos para conformar a moldura dos direitos humanos das pessoas com deficiência. Dentre os seus vários artigos podemos citar igualdade e não-discrimina- ção; acessibilidade; direito à vida; situações de risco e emergências humanitári- as; reconhecimento igual como pessoa perante a lei; acesso à justiça; liberdade e segurança da pessoa; liberdade de expressão e opinião e acesso à informação; respeito para com o lar e a família; educação; saúde; habilitação e reabilitação; trabalho e emprego, participação na vida pública e política; participação na vida cultural, recreação, lazer e esporte; dados e estatísticas; cooperação internacio- nal; monitoramento; entre outros. São 50 ao total. O artigo referente à educação (Art. 24) é um dos emblemáticos que simbolizam a mudança de paradigma tão falada pelas delegações dos Estados e pela sociedade civil, reforçando a idéia de a educação deve ser inclusiva por princípio, sendo reservada à escola especial um papel residual complementar e nunca excludente. 59 Quanto aos artigos referentes às mulheres com deficiência e crianças com deficiência (Arts. 6 e 7), considerando que tanto as mulheres quanto as crianças têm convenções específicas na ONU, muitos países alegaram inicial- mente que não isso seria preciso. No entanto, ao final, houve consenso sobre a necessidade de especificação de questões de gênero e idade na Convenção. No artigo sobre cooperação internacional (Art. 32) o texto recebeu contri- buições expressivas dos países em desenvolvimento que incluíram diferentes formas de cooperação para além da possibilidade de aportes financeiros. A transversalidade do tema da deficiência foi exigida desde o primeiro parágrafo do artigo que determina que os Estados Partes devem garantir que a coopera- ção internacional, incluindo o desenvolvimento de programas internacionais, devem ser inclusivos e acessíveis a pessoas com deficiência. Também determi- na o artigo que os estados deverão facilitar e suportar o desenvolvimento de capacidades e estruturas, por meio de intercâmbio e troca de informações, ex- periências, programas de treinamento e boas práticas. Em seguida, há a obriga- ção de facilitar a cooperação em pesquisa e acesso ao conhecimento científico e tecnológico, terminando o listado com o dever de prover assistência técnica e econômica, como apropriado, incluindo a facilitação do acesso e o compartilhamento de tecnologias assistivas acessíveis, e por meio de transfe- rências de tecnologias. Na categoria dos artigos mais difíceis de chegar ao consenso, está a capa- cidade jurídica das pessoas com deficiência (Art. 12) que na última plenária ganhou uma nota de rodapé que está sendo alvo de muitas discussões no Drafiting Group, por provocação da incansável sociedade civil. A nota diz que em árabe, chinês e russo (metade das línguas oficiais da ONU) o termo capacidade legal se refere a capacidade legal para direitos, ao invés de capacidade legal para agir9. A discussão está centrada no modelo proposto pelo movimento dos so- breviventes psiquiátricos, entre outros, que solicita que no texto conste que as pessoas com deficiência são titulares do exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com outros. Alguns concordam que existem graus de tutelas necessárias como apoio, mas não houve consenso sobre a representação pessoal. A solução intermediária foi ainda mencionar as salva-guardas que pode- rão ter as pessoas com deficiência e que deverão ser proporcionais as medidas que afetem os direitos e os interesses das pessoas. Um passo importante também foi a positivação de que os Estados Par- tes deverão garantir o igual direito das pessoas com deficiência a possuir ou herdar propriedades, controlar seus assuntos financeiros e ter igual acesso a contas bancárias, empréstimos, hipotecas e outras formas de crédito financei- ro, por meio de todas as medidas apropriadas e efetivas, garantindo ainda que 60 as pessoas com deficiência não sejam arbitrariamente desprovidas de seus pertences10. O monitoramento internacional (Art. 34) foi um dos artigos mais nevrálgicos. Um grupo liderado por Egito, Sudão (líder dos países árabes), China e outros países do sudeste asiático bloqueou a negociação alegando que não queriam que tivesse Comitê de monitoramento pois o recém criado Conselho de Direitos Humanos da ONU estava estudando uma solução para a unificação do sistema de monitoramento dos tratados. Por outro lado, países como Costa Rica, México, Brasil, Liechtenstein e Finlândia (em nome da União Européia), advogavam por criar mecanismos mais progressivos de monitoramento. Ao final, os blocos tão extremos chegaram a um consenso que resultou na existência de um Comitê que começará com 12 membros assim que a Convenção entrar em vigor e contará com 6 membros mais após 6 ratificações adicionais, totalizando 18 membros. Uma conquista importante é que o Comitê deverá considerar na sua composição distribuição geográfica eqüitativa, representação de diferentes formas de civilização e de sistemas de princípios jurídicos, balanço de gênero e participação de especialistas com deficiência. Esta última característica foi mérito do IDC que lutou até o último minuto para ver as pessoas com deficiência sendo contempladas no monitoramento de sua própria Convenção. Dentre os mecanismos de monitoramento, permaneceram no corpo da Convenção os Relatórios que deverão ser enviados pelos Estados Partes e as Conferências que entre eles deverão ser realizadas. Para o Protocolo Facultati- vo, que foi negociado e deverá ser aprovado em conjunto na 61ª Assembléia Geral da ONU ficaram as comunicações individuais que poderão ser apresenta- das ao Comitê e os procedimentos de inquérito, cuja condução será de compe- tência do Comitê. A proposta da sociedade civil de ter um Ombudsman internacional não foi alcançada mas o relator especial da deficiência responsável pelas Normas Uniformes continuará exercendo seu mandato. Ombudsman deste tratado sere- mos todos nós! 6. Entrada em vigor na ONU e ratificação na legislação brasileira (EC 45/04) Em 30 de março de 2007 houve na ONU uma cerimônia que abriu o texto para as assinaturas. 84 (oitenta e quatro) países firmaram o texto da Convenção e 44 (quarenta e quatro) do Protocolo Facultativo. O Brasil firmou tanto a Con- venção quanto o Protocolo. Para que os dois instrumentos entrem em vigor, são necessários 20 (vinte) depósitos legais na ONU de ratificações de Estados Par- 61 tes. A Jamaica foi o único país signatário que já o fez quando da assinatura, pois o seu sistema jurídico nacional assim permite. Os demais países, em sua maio- ria, terão que passar por um processo de ratificação semelhante ao brasileiro, que prescinde de aprovação do Poder Legislativo e Executivo. A divergência existente de interpretação sobre a hierarquia dos tratados de direitos humanos em relação à legislação nacional brasileira não terá lugar no caso da Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência se esta for aprovada no Congresso Nacional com o quorum qualificado de 3/5 (três quintos). Isto porque a Emenda Constitucional nº 45/04 introduziu no ordenamento jurídico regra que determina que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos terão status de norma constitucional desde que sejam aprova- dos por quorum específico no Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos respectivos membros. A possibilidade de que o texto da Convenção seja formalmente incorpo- rado à Constituição coloca o tema em alta relevância na agenda da inclusão das pessoas com deficiência na sociedade brasileira, orientando as demais normas de como deverão ser seus dispositivos. Desta forma, o projeto de lei do Estatu- to da Pessoa com Deficiência deverá seguir os princípios e regras dispostos no tratado internacional. 7. Conclusões As pessoas com deficiência têm uma herança histórica de invisibilidade fática e institucionalizada que era tida como existente desde sempre. Este início de século XXI sela a construção de direitos iniciada em 1945 no pós-guerra e inaugura uma nova Era de Direitos Inclusivos. A principal contribuição deste tratado internacional é a positivação da mudança do paradigma da visão da deficiência no mundo, que passa do modelo médico e assistencialista, no qual a deficiência é tratada como um problema de saúde, para o modelo social de direitos humanos, no qual a deficiência é resul- tante da equação de interação da limitação funcional com o meio. Esta transfor- mação deve mudar o planejamento das políticas públicas do mundo inteiro. Ademais, esta Convenção servirá como importante ferramenta de transfor- mação social, empoderando pessoas com deficiência, suas famílias e suas organi- zações representativas para buscarem a concretização de seus direitos, interagindo em igualdade de condições com os demais atores sociais, organismos governa- mentais e internacionais, além das organizações de direitos humanos. A sociedade inclusiva não é só um desejo social mas um direito de todos os seus membros. Havia - como ainda hoje há em diferentes proporções - muitas lições a aprender. A força do sistema internacional de proteção dos direitos huma- 62 nos permitirá fortalecer o poder de argumentação por uma sociedade mais justa, igualitária e inclusiva. A semente plantada nas Nações Unidas florescerá e gerará frutos inimagináveis, desde que, entendida como potente ferramenta, seja am- plamente utilizada por nós humanos, operadores do direito ou não. Notas 1 No Brasil, a Lei 10.436/02, regulamentada pelo Decreto 5.626/05, reconhece a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) como meio legal de comunicação e expressão, com estrutura gramatical própria. 2 Histórias disponíveis em http://www.bfi.org.uk/education/teaching/disability/ thinking/ Acesso em 17/08/2006. 3 BOBBIO, Norberto, A Era dos Direitos, Rio de Janeiro: Campus, 2004. 2ª. ed. P. 65. 4 Disponível em http://www.un.org/esa/socdev/enable/disiydp.htm. Acesso em 31/ 08/06. 5 No Brasil, o Decreto nº 3.298/99, regulamentador da Lei nº 7.853/89 que define a Política da Integração Nacional da Pessoa Portadora de Deficiência, foi feito com base nas Normas Uniformes também. 6 Disponível em http://www.un.org/esa/socdev/enable/rapporteur.htm Acesso em 31/08/2006. 7 Esta convenção foi ratificada pelo governo brasileiro por meio do Decreto nº 3.956, de 08 de Outubro de 2001. 8 Para as pessoas com deficiência, a concepção de liberdade deve considerar a acessibilidade para garantia do direito de ir e vir no entorno arquitetônico e na utilização dos canais de comunicação. 9 1. In Arabic, Chinese and Russian, the term “legal capacity” refers to “legal capacity for rights”, rather than “legal capacity to act”. 10 5. Subject to the provisions of this article States Parties shall take all appropriate and effective measures to ensure the equal right of persons with disabilities to own or inherit property, to control their own financial affairs and to have equal access to bank loans, mortgages and other forms of financial credit, and shall ensure that persons with disabilities are not arbitrarily deprived of their property. Bibliografia ALVES, José Augusto Lindgren. A Arquitetura Internacional dos direitos Humanos São Paulo: FTD, 1997. ARAUJO, Luiz Alberto David. Pessoa Portadora de Deficiência 3 – Proteção Constitucional das Pessoas Portadoras de Deficiência, 3ª ed. Brasília: Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, 2002. ASSIS, Olney Queiroz e Lafaiete Pussoli. Pessoa Deficiente – Direitos e Garantias (constitucionais, civis, trabalhistas, eleitorais, tributários e previdenciários),1ª ed. São Paulo: Edipro, 1992. 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Demonstra o quanto já se avançou na seara da não-discriminação, o que impede interpretações da nova Convenção mais restritivas ao acesso a direitos e garantias. Identifica as contribuições trazidas pela definição de discriminação da Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência ao estudo do direito de todos os seres humanos à não-discriminação, somando seus elementos aos que podem ser extraídos das demais convenções do gênero. Palavras chave: Convenções, deficiência, inclusão, igualdade, discriminação, tratamento desigual, discrímen, razoabilidade, adaptação razoável. Abstract: Analysis of the definition of discrimination on the UN Convention on the Rights of Persons with Disabilities, from a comparison among a variety of definitions from international treaties. This new definition shows the advancements already achieved in the area of non-discrimination, which hinders more restrictive interpretations of the new Convention to access to rights and guarantees. It identifies the contributions brought by the definition of discrimination from the Convention on Rights of the Persons with Disabilities to the study of rights of all human beings to non-discrimination, adding elements to those extracted from other conventions. Keywords: Conventions, disabilities, inclusion, equal opportunity, discrimination, uneven treatment, discrímen, reasonability, reasonable adaptation. 67 1. Introdução A definição de discriminação da Convenção da Organização das Nações Uni- das sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência consta de seu Artigo 2, nos seguintes termos: Discriminação por motivo de deficiência significa qualquer diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência, com o propósito ou efeito de impedir ou impossibilitar o reconhecimento, o desfrute ou o exercício, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais nas esferas política, econômica, social, cultural, civil ou qualquer outra. Abrange todas as formas de discriminação, inclusive a recusa de adaptação razoável. Como a Convenção se refere ao termo “adaptação razoável”, também traz a sua definição logo em seguida: Ajustamento razoável significa a modificação necessária e adequada e os ajustes que não acarretem um ônus desproporcional ou indevido, quando necessários em cada caso, a fim de assegurar que as pessoas com deficiência possam desfrutar ou exercitar, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, todos os direitos humanos e liberdades fundamentais. A Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência seguiu a mesma técnica utilizada em outras convenções do gênero, ou seja, de sempre trazer, em seus artigos introdutórios, a definição de discriminação com a finalidade de oferecer elementos para garantir a não-discriminação. Uma de suas inovações foi a menção à adaptação ou ajustamento razoá- vel, que tomaremos como sinônimos. Neste trabalho, vamos fazer um cotejo entre as várias definições de discri- minação constantes dos mais diversos tratados internacionais para que possa- mos saber quais as contribuições trazidas pela definição de discriminação da Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência ao estudo do direito de todos os seres humanos à não-discriminação. 2. Os tratados e convenções internacionais que tratam do direito à não-discriminação, sua relevância e os elementos que podem ser deles extraídos Os documentos dessa natureza celebrados no âmbito da ONU e de outros organismos como a OEA, por exemplo, são de extrema importância indepen- dentemente até mesmo de sua adesão por um número significativo de países. É “o reconhecimento universal de que, em razão dessa radical igualdade, nin- guém – nenhum indivíduo, gênero, etnia, classe social, grupo religioso ou nação - pode afirmar-se superior aos demais” (COMPARATO, 2005, p. 1). Nosso interesse pelos tratados que definem o que é discriminação decor- re do fato de que são eles que nos ajudam a resolver o dilema da aplicação do 68 princípio da igualdade, do alcance da “igualdade justa”. Os demais tratados con- têm basicamente proclamações sobre esse direito, apontando medidas para o combate à discriminação e alcance da igualdade plena, mas trazem poucos elementos que auxiliam o intérprete na aplicação do princípio da igualdade e, conseqüentemente, na garantia do direito à não-discriminação. Se o objetivo do Direito é o alcance da Justiça, ou, de acordo com os jurisconsultos romanos, “dar a cada um o seu”, o princípio da igualdade, aplica- do de forma eficaz, sem discriminações, é o caminho para a realização desse nobre escopo. O grande dilema, insistimos, está nesta aplicação eficaz do princípio da igualdade. Está em saber em qual hipótese “tratar igualmente o igual e desigual- mente o desigual”, fórmula proposta também na Antigüidade, por Aristóteles, para o alcance da Justiça, mas que não eliminou o problema para se chegar a uma “igualdade justa”, no dizer da doutrina especializada. A utilização da fórmu- la aristotélica, pura e simplesmente, já demonstrou que, em certos casos, ela pode deixar de levar à Justiça e passar a configurar uma conduta discriminatória. Logo, em razão de sua sapiência, ela jamais foi alterada, mas vem sendo cons- tantemente lapidada. A doutrina e jurisprudência existentes, ainda que com matizes diferentes, oferecem, como solução, o imperativo de tratamento igual para todos, admitin- do-se os tratamentos diferenciados apenas como exceção e desde que eles tenham um fundamento razoável para sua adoção. Mas, infelizmente, mesmo com esses aprimoramentos, a história da hu- manidade é prova inequívoca de que eles não foram suficientes, pois as situa- ções de exclusão de direitos ainda são muito graves. E não é difícil encontrar- mos situações desse tipo que contam com a aprovação de profissionais do Direito, mesmo após valerem-se dos critérios apontados pela doutrina para a aplicação do princípio da igualdade, que se baseiam fundamentalmente na aná- lise da razoabilidade1 ou não de determinado tratamento diferenciado. O campo dos direitos das pessoas com deficiência, por exemplo, é farto de decisões “razoáveis” para muitos e que, na verdade, negam direitos e garantias funda- mentais da pessoa humana. Acreditamos que um dos motivos pelos quais isto ocorre é o de que há uma grande margem de discricionariedade por parte do intérprete, na análise dessa razoabilidade. Isto faz com que muitas pessoas, principalmente as perten- centes às chamadas minorias, tenham seus direitos negados. Neste cenário, mesmo havendo a constante garantia nas Constituições em geral em relação à igualdade, como é o caso do Brasil, passaram a surgir con- venções e tratados internacionais reafirmando o direito de todos os seres huma- 69 nos à igualdade e dando especial ênfase à proibição de discriminação em virtu- de de raça, sexo, religião e deficiência. Tais documentos trouxeram significativos avanços, pois oferecem alterna- tivas para a solução do problema relacionado à aplicação eficaz do princípio da igualdade. Devido a eles, não precisamos mais nos ater, quase exclusivamente, à análise da razoabilidade e proporcionalidade de determinado tratamento dife- renciado. Mesmo assim, as convenções e tratados internacionais têm sido pouco explorados pela doutrina e jurisprudência, e o pior, pelas autoridades que deve- riam dar cumprimento a eles. Esperamos com este trabalho tornar o conteúdo da Convenção dos direi- tos das pessoas com deficiência, especialmente no que diz respeito à discrimi- nação, realmente acessível e, assim, contribuir para a sua implementação. Passemos então a uma análise mais detalhada dos documentos que lhe antecederam para que possamos compreendê-la melhor. 2.1 As definições de discriminação Da transcrição dessas definições vamos perceber que há uma constante afirmação, bastante categórica, no sentido de que situações como raça, sexo, religião e deficiência não podem ser tidas como fatores de discrímen, ou seja, de desequiparação. Tal vedação, a princípio, colide com toda a doutrina. É que os ensinamentos doutrinários, seguidos pela jurisprudência, apesar de também proibirem discri- minações com base nos fatores acima apontados, admitem tratamentos desi- guais, mesmo aqueles que negam direitos, exigindo apenas que esses trata- mentos tenham um fundamento razoável, na concepção do intérprete, e que não firam o texto constitucional. As definições de discriminação que colacionaremos logo a seguir minimizam essa problemática, pois não apenas inovam em vários pontos, como também nos parecem mais firmes na proibição de discriminações fundadas em qualida- des subjetivas, além de serem mais específicas quando da admissão apenas de certos tratamentos desiguais, não deixando a análise de sua razoabilidade na dependência exclusiva do intérprete. 2.1.a Convenção Concernente a Discriminação em Matéria de Emprego e Profissão (1958) É o primeiro documento que localizamos a trazer uma definição de discri- minação, tendo-o feito em seu Artigo 1º: Para os fins da presente convenção o termo “discriminação”, compreende: 70 - toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão; - qualquer outra distinção, exclusão ou preferência que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou tratamento em matéria de emprego ou profissão, que poderá ser especificada pelo Membro interessado depois de consultadas as organizações representativas de empregadores e trabalhadores, quando estas existam e outros organismos adequados (item 1, alíneas, “a” e “b”). Previu, no mesmo artigo, que distinções, exclusões ou preferências fun- dadas em qualificações exigidas para um determinado emprego não são consi- deradas como discriminação (item 2). Em seus Arts. 4 e 5, deu início a uma tradição que seria observada nas demais convenções dessa natureza: especificou as exceções à impossibilidade de tratamentos diferenciados2 com base em fatores como raça, sexo, religião, etc. Vale transcrevê-los antes de passarmos à próxima convenção: Artigo 4 Não são consideradas como discriminação quaisquer medidas tomadas em relação a uma pessoa que, individualmente, seja objeto de uma suspeita legítima de se entregar a uma atividade prejudicial à segurança do Estado ou cuja atividade se encontre realmente comprovada, desde que a referida pessoa tenha o direito de recorrer a uma instância competente, estabelecida de acordo com a prática nacional. Artigo 5 1. As medidas especiais de proteção ou de assistência previstas em outras convenções ou recomendações adotadas pela Conferência Internacional do Trabalho não são consideradas como discriminação. 2. Qualquer Membro pode, depois de consultadas as organizações representativas de empregadores e trabalhadores, quando estas existam, definir como não-discriminatórias quaisquer outras medidas especiais que tenham por fim salvaguardar as necessidades particulares de pessoas em relação às quais a atribuição de uma proteção ou assistência especial seja, de uma maneira geral, reconhecida como necessária, por razões tais como o sexo, a invalidez, os encargos de família ou o nível social ou cultural. 2.1.b Convenção relativa à Luta contra a Discriminação no campo do Ensino (1960) Trata-se, como de regra no tocante a documentos internacionais, de do- cumento bastante desconhecido na seara jurídica e raramente invocado como fonte, mas que é de grande relevância na luta ainda existente de certos grupos de pessoas por uma educação, sem exclusões fundadas em condições subjeti- vas: 71 Artigo I Para os fins da presente Convenção, o termo “discriminação” abarca qualquer distinção, exclusão, limitação ou preferência que, por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião publica ou qualquer outra opinião, origem nacional ou social, condição econômica ou nascimento, tenha por objeto ou efeito destruir ou alterar a igualdade de tratamento em matéria de ensino, e, principalmente: a) privar qualquer pessoa ou grupo de pessoas do acesso aos diversos tipos ou graus de ensino; b) limitar a nível inferior a educação de qualquer pessoa ou grupo; c) sob reserva do disposto no artigo 2 da presente Convenção, instituir ou manter sistemas ou estabelecimentos de ensino separados para pessoas ou grupos de pessoas; ou d) de impor a qualquer pessoa ou grupo de pessoas condições incompatíveis com a dignidade do homem. As reservas a que se refere a alínea c, no tocante à proibição de escolas separadas para pessoas ou grupos de pessoas, dizem respeito apenas às hipó- teses de escolas separadas para alunos de sexos diferentes, por motivo de religião ou lingüístico, ou ainda a estabelecimentos privados de ensino. Mesmo tais exceções são admitidas somente quando observados os requisitos e objeti- vos abaixo especificados: Artigo II Quando admitidas pelo Estado, as seguintes situações não são consideradas discriminatórias nos termos do artigo 1 da presente Convenção: a) a criação ou a manutenção de sistemas ou estabelecimentos de ensino separados para alunos dos dois sexos, quando estes sistemas ou estabelecimentos oferecerem facilidades equivalentes de acesso ao ensino, dispuserem de um corpo docente igualmente qualificado, assim como locais escolares e equipamentos da mesma qualidade, e permitirem seguir os mesmos programas de estudos ou equivalentes; b) a criação ou manutenção por motivos de ordem religiosa ou lingüística, de sistemas ou estabelecimentos separados que proporcionem um ensino que corresponda à escolha dos parentes ou tutores legais dos alunos, se a adesão a estes sistemas ou a freqüência desses estabelecimentos for facultativa e se o ensino proporcionado se coadunar com as normas que possam ter sido prescritas ou aprovadas pelas autoridades competentes, particularmente para o ensino do mesmo grau; c) a criação ou manutenção de estabelecimentos de ensino privados, caso estes estabelecimentos não tenham o objetivo de assegurar a exclusão de qualquer grupo, mas o de aumentar as possibilidades de ensino que ofereçam os poderes públicos, se seu funcionamento corresponder a 72 esse fim e se o ensino prestado se coadunar com as normas que possam ter sido prescritas ou aprovadas pelas autoridades competentes, particularmente para o ensino do primeiro grau. Quanto a eventuais tratamentos preferenciais ou benefícios, dispõe, em seu Artigo III, que não deve ser admitida qualquer ajuda ou facilidade que não seja baseada no mérito ou nas necessidades do aluno (alínea c). Ainda no mes- mo artigo, é expressa a obrigação dos Estados de conceder aos estrangeiros que residirem em seu território o mesmo acesso ao ensino que o concedido aos próprios nacionais (alínea e). A referida convenção, apesar da data, é bastante avançada em seu objetivo de proporcionar a toda criança o direito de acesso à educação, sem discriminações. 2.1.c Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial (1965) A definição de discriminação consta de seu Artigo 1º, parágrafo 1: [...] a expressão “discriminação racial” significará toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto ou resultado anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício em um mesmo plano (em igualdade de condição) de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública. Estabelece, no parágrafo 4, do mesmo artigo, como exceção à total proi- bição de tratamentos desiguais o seguinte: Não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar o progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contanto que tais medidas não conduzam, em conseqüência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido alcançados os seus objetivos. As condições acima referidas configuram vetores a serem observados em caso de adoção de medidas afirmativas, aqui denominadas de especiais. 2. 1.d Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher (1979) Art. 1º [...] a expressão “discriminação contra a mulher” significará toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos políticos, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo. 73 Observe-se que nesta definição a preferência não foi incluída entre as espécies vedadas de tratamentos desiguais. Além disso, também estabelece exceções a esta vedação: Art. 4º, Itens 1 e 2 A adoção pelos Estados-partes de medidas especiais de caráter temporário destinadas a acelerar a igualdade de fato entre o homem e a mulher não se considerará discriminação na forma definida nesta Convenção, mas de nenhuma maneira implicará, como conseqüência, a manutenção de normas desiguais ou separadas; essas medidas cessarão quando os objetivos de igualdade de oportunidade e tratamento houverem sido alcançados. A adoção pelos Estados-partes de medidas especiais, inclusive as contidas na presente Convenção, destinadas a proteger a maternidade, não se considerará discriminatória. Esta última ressalva, que visa, em última análise, a proteção do direito à vida do nascituro, deve gerar algumas reflexões, conforme veremos mais adiante. 2.1.e Declaração para a Eliminação de todas as formas de Intolerância e de Discriminação baseada em Religião ou Crença (1982) Art. 2º, parágrafo 2: [...] a expressão “intolerância e discriminação baseada em religião ou crença” significa qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em religião ou crença, tendo como propósito ou efeito a anulação ou prejuízo do reconhecimento, desfrute, ou exercício dos direitos humanos e liberdades fundamentais em bases iguais. Faz a mesma proibição relativa a tratamentos que impliquem distinção, exclusão, restrição ou preferência e, diferentemente das definições anterio- res, não admite qualquer tipo de exceção, mesmo a título das chamadas “me- didas especiais”. 2.1.f Convenção Interamericana para a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência (1999) Esta convenção traz a mais completa, até então, das definições de discri- minação constantes desses documentos internacionais. Talvez isto tenha ocorri- do porque o público formado pelas pessoas com deficiência ainda seja um dos mais afetados pela falta de acesso a direitos, às vezes até mesmo pela boa intenção de alguns em protegê-los de certas situações ou por considerá-los menos aptos para determinadas atividades, principalmente as relacionadas ao trabalho, à educação e ao lazer. Eis a sua definição: 74 Artigo I, parágrafo 2, alínea a [...] o termo “discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência” significa toda diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência, antecedente de deficiência, conseqüência de deficiência anterior ou percepção de deficiência presente ou passada, que tenha o efeito ou propósito de impedir ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício por parte das pessoas portadoras de deficiência de seus direitos humanos e suas liberdades fundamentais. Constata-se que, entre as hipóteses vedadas de tratamentos desiguais, foram contempladas a diferenciação (ou distinção, conforme as convenções anteriores), exclusão ou restrição. Não foi feita referência, nesta parte, à prefe- rência, levando à conclusão de que esta é uma hipótese de tratamento diferen- ciado ou desigual permitida. Entre os seus esclarecedores elementos, inovou no tocante à não obrigatoriedade de aceitação sequer dos tratamentos diferenciados permitidos, bem como ao estabelecer as seguintes condições: Artigo I, parágrafo 2, alínea c Não constitui discriminação a diferenciação ou preferência adotada pelo Estado-parte para promover a integração social ou o desenvolvimento pessoal dos portadores de deficiência, desde que a diferenciação ou preferência não limite em si mesma o direito à igualdade dessas pessoas e que elas não sejam obrigadas a aceitar tal diferenciação ou preferência. Nos casos em que a legislação interna preveja a declaração de interdição, quando for necessária e apropriada para o seu bem-estar, esta não constituirá discriminação. 2.2 Análise dos elementos ou requisitos constantes dessas definições Tais documentos oferecem um rol de elementos para a implementação do princípio da igualdade, com vistas à não-discriminação. Indicaremos aqueles que consideramos relevantes nessas definições e que podem ser agregados aos tradicionalmente apontados pela doutrina para a implementação do princípio da igualdade. Após, verificaremos se o texto da Convenção da ONU sobre deficiência é compatível ou não com esses requisitos e se traz algum elemento novo. 2.2.a Impossibilidade de tratamento desigual que implique qualquer forma de negação de direitos humanos e liberdades fundamentais Mesmo que tenhamos a doutrina e jurisprudência no sentido de não admi- tir discriminações fundadas em atributos do ser humano, as mesmas doutrina e jurisprudência admitem que, em certas situações, após um juízo de razoabilidade, alguns direitos sejam negados a pessoas que apresentam qualidades e atributos muito diferentes da maioria que compõe o cenário ativo do País. 75 Caso emblemático é, no Brasil, o da não admissão pelo Poder Judiciário de pessoas cegas para exercer a função de magistrado3. Logo, é preciso afirmar e reafirmar a impossibilidade de discriminação com base em qualidades intrínsecas do sujeito. É o que têm feito as convenções internacionais citadas. Portanto, o primeiro ponto entre elas a ser ressaltado é o de que, de manei- ra geral, todas essas convenções vedam tratamentos que resultem na anulação, impedimento, prejuízo ou restrição do reconhecimento, gozo ou exercício, em condições de igualdade, de direitos humanos e liberdades fundamentais. Não se fala aqui em razoabilidade ou correlação lógica. Se o resultado ou objetivo tiver sido a negação de direitos, trata-se de discriminação. Existem, é verdade, exceções a esta vedação, mas são muito bem delineadas. A primeira, extraída da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979), refere-se à admissão de tratamentos desiguais, mesmo que impliquem negação de direitos, se o objetivo for a prote- ção do direito à vida, que é tutelada com peculiar ênfase nos tratados e conven- ções internacionais em geral. Mesmo assim, há de ficar caracterizado, e aí sim entra o critério da razoabilidade, que não há outra forma de se resguardar a vida do indivíduo ou do nascituro, senão a negação de direitos. A segunda e última exceção é extraída da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação com a Pessoa Portadora de Deficiência. Refere-se à possibilidade de interdição judicial, nos casos em que a legislação do país contemple tal medida. Mesmo assim, trata-se de medida que, diante dos novos termos da Convenção da ONU no tocante à capacidade civil das pessoas com deficiência, deve ser tomada com absoluta reserva e, quando utilizada, é preciso que seja o menos restritiva possível. Outro ponto comum entre as convenções é o de bastar o resultado para caracterização da conduta discriminatória. Ou seja, é irrelevante se a conduta teve ou não propósito ou objetivo de negar o acesso a direitos. Se ficar caracte- rizado este resultado, estará configurada a discriminação. Obviamente que a punição desta ocorrerá nos moldes da legislação de cada País. No caso do Brasil, exige-se o dolo ou a culpa para uma responsabilização em âmbito penal (Art. 18, Código Penal), mas no âmbito civil, a responsabilização é plenamente pos- sível quando presente apenas o resultado e o nexo de causalidade com a con- duta voluntária (Art. 186, Código Civil). Apesar de essas convenções tratarem apenas de alguns destinatários, pois as vedações expressas são para tratamentos que tenham por fundamento, dire- to ou indireto, a raça, sexo, religião, crença ou deficiência, elas podem se aplicar 76 a quaisquer situações de diferenciações dirigidas a seres humanos e que tenham por base, não apenas os fatores acima apontados, mas também língua, opinião política ou outra, origem nacional, étnica ou social, posição econômica, filiação ou orientação sexual4. Por se tratar de negação de acesso a direitos, não se pode aceitar, fora a hipótese extrema e comprovada de proteção à vida, que isto possa ser feito com base em elementos subjetivos relacionados à pessoa humana, mesmo em situações que alguns consideram razoáveis. De outro lado, precisamos lembrar que devem ser admitidos tratamentos desiguais que, mesmo acarretando a negação de direitos, são baseados em fato- res objetivos e constantes do texto constitucional. Por exemplo: na Constituição brasileira de 1988, consta a proibição do voto para pessoas com menos de 16 (dezesseis) anos e a exigência de 03 (três) anos de experiência para as carreiras jurídicas, entre outras situações. São diferenciações que levam a exclusões e restrições mas, além de cons- tarem no plano constitucional, refletem condições objetivas, que colhem a to- dos os cidadãos indistintamente, independentemente do sexo, condição física ou mental, raça, orientação sexual, entre outros fatores que freqüentemente fazem com que a pessoa fique em situação de vulnerabilidade social. Logo, em qualquer análise relacionada à aplicação do princípio da igualda- de se, da identificação do elemento de discrímen ficar caracterizado que este reflete uma condição subjetiva do sujeito, é muito provável que se trate de uma conduta discriminatória. Dizemos provável, pois o tratamento desigual vedado (distinção, exclu- são ou restrição) é aquele que resulta na negação de direitos, ou seja, anulação, impedimento, prejuízo ou restrição do reconhecimento, gozo ou exercício de direitos, em condições de igualdade. Não havendo negação de direitos, há tratamentos diferenciados que po- dem ser admitidos. Aliás, é o que já recomendava Aristóteles: tratar desigual- mente os desiguais. No entanto, como já sabemos, mesmo esta regra, relaciona- da ao tratamento desigual benéfico, não pode ser aplicada sem critérios e as convenções nos fornecem estes critérios. Vejamos, então, quais são eles. 2.2.b Possibilidade de discriminação positiva: tratamentos desiguais que não resultam em discriminação As convenções internacionais que visam eliminar todas as formas de discri- minação preocuparam-se em garantir a possibilidade de promoção de condições concretas de igualdade, o que pode feito pela adoção de medidas especiais ou ações afirmativas. São formas de tratamento que dão preferência e prioridade a 77 certos grupos mais vulneráveis socialmente. Ou seja, enquanto são proibidos os tratamentos desiguais que impliquem negação a direitos em geral, as medidas especiais ou afirmativas são válidas justamente por facilitarem esse acesso. Isto ocorreu na Convenção concernente a Discriminação em Matéria de Emprego e Profissão (1958); na Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial (1965); na Convenção sobre a Elimina- ção de todas as formas de Discriminação contra a Mulher (1979); e na Conven- ção Interamericana para a Eliminação de todas as formas de Discriminação con- tra as Pessoas Portadoras de Deficiência (1999). Entretanto, não é apenas porque determinado tratamento diferenciado facilita o acesso ao direito que ele será admitido. Pensamos que agora tem lugar a análise da razoabilidade desse tratamento para verificar se é real a facilitação alegada. Observe-se que não se trata de usar a razoabilidade como fator final e definitivo para definição sobre a viabilidade ou não de um tratamento diferenci- ado, mas de utilizá-lo como indicador da plausibilidade de adoção de determina- da medida especial, com a única finalidade de se evitar privilégios e novas discriminações sob a roupagem da ajuda. Outra ressalva no tocante à possibilidade de medidas especiais, ou de discriminação positiva, é a que se pode extrair da Declaração para a Eliminação de todas as formas de Intolerância e de Discriminação baseada em Religião ou Crença (1982). Este documento, ao contrário dos demais da mesma espécie, não admite preferências, dispondo que esta é uma das hipóteses vedadas de tratamentos desiguais e não prevê a possibilidade de adoção de medidas espe- ciais. Isto é perfeitamente explicável pelo próprio caráter do direito que essa Declaração protege, que é a liberdade de religião ou de crença, e pela impor- tância da laicidade dos Estados. Pelo exposto, a conclusão que emerge é pela admissão de tratamentos diferenciados, ou medidas especiais, ou ainda, de discriminação positiva, que faci- litem o acesso a direitos, desde que haja justificativa razoável para a sua adoção e que o motivo da diferenciação não seja a religião ou crença. Contudo, isto ainda não basta. Há outras condições para a admissão da discriminação positiva. 2.2.c Condições para que a diferenciação ou preferência não resulte em discriminação Feita a ressalva no tocante a religiões e crenças, cuja convenção não ad- mite sequer preferências a esse título, o que se verifica é que as convenções que visam eliminar a discriminação admitem a adoção de medidas especiais fundamentadas, ou ações afirmativas (discriminações positivas). Contudo, mes- 78 mo em tais casos, há um rol de condições para a admissão dessas medidas especiais. É nessas condições que nos deteremos a partir de agora. 2.2.c.1. Temporariedade das medidas afirmativas A primeira condição para a validade das medidas especiais, mencionada tanto na convenção sobre discriminação racial, como na convenção que se refe- re à discriminação contra a mulher, é a temporariedade. Isto significa que a medida que diferencia para facilitar o acesso a direitos não pode ser utilizada para sempre, pois isto demonstraria que a igualdade não está sendo alcançada. Note-se: apesar da admissão de “tratamento desigual ao desigual”, a finalidade é sempre a promoção da igualdade real. Logo, para que possam mesmo ser temporárias, as medidas afirmativas devem vir acompanha- das de políticas que reduzam cada vez mais essa desigualdade, para que o tratamento diferenciado um dia se torne desnecessário5. 2.2.c.2. A diferenciação ou preferência não pode gerar o exercício de “direitos separados” Esta é uma condição da mais alta relevância, prevista com ênfase apenas nas convenções internacionais. É neste ponto que começam a se descortinar as garantias, para os grupos minoritários, de que os tratamentos desiguais que terceiros consideram necessários, adequados, razoáveis, facilitadores ou protetórios não acabem redundando em discriminação. Essa condição, ainda que com dizeres diferentes, é prevista nas conven- ções que admitem a adoção de medidas afirmativas ou de tratamentos prefe- renciais, também chamados de especiais. Os dizeres são os seguintes e visam o mesmo objetivo: i) não conduzir à manutenção de direitos separados para dife- rentes grupos (Convenção relativa à discriminação racial); ii) não ter como con- seqüência a manutenção de normas desiguais ou separadas (Convenção relati- va à discriminação contra a mulher); iii) não limitar em si mesma o direito à igualdade (Convenção relativa à discriminação contra pessoas com deficiência). O valor desse requisito reside no fato de que, como temos afirmado, a idéia que admite os tratamentos desiguais que correm “à conta das hipóteses aceitáveis, tendo em vista a ordem socioconstitucional”6, deixa uma grande margem de possibilidade de discriminação. Isto porque resta mantido um vasto campo no qual o que vai prevalecer é o entendimento do intérprete do que é “aceitável” ou não, sem se preocupar com a qualidade ou a maneira como aquele direito acabará sendo exercido. Ainda há outros requisitos a serem observados. Prossigamos. 79 2.2.c.3 Não obrigatoriedade de aceitação da diferenciação ou preferência Esta é a condição final e definitiva para o efetivo cumprimento do princí- pio da igualdade, pois realmente elimina a problemática sempre apontada em relação às situações em que terceiros decidem o que é melhor ou razoável para aqueles que recebem o tratamento desigual, ainda que tal tratamento, a princí- pio, seja conferido a título de preferência ou de afirmação. A referida condição consta da Convenção Interamericana para a Elimina- ção de todas as formas de Discriminação contra a Pessoa Portadora de Deficiên- cia (1999), quase nunca citada pela doutrina e, muito menos, pela jurisprudên- cia. Mas o fato é que ela, além de também trazer os esclarecedores elementos já apontados, inovou entre os documentos internacionais que definem discrimi- nação, ao garantir a não obrigatoriedade de aceitação sequer dos tratamentos desiguais considerados possíveis. Vale transcrever novamente: Não constitui discriminação a diferenciação ou preferência adotada pelo Estado-parte para promover a integração social ou o desenvolvimento pessoal dos portadores de deficiência, desde que a diferenciação ou preferência não limite em si mesma o direito à igualdade dessas pessoas “e que elas não sejam obrigadas a aceitar tal diferenciação ou preferência” (Artigo I, parágrafo 2, alínea “b”, grifos nossos). Tal requisito reflete bem o lema do movimento internacional das pessoas com deficiência: “Nada sobre Nós Sem Nós”. Esta frase tem seu embrião no princípio adotado pela Organização Internacional do Trabalho, em sua Conven- ção 159, de 1983, sobre Reabilitação Profissional e Emprego de Pessoas com Deficiência, a qual exige que as organizações representativas de e para pessoas com deficiência sejam sempre consultadas naquilo que lhes diga respeito7. Outra fonte possível para essa exigência de concordância da pessoa inte- ressada com o tratamento desigualador, mesmo benéfico, é a Convenção relati- va aos Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes (1989). Ela prevê que as medidas especiais para salvaguardar as pessoas, as instituições, os bens, as culturas e o meio ambiente dos povos interessados não deverão ser contrári- as aos desejos expressos livremente por eles. Em relação às pessoas com deficiência, destinatários da primeira conven- ção que deixou expressa tal garantia, essa situação é muito freqüente. São abso- lutamente comuns os tratamentos desiguais, de questionável finalidade, mas sempre indicados como protetórios, especiais, etc., que não contemplam a possibilidade de os interessados recusarem sem privação do direito usufruído pela maioria. 80 3. Conjugação dos elementos necessários à não- discriminação já previstos nos tratados e convenções internacionais com a nova Convenção da ONU A nova Convenção da ONU reforça os elementos já apontados e ainda traz um importante esclarecimento. Iremos agora identificar cada um desses elementos em seu texto para verificar se eles permanecem válidos, se devem ser alterados ou especificados. Antes, asseveramos que não há qualquer impropriedade nessa integração que estamos fazendo entre os vários dispositivos constantes de tratados interna- cionais diversos. Isto ocorre porque essas normas internacionais são principiológicas. Elas se entrelaçam e formam um arcabouço de garantias aos seres humanos8. Vamos então à conjugação anunciada neste subtítulo. 3.a Não admissão de tratamentos desiguais, com base direta ou indireta em atributos subjetivos do ser humano (raça, sexo, religião, crença, deficiência, língua, opinião política, origem nacional, filiação, entre outros), que tenham por objetivo ou resultado a anulação, impedimento, prejuízo ou restrição do reconhecimento, gozo ou exercício, de direito humanos e liberdades fundamentais A Convenção do ONU sobre deficiência confirma esse requisito, manten- do as pessoas com deficiência a salvo de tratamentos dessa natureza, ao reafir- mar o seu direito à igualdade e ao definir a discriminação como qualquer dife- renciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência, com o propósito ou efeito de impedir ou impossibilitar o reconhecimento, o desfrute ou o exercício, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais nas esferas política, econômica, social, cul- tural, civil ou qualquer outra. 3.b Possibilidade de adoção de medidas especiais, desde que não sejam relacionadas a religião ou crença e que visem à facilitação do gozo ou exercício do direito, e não a sua negação Para este requisito, há um grande número de dispositivos na Convenção da ONU dando-lhe embasamento, mas o principal deles está na própria defini- ção de discriminação. Ela considera como discriminação a mera recusa de adap- tação ou ajustamento razoável. Isto representa um avanço. Além de tratar da recomendável adoção de medidas afirmativas (discriminação positiva), ela inclui o comportamento omissivo na definição de discriminação. 81 No caso das pessoas com deficiência, são freqüentes as hipóteses em que não há uma recusa direta ao exercício do direito. A recusa fica localizada na promoção das medidas necessárias para garantir que tal direito possa ser exer- cido de fato. Exemplo típico: - se o senhor (cego) quiser se matricular em nosso curso poderá fazê-lo, mas não nos responsabilizamos pela digitalização do ma- terial didático. A pessoa cega requer formalmente a adaptação e a recusa per- manece. Nos termos da nova Convenção da ONU, está expresso que isto tam- bém é discriminação. Contudo, vemos algum risco de interpretações açodadas desse dispositi- vo. É preciso ter cuidado com entendimentos no sentido de que se não for possível a “adaptação razoável” admite-se a negação ao exercício do direito. Tal interpretação seria totalmente equivocada, pois representaria a negação de todo o contexto em que foi traçada a Convenção, ou seja, da insistente proclamação do direito a igualdade e à não-discriminação no acesso aos mesmos bens da vida visados pelos seres humanos em geral. Além disso, seria um passo atrás, vedado pelo princípio do não-retrocesso em se tratando de direitos humanos. Fizemos questão de colacionar todas as convenções anteriores e suas res- pectivas definições, extraindo delas seus requisitos, para demonstrar o quanto já se avançou na seara da não-discriminação. Assim, não se pode aceitar que uma frase extremamente importante dessa Convenção, seja tomada de forma a pro- mover uma negação do acesso a direitos. A definição de adaptação razoável, nos termos do Artigo 2, refere-se à “modificação necessária e adequada e os ajustes que não acarretem um ônus desproporcional ou indevido, quando necessários em cada caso”. O que se quer dizer é que é preciso que o ajuste ou adaptação tenha relação com a necessida- de efetiva da pessoa com deficiência, que esse ajuste deve ser expressamente requerido e justificado. O ônus desproporcional ou indevido diz respeito àquelas situações em que é preciso buscar-se uma solução que contemporize problemas concretos insuperáveis e o direito à igualdade de oportunidades. Vamos a um exemplo. O direito das pessoas com deficiência à acessibilidade arquitetônica exige que os prédios públicos sejam construídos ou reformados de maneira a permitir o seu uso pelas pessoas com deficiência em igualdade de condições com as demais pessoas. Isto abrange entrada pela porta da frente, banheiros adaptados, balcões em altura confortável para usuários em cadeira de rodas, faixas táteis no chão para facilitar o percurso de pessoas com deficiência visual, avisos sonoros nos elevadores, entre muitos outros requisitos. Imagine-se, porém, um edifício construído há várias décadas, no qual os degraus que dão acesso à entrada 82 principal estão assentados justamente sobre as vigas que dão sustentação ao edifício. Quebrar tais degraus comprometeria toda sua estrutura. Como resolver o problema do acesso ao prédio em igualdade de condições? Entendemos que há várias soluções possíveis, entre elas a abertura de outra entrada, que pode ser usada por pessoas com e sem deficiência, ao nível da garagem, por exemplo. Mas, e se alguma organização exigisse do órgão situado nesse prédio que simplesmente quebrasse os degraus da entrada prin- cipal, originária, para permitir o acesso? Entendemos que esta não seria uma “adaptação razoável”, pois imporia um ônus desproporcional. É esse tipo de situação que a Convenção quer esclarecer. Isso não significa que, por poder recusar essa adaptação, a administração daquele local não deva buscar alternativas razoáveis para permitir o acesso das pessoas com deficiência, pois, uma coisa é certa, sem este acesso elas não podem ficar, ainda que tenham que aceitar alguma medida que não possa ser considerada como a solução ótima. Outro ponto indiscutível é o que decorre da simples leitura do texto: a obrigatoriedade de se promover as adaptações razoáveis. Ou seja, aquelas adap- tações freqüentemente solicitadas pelas pessoas com deficiência e que só de- pendem da conscientização sobre sua importância e pertinência: rampas de acesso, banheiros adaptados, intérpretes de língua de sinais, material digitalizado ou em braile etc. Portanto, o requisito relativo às medidas especiais, para nós, deveria ser desmembrado, para deixar expresso que uma coisa são as medidas especiais ou ações afirmativas recomendáveis e que, freqüentemente se traduzem em polí- ticas políticas relacionadas a tratamentos prioritários, quotas etc.Outra são medi- das que se traduzem em adaptações razoáveis as quais, se solicitadas justificadamente, são obrigatórias. 3.d Necessidade de que as medidas especiais sejam razoáveis, ou proporcionais; que não impliquem manutenção de direitos separados; que a pessoa interessada, ou seu responsável, não esteja obrigada a aceitar tal tratamento diferenciado ou mesmo a preferência; e que sejam temporárias. Também aqui pensamos que há uma confluência entre as convenções, cabendo apenas o mesmo desdobramento relacionado às ações afirmativas e as adaptações razoáveis. Pensamos que ambas devem observar o requisito da proporcionalidade, ou seja, devem ser justificadas e não podem acarretar o exercício separado de direitos. A nova Convenção da ONU é clara quanto à impossibilidade de exercí- 83 cio separado de direitos tanto na definição de discriminação, quanto na defini- ção de ajustamento razoável. Ela sempre repete que garante o exercício de direitos “em igualdade de oportunidades com as demais pessoas”. Quanto à proporcionalidade, ela decorre do adjetivo “razoável” e do termo “quando ne- cessários”, constantes da definição de ajustamento. A não obrigatoriedade de aceitação do tratamento diferenciado também é facilmente percebida e decorre do espírito da Convenção que deixa sempre expressa a capacidade das pessoas com deficiência quanto ao poder de decisão naquilo que lhes interessa. O mesmo ocorre em relação aos tratamentos protetórios. Seria outro retrocesso imaginar-se que eles não podem ser recusa- dos. O ajustamento razoável, por sua vez, deve ser requerido9, logo é faculdade colocada à disposição de quem tem deficiência e a ela cabe dizer qual é a sua necessidade. Finalmente, entendemos que a exigência de temporariedade é a única que se aplica exclusivamente às medidas afirmativas e não às adaptações razo- áveis, pela própria natureza de uma e de outra. 4. Conclusões A definição de discriminação constante da Convenção da Organização das Nações Unidas sobre os direitos das pessoas com deficiência contribuiu signifi- cativamente para o estudo dos princípios da igualdade e da não-discriminação. Suas contribuições somam-se às trazidas pelas demais convenções do mes- mo gênero que, desde 1958, vêm aprimorando o conceito de discriminação. As definições anteriores contêm requisitos que impedem interpretações da nova Convenção que levem a qualquer retrocesso na luta pela garantia dos direitos das pessoas com deficiência. Do cotejo entre as várias definições de discriminação constantes de docu- mentos internacionais, com as contribuições trazidas pela definição de discrimi- nação constante da nova Convenção da ONU, temos como requisitos para a implementação do princípio da igualdade com vistas à não discriminação: · não admissão de tratamentos desiguais, com base direta ou indireta em atributos subjetivos do ser humano (raça, sexo, religião, crença, deficiência, língua, opinião política, origem nacional, filiação, entre outros), que tenham por objetivo ou resultado a anulação, impedimento, prejuízo ou restrição do reconhecimento, gozo ou exercício, de direito humanos e liberdades fundamentais; · possibilidade de adoção de medidas especiais (adaptações razoáveis ou medidas afirmativas) desde que i) visem à facilitação do gozo ou exercício do direito e não a sua negação, ii) a pessoa interessada, ou seu responsável, não esteja obrigada a aceitar tal tratamento diferenciado ou mesmo a 84 preferência, bem como iii) que não impliquem manutenção de direitos separados; · impossibilidade de recusa de adaptações razoáveis necessárias às pessoas com deficiência; · necessidade de que as medidas afirmativas sejam i) razoáveis ou proporcionais, ii) temporárias e iii) não relacionadas a religião ou crença. Notas 1 Não confundir essa menção à “razoabilidade” com a “adaptação razoável” referida na Convenção da ONU sobre deficiência. Esse termo será analisado mais adiante. A “razoabilidade” a que estamos nos referindo neste momento é o argumento freqüentemente utilizado para justificar algum tratamento diferenciado (nem sempre discriminatório) para grupos minoritários. 2 Tendo em vista que as referidas definições seguem um certo padrão, esclarecemos desde já que, em nossos comentários, vamos tomar os termos diferenciação, tratamento diferenciado ou desigual como gênero (discriminação positiva ou negativa), do qual as convenções estabelecem como espécies qualquer tipo de distinção, exclusão, restrição ou até mesmo preferência, benefícios, etc. 3 Ver o RE 1000.001-DF, julgado em 29/03/1984. 4 Enumeração baseada na Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (1989), na qual acrescentamos a orientação sexual. Este acréscimo pode ser embasado na decisão do Comitê de Direitos Humanos que, no caso Toone versus Austrália, estabeleceu que a referência ao “sexo”, no artigo 2, parágrafo 1 (da não-discriminação), e 26 (da igualdade perante a lei), do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos deveria ser entendida pela inclusão da questão da orientação sexual (Cfe. http://www.hrea.net/learn/guides/lgbt_pt.html, acesso em 17.11.2005). 5 Nesse sentido, é importante consultar a obra de Pierucci, Ciladas da diferença, especialmente quando conclui que: “...uma política que hoje queira agir sobre as condições de vida reais dos ‘diferentes’ devesse preocupar-se também em reconstruir ‘o geral’ e não se deixar cair presa da essencialização das diferenças com vistas à sua institucionalização e canonização (Rouanet, 1994), que não prometem outra coisa senão pavimentar a avenida e balizar o percurso rumo a um beco sem saída minado de explosivos” (1999, p. 117). V. ainda Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2005, p. 116) 6 Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 120.305-6 - RJ, 2ª Turma. Relator: Ministro Marco Aurélio. 7 O lema “Nada Sobre Nós Sem Nós” foi também adotado como tema para o Dia Internacional das Pessoas com Deficiência em 2004. A este respeito, V. Ainda: www.runic-europe.org/portuguese/ecosoc/disabledday2004sg.html, acesso em 02.02.2006, especialmente a mensagem do Secretário-Geral da ONU, Kofi Annan, por ocasião do Dia Internacional das Pessoas com Deficiência (3 de Dezembro de 2004). 8 A lição que nos permite essa afirmação é de Cançado Trindade: “Tem-se admitido a possibilidade de que os avanços normativos em um determinado tratado sobre direitos humanos possam ter um impacto direto na aplicação de outros tratados de direitos humanos, no sentido de ampliar ou fortalecer as obrigações dos 85 Estados-partes e assegurar um maior grau de proteção às supostas vítimas” (1991, p. 50). 9 A menção na Convenção à impossibilidade de “recusa”pressupõe a necessidade de requerimento. Bibliografia ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2001. ______. Derecho y razón práctica. México: Distribuciones Fonatamara S.A., 2002. ARAUJO, Luiz Alberto David. 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A incorporação das normas internacionais de proteção dos direitos humanos no Direito brasileiro. San José de Costa Rica: IIDH, ACNUR, CIVC, CUE, 1996. 87 88 SEÇÃO III - NORMAS INTERNACIONAIS O DIREITO A UMA EDUCAÇÃO INCLUSIVA Eugênia Augusta Gonzaga Fávero Resumo: Analise dos vários dispositivos da Convenção da Organização das Nações Unidas sobre Direitos de Pessoas com Deficiência que têm alguma relação com o direito à educação. Estudo cada um dos itens do Artigo 24, que trata especificamente do direito à educação. Abordagem a partir da localização dos dispositivos da Convenção em aspectos práticos do dia-a-dia da escola e da família atenta ao cumprimento do direito dos alunos com deficiência à educação. Palavras chave: Deficiência, inclusão, igualdade, discriminação, educação, ensino, ensino comum, escolas, direito indisponível, ensino obrigatório, desenvolvimento, participação, adaptações razoáveis, apoios, medidas específicas de apoio. Abstract: Analysis of some provisions of the UN Convention on the Rights of Persons with Deficiency related to the right to education. A study of each item of Article 24 which specifically deals with the right to education. It follows an approach from identifying the provisions of the Convention on practical aspects of school and family daily routine in the attempt to fulfill the rights to education of students with disabilities. Keywords: Disability, inclusion, equal opportunity, discrimination, education, common education, schools, non-disposable rights, compulsory education, development, participation, reasonable adaptations, support, specific support measures. 89 1. Introdução A Convenção da Organização das Nações Unidas sobre Direitos das Pessoas com Deficiência, coroando a linha progressiva dos documentos que lhe antecederam, abandona de vez o termo “educação especial” e faz referência expressa ao direito à educação inclusiva. Essa constatação não precisa gerar preocupações por parte daqueles que sempre imaginam os alunos com deficiência em ambientes especializados, totalmente adaptados e até mesmo segregados, se isto for necessário. Ao mes- mo tempo em que a Convenção adota o paradigma da total inclusão educacio- nal, garante o direito aos apoios e instrumentos específicos, de forma a não abrir mão da qualidade do ensino e do sucesso escolar para aqueles que necessitam dessas adaptações. A novidade é que garante esses apoios juntamente com o acesso ao mesmo ambiente que os demais alunos freqüentam. Já na primeira disposição de seu artigo sobre o direito à educação, o de número 24 (vinte e quatro), proclama o reconhecimento do direito das pessoas com deficiência à educação e que: Artigo 24 Para realizar este direito sem discriminação e com base na igualdade de oportunidades, os Estados Partes deverão assegurar um sistema educacional inclusivo em todos os níveis [...]. Isto significa que para a Convenção da ONU sobre os direitos das pessoas com deficiência não há acesso à educação fora de um sistema educacional inclusivo em todos os níveis. Como já dissemos, não é o fim do ensino especi- alizado e segregado, exclusivo para alunos com necessidades educacionais es- peciais, mas é mais um sinal de que o ensino especializado deve cumprir a obrigação de se reestruturar para que, definitivamente, não seja mais substitutivo do direito de acesso ao ensino comum. Essa é a linha mestra da Convenção. É a partir dela que analisaremos cada um dos dispositivos que têm alguma relação com o direito à educação, bem como o Artigo 24, que é específico sobre o tema e, portanto, objetivo principal deste trabalho. Nossa abordagem não será apenas teórica, mas se dará a partir da localização desses dispositivos da Convenção em aspectos práticos do dia-a-dia da escola e da família atenta ao cumprimento do direito à educação. Faremos questão de abordar tais aspectos práticos mesmo correndo o risco de ampliar o foco deste trabalho. Assim agiremos porque, em se tratando de inclusão escolar de alunos com deficiência, não há dúvidas de que se trata de um direito, de um ideal muito interessante e bem-vindo, mas as dificuldades práticas que muitos vêem conti- nuam impedindo a sua concretização. 90 Esperamos, com isso, contribuir para que as determinações da Organiza- ção das Nações Unidas no tocante ao direito das pessoas com deficiência à educação sejam de fato cumpridas. 2. Dispositivos da Convenção que antecedem o Artigo 24 e que interessam ao direito à educação Já no preâmbulo da Convenção há uma profusão de citações que procla- mam o direito à igualdade de oportunidades, sem qualquer tipo de discrimina- ção. Vejamos inicialmente aqueles que mais se destacam. Depois, analisaremos os artigos que abrem caminho ao estudo do Artigo 24. 2.1 Deficiência: conceito em evolução e resultante de barreiras externas [...] que a deficiência é um conceito em evolução e que a deficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras atitudinais e ambientais que impedem sua plena e efetiva participação na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas. A afirmação de que a deficiência é um conceito em evolução e que ela resulta também das barreiras externas, já no preâmbulo, é de grande importân- cia para o ambiente escolar. Ser um conceito em evolução significa o reconhecimento de que ainda estamos descobrindo as capacidades dos indivíduos com algum tipo de limita- ção. Essa descoberta paulatina e contínua deve-se ao fato de que tais pessoas estão tendo oportunidades nunca antes vividas, o que faz com que tenham condições de demonstrar e de desenvolver cada vez mais seu potencial. A menção às barreiras externas, por sua vez, significa que quanto mais adaptado for o ambiente e as pessoas que o integram, menor a limitação decor- rente da deficiência. Imagine-se um aluno surdo, que utiliza a Língua Brasileira de Sinais - LI- BRAS, chegando a uma escola onde encontra professores e alunos com alguma noção do uso dessa língua; intérpretes e professores que se preocupam em produzir um material escrito mais denso para ele; professores especializados que dão o apoio necessário para o seu total acesso ao conteúdo ministrado a todos os alunos. Numa situação assim, a surdez acaba representando uma limi- tação muito pouco significativa. Infelizmente, não é o que ocorre em locais ainda insensíveis à necessida- de de adaptação. A alegação de falta de preparo, aliás, é justamente o motivo que usam para continuar recusando a presença de alunos com deficiência, o que nada mais é do que discriminação. Isto não pode mais ser aceito. Quando se fala para o público em geral em acesso de alunos com defi- ciência às salas de aula comuns, principalmente no caso de deficiência men- 91 tal, a reação mais freqüente é de estranhamento, incompreensão e até de contrariedade. Isto ocorre justamente pela noção que se tem sempre relacionada à defi- ciência como uma limitação intransponível. A maioria das pessoas sem deficiên- cia não tem ou não teve contato com pessoas com deficiência que freqüentam escolas comuns, que têm acesso a atendimentos especializados voltados para a sua plena inclusão. Assim, não conseguem imaginá-las no mesmo ambiente escolar que os demais alunos. Outro problema é que o senso comum nunca lembra de que o ambiente preparado apenas para pessoas sem deficiência é um ambiente por si só restritivo e causador de exclusões. Não se percebe que o problema não está no aluno com deficiência. O problema é a escola que não se preocupa em acolher uma diversidade maior de alunos, fazendo com que tantos tenham que ficar de fora de seus quadros. Contudo, não podemos nos esquecer da preocupação que muitos pais de alunos sem deficiência têm, em relação a uma possível queda na qualidade do ensino em escolas inclusivas. Em escolas que, ao contrário das citadas acima, se preocupam em acolher a todos em suas salas de aula, sem discriminações, especialmente as fundadas em deficiência intelectual. A boa notícia é que tais escolas existem e vêm oferecendo um ensino de qualidade e de respeito para com todos os alunos. São locais em que todas as crianças sentem-se valorizadas, com algum tipo de contribuição a dar. Locais em que os alunos aprendem com base na cooperação mútua e na valorização das diferenças, conceitos que sem- pre fizeram falta ao ensino tradicional, baseado em turmas homogêneas obtidas graças à exclusão de qualquer um que não “acompanhasse a turma”, mesmo tendo limitações para isso. Nossa expectativa é que a afirmação que acabamos de destacar, constante do preâmbulo da Convenção sirva, em relação ao acesso à educação, para lem- brar a todos que: a) pouco se sabe sobre as capacidades de pessoas com deficiên- cia, inclusive a intelectual; b) quanto mais lhes for garantida a igualdade de opor- tunidades, maior a chance de desenvolverem o seu potencial; c) quanto mais adaptado for o ambiente e as pessoas que o compõem para a interação com as deficiências, menos significativas serão as limitações que delas decorrem. 2.2 A mais incompreendida das bandeiras de direitos humanos da infância [...] que as crianças com deficiência devem desfrutar plenamente todos os direitos humanos e liberdades fundamentais em igualdade de oportunidades 92 com as outras crianças e relembrando as obrigações assumidas com esse fim pelos Estados Partes na Convenção sobre os Direitos da Criança. Esta é outra importante afirmação do preâmbulo da Convenção da ONU sobre direitos das pessoas com deficiência. É importante porque mais uma vez fala em igualdade de oportunidades e relaciona a deficiência com os direitos da infância também proclamados em âmbito internacional. Ora, se os direitos da infância são indisponíveis (aqueles dos quais não se pode dispor, abrir mão, pois são inalienáveis), todos os direitos das crianças com deficiência, inclusive o seu direito à inclusão nas escolas comuns, também o são. Não vemos melhor maneira de se garantir a igualdade de oportunidades entre as crianças, senão assegurando às crianças com deficiência o direito de acesso ao mesmo ambiente escolar freqüentado por todas as demais crianças, com as adaptações que forem necessárias, mas sem ensino segregado substitutivo da freqüência ao ambiente comum. Ao relembrar as obrigações assumidas na Convenção sobre os Direitos da Criança, relembra que as crianças com deficiência têm o direito inalienável de: a) serem ouvidas e de que suas opiniões sejam consideradas; b) que suas rela- ções familiares não sofram ingerências ilegais, o que as coloca a salvo do descumprimento de seus direitos por seus próprios familiares; c) que as deci- sões de seus pais sempre levem em conta o interesse superior da criança; d) que o ensino primário ou básico seja obrigatório, ou seja, ninguém, nem seus pais, podem abrir mão de sua freqüência ao ambiente escolar; e) que os estabe- lecimentos de ensino tenham liberdade de escolher seus métodos, desde que respeitem os princípios gerais relacionados ao ensino e as regras mínimas estabelecidas pelo poder público (a não-discriminação está entre esses princípi- os gerais e regras mínimas). O direito à educação escolar, como um direito inalienável da infância, é amplamente reconhecido em relação às crianças em geral. Mas isso nem sem- pre foi assim. Houve tempos em que as meninas, por exemplo, eram tolhidas do seu direito de acesso a uma escola por decisão de seus pais. A batalha pelos direitos humanos da infância levou à compreensão de que isso não poderia ser aceito, pois a educação escolar é um direito da criança, antes de tudo, não cabendo aos seus pais uma decisão em sentido contrário. Em relação às crianças com deficiência, essa consciência ainda não é mui- to clara. O seu direito a uma educação inclusiva ainda é visto como uma mera opção. Muitos pais acham que diante de um ambiente educacional comum hostil, despreparado, podem optar por manter seus filhos com deficiência ape- nas em ambientes especializados, dedicados a alunos com necessidade educa- cionais especiais. Trata-se de um equívoco. Quando se está diante de uma 93 escola assim, hostil e despreparada, o caminho é denunciar, procurar outra ou notificar a escola para que promova as adequações necessárias para que o direi- to da criança seja preservado. O que não se pode admitir é que a criança fique em situação de exclusão, pois a freqüência exclusiva a um ambiente educacio- nal separado não atende o direito inalienável da criança com deficiência de ser incluída. É claro que há casos de deficiências muito graves, associadas a doenças ou a idade um pouco mais avançada sem qualquer estimulação prévia, que fazem com que essa criança necessite de atendimentos relacionados à saúde e não propriamente à educação básica. Se ela receber esse tratamento, de maneira consciente de que seu lugar educacional é a escola comum e que se trata de situação excepcional, não se pode falar em exclusão. O que ocorre, entretanto, é que afirmações como essa que acabamos de fazer (sobre situações excepcio- nais) são utilizadas para continuar mantendo alunos apenas com deficiências típicas (cegueira, surdez, deficiência mental e até física) fora das escolas co- muns. É essa situação que precisa ser modificada. Quanto a essa parte do preâmbulo, nossa conclusão é a de que a Conven- ção, ao relembrar que os direitos das crianças com deficiência estão inseridos nesse âmbito maior, o dos direitos humanos da infância, está afirmando: todos os direitos das crianças com deficiência são indisponíveis, inalienáveis e é obri- gação da família e do Estado garantir o seu acesso. A aceitação dessa afirmação não é mesmo fácil. Mas também não era fácil em meados do Século XX para alguns pais entenderem que eles tinham obrigação de dar às suas meninas o mesmo acesso à educação que davam aos seus meninos. Em se tratando de deficiência, porém, até mesmo os ativistas pelos direi- tos da infância têm dificuldade de enxergar uma criança com limitações como detentora de potencial para se desenvolver em ambiente comum. Isto ocorre pois o único desenvolvimento que parecem enxergar é o relacionado aos con- teúdos curriculares. Tais conteúdos são muito importantes, mas não podem ser considerados como o único objetivo da escola. E ainda: eles devem estar ao alcance de todos, sendo que a grande maioria das crianças, inclusive as que têm as mais variadas deficiências, tem toda condição de apreendê-lo. Há aquelas, entretanto, que não irão aprender toda a matéria, da maneira como é tradicio- nalmente esperado, mas elas também aprendem, a seu modo. É esse “modo” que, ao invés de gerar exclusão, precisa ser acolhido e valorizado por todos os defensores dos direitos da infância. Para isso, um bom começo é passar a ver as crianças com deficiência como titulares do direito à educação comum, tanto como qualquer outra criança. 94 A Convenção sobre os direitos de pessoas com deficiência ajuda muito nesse sentido. Daí a nossa felicidade em ver que ela permite expressamente que a inclusão escolar de alunos com deficiência seja mais uma bandeira dos direitos humanos da infância a qual, esperamos, seja cada vez mais aceita e defendida por todos. 2.3 Artigos 3, 7, 8 e 12: uma solução e outros esclarecimentos para os mais resistentes à inclusão Tais artigos tratam basicamente do respeito pelas capacidades das crian- ças com deficiência, do seu direito de se expressarem, de terem sua opinião considerada e, é claro, de seu reconhecimento igual perante a lei. Cada um deles merece um trabalho específico, mas não é nosso objetivo esgotá-los aqui. Estamos apenas citando-os, pois estão imbricados com o direito à educação, já que tratam de capacidade, liberdade de expressão e de direito à igualdade. Destacaremos um ponto neste conjunto de artigos que nos parece relevante para clarear cada vez mais o direito à educação inclusiva. Esses artigos se referem à obrigação dos Estados de promover diversas medidas voltadas para o cumprimento dos direitos das pessoas com deficiência, bem como para promover a conscientização da população sobre as condições das pessoas com deficiência (Artigo 8) e, assim, fomentar o respeito pelos seus direitos e pela sua dignidade. Como objetivo dessas medidas de conscientização, a Convenção fala ex- pressamente em: a) combater estereótipos, preconceitos e práticas nocivas em relação a pessoas com deficiência, inclusive os baseados em sexo e idade, em todas as áreas da vida; e b) promover a consciência sobre as capacidades e contribuições das pes- soas com deficiência. Para isso, ela elege como medida de conscientização o seguinte: Fomentar em todos os níveis do sistema educacional, incluindo neles todas as crianças desde tenra idade, uma atitude de respeito para com os direitos das pessoas com deficiência. É este ponto que queríamos destacar: a medida segundo a qual o respeito e a consciência são adquiridos no ambiente escolar, desde a mais tenra idade. Ora, uma das melhores maneiras de se combater estereótipos, preconceitos e práticas nocivas, bem como de promover a consciência sobre as capacidades e contribuições das pessoas com deficiência, é garantindo a presença das próprias pessoas com deficiência, desde a mais “tenra idade”, em todos os níveis do sistema educacional. 95 Tudo isso reforça que se trata de um dever do Estado e da sociedade promover a inclusão, pois ela é também a solução para que as resistências a ter as pessoas com deficiência como cidadãos de fato, estudando nas escolas co- muns de seus bairros, trabalhando, se divertindo, sejam combatidas. A escola para todos continua sendo o melhor caminho. Apesar dessa clareza, estamos acostumados a escrever sobre esse tema e verificamos que há alguns leitores que sempre guardam uma grande reserva à educação inclusiva. Dessa maneira, fazemos questão de ir refutando todas as dúvidas e questionamentos possíveis. Sabemos que nem sempre conseguimos, pois tal reserva está muito arraigada, mas continuamos nos esforçando já que temos alcançado algum sucesso nessa tarefa. Portanto, vamos agora tratar da idéia que perpassa esse conjunto de arti- gos que é a referente ao direito das pessoas com deficiência de se expressarem e de terem suas opiniões consideradas. Os leitores que mencionamos podem indagar: mas e se nem mesmo a própria pessoa com deficiência quiser ser incluída; se ela quiser ficar estudando a parte do (ou no) sistema educacional comum? Cremos que não há dúvidas de que, neste caso, uma pessoa com defici- ência adulta e já capaz civilmente, pode tomar a decisão que quiser em relação aos seus estudos, como qualquer outra pessoa. Também como para qualquer outra pessoa, o mesmo não ocorre em se tratando de criança com idade de freqüentar a etapa obrigatória do ensino básico, que é o ensino fundamental, ou primário, dependendo do nome dado em cada país. Tal etapa, além de ser um direito, é também obrigatória, nos termos das mais diversas convenções de direitos humanos e também da que estamos ana- lisando. Logo, assim como em relação a qualquer criança, não há que se falar em abrir mão da freqüência ao ensino obrigatório. Os pais e as próprias crianças podem escolher entre os vários perfis de escolas oficiais, mas não podem frus- trar o acesso ao ensino obrigatório. Os mesmo leitores vão ainda perguntar: mas e se for um ensino funda- mental especial ministrado em escolas especiais devidamente reconhecidas pelo Poder Público? O acesso ao ensino obrigatório estaria sendo cumprido? Bem, por tudo o que se pode ler na Convenção em relação à impossibili- dade de tratamentos diferenciados que gerem o exercício separado de direitos; em relação ao direito da criança de ser “incluída”, ou seja, de estudar com os demais alunos de sua geração; pensamos que não há lugar para essa prática, pois ela substitui totalmente o acesso às classes comuns. Mas há lugar, e muito, para a prática do ensino especializado, ministrado também em escolas especiais reconhecidas, como apoio e complemento do ensino comum. 96 Esperamos que essa nova maneira de se fazer o ensino especializado seja percebida por esses corações mais resistentes à inclusão escolar e que a própria inclusão escolar vá quebrando essas resistências, como sugere a Convenção na medida que destacamos neste tópico: a inclusão como solução para a resistên- cia à inclusão. Finalmente, passemos ao Artigo 24. 3. Artigo 24: um sistema educacional inclusivo como forma de assegurar o direito à educação Nesta parte de nosso trabalho, cuidaremos de transcrever cada um dos itens desse artigo, comentando-os logo em seguida. Os Estados Partes reconhecem o direito das pessoas com deficiência à educação. Para realizar este direito sem discriminação e com base na igualdade de oportunidades, os Estados Partes deverão assegurar um sistema educacional inclusivo em todos os níveis, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida, com os seguintes objetivos: a. O pleno desenvolvimento do potencial humano e do senso de dignidade e auto-estima, além do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos, pelas liberdades fundamentais e pela diversidade humana; b. O desenvolvimento máximo possível da personalidade e dos talentos e criatividade das pessoas com deficiência, assim de suas habilidades físicas e intelectuais; c. A participação efetiva das pessoas com deficiência em uma sociedade livre. Ratificamos nossa afirmação inicial de que, para a Convenção em estudo, não há cumprimento do direito à educação fora de um sistema educacional inclusivo em todos os níveis. Mas como seria esse sistema educacional inclusi- vo? Responderemos a essa indagação durante todo esse tópico, que será divi- dido em subitens. Antes, porém, cumpre assinalar que, além de um sistema educacional inclusivo como forma de acesso à educação, a Convenção ainda menciona o direito ao aprendizado ao longo de toda a vida. A afirmação é bastante ampla. Logo, pensamos que ela se aplica também aos vários cursos livres existentes. Cursos livres são os que podem ser ministrados fora do ambi- ente formal de ensino, como culinária, expressão oral, fotografia, línguas, artes, direção, entre muitos outros, os quais raramente são organizados de maneira a atender também interessados com algum tipo de deficiência. Bem, nos manteremos no estudo do sistema educacional inclusivo, pois garantido o acesso a este, as demais oportunidades de aprendizado o acompa- nharão. 97 3.1 São vedadas as práticas discriminatórias Um sistema educacional inclusivo é aquele que proíbe a utilização de práticas discriminatórias e garante igualdade de oportunidades. As práticas discriminatórias, por sua vez, são aquelas que frustram, negan- do ou restringindo, o direito de acesso a um direito. Entre essas práticas estão aquelas notoriamente reconhecidas como discriminatórias e outras ainda toleradas pela sociedade ainda insensível aos direitos dos alunos com deficiência à inclusão. Não há dúvidas de que quando uma criança com deficiência é deixada de lado, deliberadamente, em atividades simples as quais ela poderia perfeitamen- te participar, sem necessidade de qualquer adaptação, estamos diante de um caso de discriminação. Ou ainda, se essa mesma criança é taxada insistentemen- te por apelidos injuriosos, que fazem referência à deficiência. Nesses casos, há medidas administrativas e judiciais que podem ser busca- das para responsabilizar o autor desses atos de discriminação, dependendo da legislação de cada país. Em regra, as medidas administrativas podem ser pleite- adas perante a própria escola, ou o órgão que autorizou e fiscaliza o seu funci- onamento. Já as medidas judiciais são aquelas dirigidas ao Poder Judiciário e podem ir desde um pedido de indenização por dano moral, até a imposição de sanções penais (multa, prisão ou prestação de serviços à comunidade). No Brasil, por exemplo, a injúria cometida nos termos que mencionamos acima, é prevista pelo Código Penal como crime qualificado. Nesta qualidade, até mesmo uma criança ou adolescente pode ser responsabilizado, de acordo com as normas do Estatuto da Criança e do Adolescente, pois se trata de ato infracional. Queremos nos ater agora às práticas veladas de discriminação. Os exem- plos são abundantes e seu reconhecimento sempre vai depender da firmeza da própria pessoa com deficiência ou de seu responsável em ser intransigente no reconhecimento de seus direitos. Citaremos o exemplo da mais recorrente entre essas práticas veladas de discriminação. É o caso da freqüente alegação de escolas comuns no sentido de não estarem preparadas para aceitar ou manter a matrícula de uma criança com deficiência. Compreendemos que a inclusão escolar, como prática, ainda é recente, mas ela é recente justamente pela resistência em adotá-la. Enquanto essa resis- tência não for quebrada, estaremos sempre diante da alegação de despreparo. Já houve um tempo em que entendemos como plausível a recusa res- ponsável de uma escola que nunca lidou com qualquer tipo de deficiência. Mas isso até verificarmos que as escolas que agem assim não estão preparadas e 98 também não querem estar, pois não adotam nenhuma medida nesse sentido. Se passados dois ou três anos e a escola for consultada novamente, a resposta continuará sendo a mesma. Portanto, o que inexiste é a intenção de estar pre- parada. Trata-se de discurso inaceitável pois, na verdade, estamos diante de um caso de discriminação, já que a conseqüência dessa alegação é fazer com que a criança tenha sua matrícula recusada ou cancelada. Um sistema inclusivo não é aquele que tem todas as escolas preparadas da noite para o dia, mas é aquele que adota uma postura pela não-exclusão e, a partir daí, busca as medidas necessárias para atender com qualidade e respeito a todos os alunos. 3.2 Garantia de igualdade de oportunidades Como dissemos, ao lado da vedação das práticas discriminatórias consta a garantia de igualdade de oportunidades. A igualdade de oportunidades abrange tanto o acesso, como a permanên- cia no ambiente escolar. Garantir o acesso das pessoas com deficiência é simples, basta que sua matrícula não seja recusada. Garantir a permanência, visando a igualdade de opor- tunidades, é a grande chave para a inclusão escolar e também o grande desafio. A permanência de um aluno com deficiência no ambiente escolar exige que tal ambiente e as pessoas que o compõem realizem transformações desti- nadas à sua adaptação às necessidades específicas de tal aluno, só assim ele terá igualdade real de oportunidades. Por exemplo: um aluno cego que chega a uma escola e não encontra qualquer alternativa de adaptação que o faça ter acesso aos conteúdos escritos veiculados naquele ambiente não está em situa- ção de igualdade de oportunidades juntamente com os demais alunos. Aqui sim são admitidos os tratamentos diferenciados (as adequações do ambi- ente), pois eles visam garantir o acesso e efetivo exercício do direito. A própria Convenção arrola uma série dessas medidas nos demais itens do Artigo 24. Antes de verificar quais são essas medidas, vamos tratar dos objetivos do sistema educacional inclusivo, constantes do item “1”, do Artigo 24. 3.3 Objetivos do sistema educacional inclusivo Esses objetivos estão previstos nas alíneas (“a”, “b” e “c”) do item “1”, do Artigo 24. Eles são exatamente os mesmos objetivos visados para qualquer aluno, especialmente no que se refere ao pleno desenvolvimento do potencial humano, bem como ao respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. São termos freqüentemente invocados como objetivos da educa- ção em relação a qualquer indivíduo. 99 O que a Convenção fez aqui foi deixar explicitada a questão relativa ao potencial das pessoas com deficiência, da garantia de se desenvolver o “máxi- mo possível”, com senso de dignidade e auto-estima. Fez menção também à sua participação efetiva em uma sociedade livre. É bastante óbvio que todos esses objetivos são perseguidos em relação a qualquer aluno, mas era necessário reafirmá-los, numa constante invocação das capacidades e possibilidades das pessoas com deficiência, com aceitação e aco- lhimento de suas diferenças, linha que norteia o documento como um todo. 3.3.1 O maior desenvolvimento possível A afirmação relativa ao direito ao desenvolvimento “máximo possível” como objetivo no âmbito escolar é da maior relevância. Ela pode ter duas conotações. A primeira, e a que mais deve inspirar as políticas públicas, é aquela que exige que todas as medidas necessárias sejam adotadas para que o nível máximo de desenvolvimento seja buscado. Isto signi- fica que não é porque uma pessoa tem deficiência que não precisaremos estar preocupados em alcançar um nível de excelência em seu aprendizado. A outra conotação é aquela que determina a aceitação de que limitações existem e o importante é que o desenvolvimento ocorra de maneira individua- lizada, de acordo com o potencial de cada um. Freqüentemente as pessoas aceitam a idéia da inclusão escolar desde que as crianças a serem incluídas apresentem o mesmo nível de aprendizado da maioria das crianças. Ora, inclusão escolar não é isso, pois uma criança assim nunca foi impedida de freqüentar escola. Quando falamos em inclusão escolar, estamos tratando dos casos de exclusão justamente de alunos que apresentam diferenças em relação aos demais, e essas diferenças freqüentemente se locali- zam no aprendizado do conteúdo curricular. Há ainda crianças que, mais do que dificuldades para o aprendizado do conteúdo curricular, têm dificuldades até mesmo para esboçar uma reação a estímulos externos. O fato é que, ao passarem a receber o estímulo do convívio escolar com outras crianças, começam a esboçar sorrisos e outros sinais de co- municação. Isto também é desenvolvimento a ser considerado e aceito. Só que esse tipo de consideração e de aceitação ainda é muito complica- do para as escolas comuns, pois não sabem muito bem o que considerar e aceitar a não ser respostas tradicionais a perguntas tradicionais. Estamos falando das avaliações e provas realizadas. Como fazer para garantir o direito à inclusão escolar, sem discriminações, por meio da permanência do aluno na escola, com igualdade de oportunidades, se esse aluno simplesmente não faz as tradicionais provas, não acerta as questões 100 propostas? Como fazer para que esse aluno siga ano após ano com seus colegas de turma para que seu senso de dignidade e auto-estima não seja abalado? A pergunta parece intrincada, mas ela não se aplica apenas aos alunos com deficiência. Trata-se de problema diuturno que as escolas vêm enfrentan- do para driblar a falta de interesse dos alunos em geral, os problemas de saúde e até psicológicos (não estamos falando de deficiências, mas sim de déficit de atenção, depressão, entre outros) que impedem muitos de aprender. As soluções variam de escola para escola e temos confiança de que elas vencerão o desafio buscando: a) novas maneiras de incentivar os alunos ao aprendizado; b) parcerias com a saúde; e também c) formas mais completas e adequadas de avaliação, bem como de valoração de respostas. Voltando aos alunos com deficiência. Em primeiro lugar, é preciso que as escolas adotem em relação a eles as mesmas soluções, como as que citamos acima, que forem aplicadas a todos os alunos. Feito isto, garantir-lhes os apoios e atendimentos especializados que porventura necessitem. Após percorrer todos os caminhos que efetivamente têm em vista o máximo desenvolvimento possí- vel, admitir que certos objetivos escolares não se aplicam a alguns alunos. Às vezes, essa não aplicação é só uma questão de tempo, mas, às vezes, certos objetivos podem ser faticamente inatingíveis. Mesmo em tais casos, esses objeti- vos devem ser colocados à sua disposição, garantindo-lhes o acesso para a equi- paração de oportunidades, pois é possível que ocorram agradáveis surpresas. Só que esses objetivos, caso não atingidos, não podem ser tomados como impeditivos para o prosseguimento dos estudos, juntamente com a turma de origem do aluno que não os alcançou porque efetivamente não pôde. Falamos em continuidade dos estudos com a turma de origem, pois esta é, quase sempre, a melhor maneira de garantir uma real inclusão com dignidade e boa auto-estima. Cumpre esclarecer que não estamos defendendo a conduta do passar de ano sem saber. Estamos defendendo o acolhimento e valorização dos diferentes saberes, por meio de aulas mais abertas baseadas na criatividade do professor e do aluno; no apoio em diferentes tipos de materiais pedagógicos; no olhar de cada matéria sob vários ângulos de forma que as diferentes habilidades sejam contempladas em cada projeto, em cada trabalho. Assim, a turma sempre será heterogênea e as diferenças não serão motivo de exclusão, mas de enriquecimento das aulas. Não é porque alguém não sabe escrever, por exemplo, que não tenha o que aprender ou contribuição a dar em ciências, português, geografia, matemática, história... Além disso, a criança que não tem limitações, que teve alguma necessidade sua relativa à saúde atendida (medicamento, terapia, etc.), certamente passará de ano sabendo tudo o que é 101 comumente esperado para aquela etapa escolar. E mais: sabendo acolher e trabalhar com a diversidade, sabendo entender suas próprias dificuldades e com muito maior chance de retenção do aprendizado do conteúdo curricular, graças às diferentes abordagens da matéria e ao trabalho em conjunto. 3.3.2 Participação efetiva em uma sociedade livre: o sistema educacional inclusivo como alicerce da democracia O objetivo previsto no Artigo 24 referente à participação efetiva em uma sociedade livre invoca o princípio democrático. É este princípio, composto pela idéia da participação de todos, que inspira uma sociedade livre. Uma sociedade livre, por sua vez, não se faz de maneira indiferente à eliminação das desigualdades e este é mais um grande desafio. Não se chega à igualdade apenas por meio de conceitos teóricos e de políticas localizadas. Ela há que ser construída com base na vivência em condições de igualdade de oportunidades para que seja internalizada de maneira generalizada. A igualdade de direitos tem que ser experimentada, sentida por todos. Só assim podemos falar em uma democracia forte e, conseqüentemente, em uma sociedade livre. Para o alcance desse objetivo, a Convenção elege como caminho o siste- ma educacional inclusivo. Isto não ocorre apenas porque será nesse ambiente que uma pessoa com deficiência terá maiores chances de aprender e de se preparar para participar da vida política e social de seu país. É porque o ambi- ente escolar comum é o espaço privilegiado para a construção da cidadania, pois materializará as condições que refletem a igualdade de direitos, com res- peito às diferenças. A escola é o primeiro ambiente coletivo, após a família, do qual a criança participa. É lá que ela deve ter a oportunidade de participar das decisões que irão influenciar na vida escolar e, assim, aprender o valor de sua presença e de suas opiniões. É na escola que a criança torna-se apta a administrar sua posição e entender a igual posição das demais pessoas numa sociedade livre. Infeliz- mente, muitas escolas ainda não entenderam o valor de institucionalizar as prá- ticas democráticas que são importantíssimas para os alunos em geral. Para as crianças com deficiência essa importância não é menor. Se elas são mantidas estudando a parte, como se sentirão iguais em direitos? Como estarão aptas a participar de uma sociedade livre e, assim, concretizar o princípio de- mocrático? Como elas serão consideradas pelas demais pessoas se, desde tenra idade, não se viram e não se relacionaram? Numa sociedade livre as pessoas têm igual valor e igual espaço. Nada melhor que o sistema educacional inclusi- vo para incutir essa compreensão nos alunos com e sem deficiência. 102 3.4 Maneiras de se garantir o cumprimento do direito à educação Os demais itens do Artigo 24 podem ser reunidos neste tópico, já que dizem respeito ao modo de garantir o cumprimento do direito à educação. São dispositivos bastante didáticos e claros, que reforçam nossas ponde- rações. 3.4.1 Noções gerais para organização de um sistema de educação inclusivo 1. Para a realização deste direito, os Estados Partes deverão assegurar que: a. As pessoas com deficiência não sejam excluídas do sistema educacional geral sob alegação de deficiência e que as crianças com deficiência não sejam excluídas do ensino fundamental gratuito e compulsório, sob a alegação de deficiência; b. As pessoas com deficiência possam ter acesso ao ensino fundamental inclusivo, de qualidade e gratuito, em igualdade de condições com as demais pessoas na comunidade em que vivem; c. Adaptações razoáveis de acordo com as necessidades individuais sejam providenciadas; d. As pessoas com deficiência recebam o apoio necessário, no âmbito do sistema educacional geral, com vistas a facilitar sua efetiva educação; e e. Efetivas medidas individualizadas de apoio sejam adotadas em ambientes que maximizem o desenvolvimento acadêmico e social, compatível com a meta de inclusão plena. As alíneas a e b referem-se à compulsoriedade da matrícula, ou seja, ao acesso às escolas comuns. As demais alíneas se referem à permanência do aluno com deficiência em tais escolas. Quanto ao acesso, está ratificado o que foi dito até aqui no tocante ao direito de não ser recusado e no tocante ao fato de que o ensino obrigatório também é direito dos alunos com deficiência. Isto parece bastante óbvio, mas a sua afirmação expressa é uma novidade. É muito importante que tenha sido escrito em uma Convenção dessa natureza, pois um número bastante considerável de crianças com deficiência continua sem acesso ao ensino formal e obrigatório apenas porque têm algum tipo de deficiência. Em relação à maneira de se garantir a permanência do aluno com defici- ência na escola, a Convenção utiliza-se dos termos: adaptações razoáveis (alí- nea c), apoio necessário (alínea d) e efetivas medidas individualizadas de apoio (alínea e). 103 Todos esses tratamentos diferenciados são assegurados sempre com o objetivo de se garantir a inclusão plena. As adaptações razoáveis são definidas na própria Convenção, no Artigo 2, como sendo, em resumo, as medidas necessárias a garantir a participação da pessoa com deficiência, sem um ônus excessivo para as demais pessoas. Como exemplo de adaptação razoável, lembraremos a situação relativa aos materiais didáticos distribuídos aos alunos, que podem ser digitalizados para garantir o acesso dos alunos com deficiência visual. Não queremos confundir esse termo com as conhecidas adaptações curriculares. Quanto a estas, inclusive, temos nossas reservas. As escolas que adotam essa estratégia, freqüentemente pré-julgam e delimitam previamente até onde o aluno com deficiência irá chegar em seu aprendizado, deixando de lhe proporcionar acesso ao mesmo conteúdo ministrado aos demais alunos, o que não se coaduna com a idéia de inclusão e de igualdade de oportunidades. Quando falamos em adaptações razoáveis, estamos falando em meios de acesso, de consideração de diferentes abordagens para um mesmo tópico, e não de subtração desse tópico, o que comumente ocorre nas adaptações curriculares. O apoio necessário (alínea d), por sua vez, diz respeito a algo mais do que uma mera adaptação dos mesmos materiais e instrumentos utilizados pelos demais alunos. Trata daquilo que vai complementar o aprendizado de um aluno com defi- ciência e que não seria necessário para um aluno comum. Exemplo: um professor de Língua Portuguesa como segunda língua para um aluno surdo. Tal profissional terá contribuições fundamentais que apoiarão o aluno surdo em sua trajetória de alfabetização, sem substituir o professor comum. Daí o nome de apoio. Finalmente, a Convenção assegura as efetivas medidas individualizadas de apoio (alínea e). Essas medidas serão adotadas em ambientes que maximizem o desenvolvimento acadêmico e social, compatível com a meta de inclusão plena. Agora a Convenção resgata os atendimentos específicos, à parte do am- biente comum, mas que tenham sempre em vista a inclusão plena. Há momentos em que as necessidades específicas dos alunos com defici- ência, principalmente a mental, auditiva ou visual, fazem com que certos apren- dizados relacionados à limitação gerada pela deficiência tenham que ocorrer de maneira individual e separada dos demais alunos. É importante assegurar essa possibilidade, desde que, como assinalou a Convenção, essa garantia seja feita em prol de sua inclusão e não o contrário. Para que isso ocorra, é preciso que essas medidas individualizadas não sejam substitutivas do acesso ao ambiente comum, ou seja, não sejam ministradas no mesmo horário em que aquele aluno deveria estar freqüentando a sala de aula comum. 104 A medida específica também é um tipo de apoio, mas os dois termos foram colocados de maneira separada na Convenção, nas alíneas d e e. Para nós, isto ocorreu pois há uma a diferença entre apoio e medida específica de apoio. O apoio ocorre na mesma sala de aula, de maneira concomitante com o ensino, ou à parte, mas no mesmo contexto do ambiente escolar e tendo em vista o mesmo conteúdo escolar dos demais alunos. Por isso, como exemplo do apoio, citamos o professor de Português como segunda língua para alunos que já sa- bem utilizar a Língua de Sinais. Ele a utilizará no mesmo o contexto do ambiente escolar. Já as medidas específicas são intervenções mais localizadas e podem até ocorrer em outra escola, numa escola especializada. Elas serão melhor especificadas no item que segue. Repetimos: em caso de criança em idade de freqüentar o ensino obrigatório, esse ensino deve ocorrer no contra turno. Portanto, acabamos de ver as noções gerais sobre aquilo que precisa ser feito para bem receber o aluno com deficiência. Mas a Convenção não pára por aí. Ela explicita esses apoios e medidas específicas. Não fez o mesmo sobre as formas de adaptações razoáveis porque elas são as mais diversas e se modi- ficam de aluno para aluno, até mesmo para aqueles que têm iguais deficiências. Elas vão sempre depender do ambiente em que está inserida a escola, a criança e serão definidas em conjunto pelos próprios professores, familiares, alunos e, principalmente, pelos próprios alunos com deficiência interessados. Outro exemplo de adaptação razoável é a colocação de uma criança com deficiência mental, em turma com uma diferença de idade de até uns dois anos para menos, desde que isso esteja compatível com o desenvolvimento inclusi- ve físico do aluno com deficiência e seja aceito por ele e sua família. Por este exemplo, é possível ter uma idéia do quanto as adaptações razoáveis podem variar. Logo, andou bem a Convenção ao não especificá-las. Vejamos agora alguns apoios e medidas específicas. 3.4.2 Apoios e medidas específicas de apoio No subitem anterior já iniciamos a sua análise, tratando da diferença entre essas formas de apoio. Agora a Convenção vai esmiuçá-las. Portanto, há aqui um especial interesse para os profissionais que se dedicam ao atendimento educa- cional especializado ou à educação especial. Note-se que esses termos não foram utilizados pela Convenção, nem mesmo nessa explicitação. Isto pode ter ocorrido por dois motivos. O primeiro motivo é aquele segundo o qual a Convenção preferiu utilizar termos mais genéricos, pois as nomenclaturas de etapas e modalidades de en- sino podem variar de país para país. Contudo, esse motivo não nos convence muito já que o termo educação especial, principalmente, é extremamente di- 105 fundido e tem traduções possíveis e de mesmo significado nas mais diversas línguas. Logo, o segundo motivo, no qual acreditamos, é que, de fato, a Conven- ção não quis valer-se da terminologia conhecida porque ela dá a idéia de um sistema à parte de ensino. É justamente isso que a Convenção quer eliminar, sem prejuízo da qualidade e do atendimento às necessidades específicas dos alunos com deficiência. Verifiquemos como ela resolveu essa equação. 2. Os Estados Partes deverão assegurar às pessoas com deficiência a possibilidade de aprender as habilidades necessárias à vida e ao desenvolvimento social, a fim de facilitar-lhes a plena e igual participação na educação e como membros da comunidade. Para tanto, os Estados Partes deverão tomar medidas apropriadas, incluindo: a. Facilitação do aprendizado do braile, escrita alternativa, modos, meios e formatos de comunicação aumentativa e alternativa, e habilidades de orientação e mobilidade, além de facilitação do apoio e aconselhamento de pares; b. Facilitação do aprendizado da língua de sinais e promoção da identidade lingüística da comunidade surda; e c. Garantia de que a educação de pessoas, inclusive crianças cegas, surdocegas e surdas, seja ministrada nas línguas e nos modos e meios de comunicação mais adequados às pessoas e em ambientes que favoreçam ao máximo seu desenvolvimento acadêmico e social. 3. A fim de contribuir para a realização deste direito, os Estados Partes deverão tomar medidas apropriadas para empregar professores, inclusive professores com deficiência, habilitados para o ensino da língua de sinais e/ou do braile, e para capacitar profissionais e equipes atuantes em todos os níveis de ensino. Esta capacitação deverá incorporar a conscientização da deficiência e a utilização de apropriados modos, meios e formatos de comunicação aumentativa e alternativa, e técnicas e materiais pedagógicos, como apoios para pessoas com deficiência. Esses dispositivos são a pedra de fecho do sistema educacional inclusivo, pois eles o arrematam de maneira a contemplar os pleitos e preocupações por parte dos segmentos mais resistentes à inclusão educacional. O Estado Parte que seguir tanto as orientações de caráter geral, quanto essas relativas aos apoi- os e medidas específicas, estará dando um grande salto de qualidade em rela- ção ao ensino das pessoas com deficiência. Queremos ressaltar: eles estão em sintonia com o sistema educacional inclusivo, pois a Convenção não pode ser interpretada de maneira a negar a si própria. Logo, por exemplo, mesmo quando ela garante o ensino nas línguas e nos modos e meios de comunicação mais adequados, fazendo referência às crianças surdocegas, surdas, entre outras, ela está falando sempre de apoios e de medidas específicas e não de um sistema educacional apartado. Inclusive a 106 promoção da identidade lingüística da comunidade surda, pode e deve estar assegurada no sistema educacional inclusivo. Isto vai fazer com que não só os surdos a adquiram, mas também com que as demais pessoas tenham noção dela. Dessa maneira, a identidade surda será conhecida, acolhida e respeitada, pois essa diversidade faz parte do mundo em que todos vivem. Mas como garantir esse tipo de ensino num meio inclusivo sem ônus excessivo aos alunos que não usam naturalmente essas línguas e modos? Responderemos com exemplos do que já vem ocorrendo em algumas escolas. Há redes que garantem aos alunos surdos, ou surdocegos, desde a mais tenra idade, além das terapias especializadas do âmbito da saúde, o aprendizado de Língua de Sinais ou outros modos de comunicação, com professores especializados. Isto sem prejuízo da freqüência, ao menos em algum período do dia, a ambientes de ensino voltado para crianças que não atingiram a idade de freqüência ao ensino obrigatório. Quando chegam a essa faixa etária, já têm bas- tante domínio de sua língua e modos de comunicação. O fato de já terem come- çado a conviver no ensino infantil faz com que outros alunos e professores co- muns também comecem a ter noção dessas outras línguas e modos. Logo, no ensino obrigatório, ou fundamental, a comunicação entre eles já não é novidade. Prosseguindo com o exemplo. No ensino fundamental, a matéria é pas- sada em torno de três vezes com a criança que usa outras línguas e modos de comunicação, em total sintonia entre professores especializados e professores da sala de aula comum. Num primeiro momento, o professor especialista na língua em questão transmite nessa língua a matéria que será estudada. Após, o aluno vai para a sala de aula comum, na qual a matéria é transmitida na língua comum. Obviamente, que isso pode ocorrer com as adaptações razoáveis e apoios concomitantes (estímulos visuais, táteis, presença de intérprete se necessário, entre outros), e ainda com base no trabalho em conjunto com os demais alunos que devem aprender a se comunicar com o colega, e vice-versa. Finalmente, em um terceiro momento, a matéria é revisada para o aluno com necessidades especiais pelo professor especialista na língua comum como segunda língua para o aluno que naturalmente utiliza a de Sinais e outros meios. Nesse momento, ele faz a interligação entre o que aprendeu na sua língua natural, com a língua comum, utilizada pelas demais pessoas. Isto não é uma receita. É apenas uma demonstração de que é possível garantir a promoção da identidade lingüística, bem como que a educação seja ministrada nas línguas e modos próprios de pessoas com certos tipos de defici- ência. Tudo sem abrir mão do princípio maior e inspirador da Convenção que é o da educação em um sistema educacional inclusivo. 107 3.4.3 A garantia de acesso ao ensino superior e a outras modalidades de ensino 4. Os Estados Partes deverão assegurar que as pessoas com deficiência possam ter acesso à educação comum nas modalidades de: ensino superior, treinamento profissional, educação de jovens e adultos e aprendizado continuado, sem discriminação e em igualdade de condições com as demais pessoas. Para tanto, os Estados Partes deverão assegurar a provisão de adaptações razoáveis para pessoas com deficiência. Finalmente, a Convenção cita a garantia de acesso ao ensino e a outras modalidades de ensino. Observe-se que agora a Convenção não fala mais em apoios e medidas específicas de apoio. Fala apenas em adaptações razoáveis. Conforme exemplificamos antes, os apoios e medidas específicas dizem respeito a aprendizados e suportes garantidores do direito de acesso à educa- ção. Aqui fica claro que tais especificidades são típicas da educação básica. Por quê? Na verdade, o que se espera é que o aluno com deficiência, ao chegar à idade adulta, já tenha total domínio de aprendizados como a Língua Brasileira de Sinais, a sua interligação com o português, o BRAILLE, soroban, entre outros. Assim, em se tratando de ensino superior e outras modalidades próprias para adultos, não há necessidade de se assegurar outra coisa senão as adapta- ções razoáveis. Por exemplo: material didático digitalizado; realização de provas com tempo ampliado para quem tem necessidade de apoio de terceiros ou outro tipo (ledores, escribas, braile); presença de intérprete etc. 4. Conclusões A Convenção da Organização das Nações Unidas sobre direitos de pesso- as com deficiência adota o paradigma da total inclusão educacional, bem como garante o direito aos apoios e instrumentos específicos para aqueles que neces- sitam dessas adaptações. Ela garante esses apoios de forma a não impedir o acesso dos alunos com deficiência ao mesmo ambiente que os demais alunos freqüentam. Para essa Convenção a não há acesso à educação fora de um sistema educacional inclusivo em todos os níveis. A Convenção permite expressamente que a inclusão escolar de alunos com deficiência seja tomada como mais uma bandeira dos direitos humanos da infância, portanto, um direito inalienável. Quando a Convenção menciona o direito ao aprendizado ao longo de toda a vida está se referindo também aos vários cursos livres existentes, como culinária, expressão oral, fotografia, línguas, artes, direção, etc. 108 Um sistema educacional inclusivo é aquele que proíbe a utilização de práticas discriminatórias e garante igualdade de oportunidades. As práticas discriminatórias abrangem as formas veladas de discrimina- ção, entre elas, a alegação de despreparo associada à falta de iniciativa nesse sentido. A igualdade de oportunidades abrange tanto o acesso como a permanên- cia no ambiente escolar. Para garantir a permanência do aluno com deficiência no ambiente esco- lar comum a Convenção determina que se providencie: as adaptações razoá- veis, o apoio necessário e as efetivas medidas individualizadas de apoio. Mesmo quando garante tais atendimentos, a Convenção não quis valer- se da terminologia mais conhecida, educação especial, porque ela dá a idéia de um sistema à parte de ensino e é justamente isso o que a Convenção quis eliminar. Bibliografia ARAUJO, Luiz Alberto David. O Desenvolvimento da Democracia como resultado da efetiva participação do cidadão. In GARCIA, Maria (coord.). Democracia, hoje. Um modelo político para o Brasil. São Paulo: Celso Bastos Editor e Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1997. BELISÁRIO FILHO, José Ferreira. Inclusão: uma revolução na saúde. Rio de Janeiro: WVA Editora, 1999. BONAVIDES, Paulo. A salvaguarda da democracia constitucional. 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Pedtrópolis, RJ: Vozes, 2003. 109 110 SEÇÃO III - NORMAS INTERNACIONAIS A DEFESA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E O SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS Vânia Maria Ruffini Penteado Balera Eduardo Dias de Souza Ferreira Resumo: Com o reconhecimento pelo Brasil da jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos é possível pensar nesse sistema como caminho para a exigência de direitos. Os direitos das pessoas com deficiência estão no Protocolo de São Salvador e na Convenção da Guatemala, cujo principal mecanismo de controle é baseado no sistema de relatórios. Quanto ao direito à educação, no entanto, existe possibilidade concreta de controle por meio de petição individual. Palavras chave: Pessoa com deficiência, Corte Interamericana de Direitos Humanos, Convenção, Protocolo. Abstract: With the recognition by Brazil of the jurisdiction of the Inter-American Court of Human Rights it becomes viable to consider this system as a proper mean for the demand of fulfillment of rights. The rights of people with disabilities are in the Protocol of San Salvador and in the Guatemala Convention, both of which set the system of reports as basic mechanism of control. In regard to the right to education, nonetheless, there exists a concrete possibility of control by means of individual petition. Keywords: Persons with disabilities, Inter-American Court of Human Rights, Convention, Protocol. 111 1. Introdução A proteção da pessoa humana evoluiu muito a partir da II Guerra Mundial, especialmente no ambiente internacional de proteção com impacto no próprio conceito de soberania1. Este texto pretende contribuir para a constru- ção do sistema2 de defesa da pessoa com deficiência, tanto no âmbito interno, quanto nos instrumentos e procedimentos que garantam a fruição dos direitos decorrentes da condição da pessoa com deficiência, com enfoque no sistema americano de proteção de direitos humanos, mais conhecido por “sistema interamericano”, que “difere substancialmente dos sistemas regionais na com- posição, na forma de operação, no embasamento jurídico, e no tipo de resulta- dos perseguidos” (Alves, 2003, p. 75). O sistema global da Organização das Nações Unidas – ONU não se acha investido de competência jurisdicional nem tampouco de capacidade compen- satória perante casos individuais – salvo as atuações de seus relatores especiais, pois é parte de estrutura política heterogênea –, enquanto que o sistema regio- nal (Alves, 2003, p. 75): tem por premissas o geográfico mais reduzido, a maior homogeneidade cultural relativa e a similitude de formas de organização jurídicas-políticas e sócio-econômicas dos paises participantes, como fatores a facilitar o estabelecimento de normas e mecanismos de proteção de impacto mais direto das situações nacionais3. No Brasil até a década de oitenta, a defesa da pessoa com deficiência era realizada por intermédio de órgãos internos, principalmente não governamen- tais, tendo sido assumida pelo Ministério Público nos termos da Constituição (Art. 129), assim como por comissões estaduais e municipais de direitos huma- nos, estas últimas até certo ponto coordenadas pela atuante Comissão de Direi- tos Humanos da Câmara dos Deputados (Bicudo, 1997). Os avanços na proteção da pessoa com deficiência foram alcançados paula- tinamente, iniciando-se com a edição da Emenda no 12 à Constituição de 1967, promulgada em 17 de outubro de 1978, que dispunha de forma concentrada, diferentemente do texto da vigente Constituição, que apresenta a mesma prote- ção de forma dispersa, contendo dispositivos em capítulos distintos (Araújo, 1994). Com efeito, desde a Declaração dos Direitos do Homem houve, em cinco décadas, inúmeros avanços, especialmente na área da jurisdicionalização da pro- teção internacional. Todavia, esse progresso não se dá de modo linear, porque é marcado por avanços significativos, mas, também por retrocessos (Trindade, 1999a). Em relação aos direitos sociais o sistema de controle é baseado em relatórios especializados mas não conta com a amplitude do “direito de peti- ção”, o que prejudica a efetividade da proteção ao direito das pessoas com 112 deficiência. O “direito de petição” existe quando se fala no direito à educação (Art. 13 do Protocolo de São Salvador), direito que tem capacidade de transfor- mar a realidade da população da região, com a melhoria dos indicadores de participação no emprego e no rendimento (IPEA, 2007). 2. Aproximando conceitos A própria conceituação de pessoa com deficiência, que também já foi designada por pessoa excepcional, pessoa portadora de deficiência, ou pessoa que necessite de atenção especial, é desafio a ser enfrentado por quem preten- de analisar o estado atual da discussão em torno do tema (Araújo, 1994). O texto da Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Defici- ência observa, em seu preâmbulo, que deficiência é um conceito em evolução e que a deficiência resulta interação entre pessoas com deficiência e as barreiras “atitudinais” e ambientais que impedem sua plena e efetiva participação na soci- edade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas4. Ao estabelecer o propósito da Convenção, no segundo parágrafo do Artigo 1, fixa que pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de natureza física, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas. No sistema interamericano de proteção aos direitos humanos, foi editado o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, denominado Protocolo de San Sal- vador, de 17 de novembro de 1988, cujo Artigo 18, intitulado “Proteção de deficientes”, implicitamente, conceitua como tal, toda pessoa afetada por dimi- nuição de suas capacidades físicas e mentais. Onze anos depois, em 7 de junho de 1999, a Assembléia Geral da Orga- nização dos Estados Americanos, OEA, na Guatemala, editou a convenção setorial5 denominada Convenção Interamericana sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra Pessoas Portadoras de Deficiência, que não define a pessoa com deficiência e tampouco detalha, mas conceitua o termo “deficiên- cia” como uma restrição física, mental ou sensorial, de natureza permanente ou transitória, que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades essenci- ais da vida diária, causada ou agravada pelo ambiente econômico e social. Não há definição única sobre o que seja pessoa portadora de deficiência, ou como mais recentemente é denominada: pessoa com deficiência. Assim, a conceituação de pessoa com deficiência, em princípio, decorre de dedução lógi- ca derivada do implemento da condição fixada na norma considerada. No Brasil6 o Decreto nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999, com a redação alterada pelo Decreto nº 5.296, de 2 de dezembro de 2004, conceitua deficiência, especifica a 113 deficiência permanente e diferencia a incapacidade (Art. 3º) e, logo em seguida, aponta as categorias das pessoas portadoras de deficiência (Art. 4º): deficiência – toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psi- cológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano (Art. 3º, I); · deficiência permanente – aquela que ocorreu ou se estabilizou durante um período de tempo suficiente para não permitir recuperação ou ter probabi- lidade de que se altere, apesar de novos tratamentos (Art. 3º, II); e · incapacidade – uma redução efetiva e acentuada da capacidade de integração social, com necessidade de equipamentos, adaptações, meios ou recursos especiais para que a pessoa portadora de deficiência possa receber ou transmitir informações necessárias ao seu bem-estar pessoal e ao desempenho de função ou atividade a ser exercida (Art. 3º, III). · Considerada pessoa portadora de deficiência a que se enquadra nas se- guintes categorias: · deficiência física – alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da função física, apresentando-se sob a forma de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, ostomia, amputação ou ausência de membro, paralisia cere- bral, nanismo, membros com deformidade congênita ou adquirida, exceto as deformidades estéticas e as que não produzam dificuldades para o de- sempenho de funções (Art. 4º, I); deficiência auditiva – perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas freqüências de 500HZ, 1.000HZ, 2.000Hz e 3.000Hz (Art. 4º, II); deficiência visual – cegueira, na qual a acuidade visual é igual ou menor que 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; a baixa visão, que significa acuidade visual entre 0,3 e 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; os casos nos quais a somatória da medida do campo visual em ambos os olhos for igual ou menor que 60o; ou a ocor- rência simultânea de quaisquer das condições anteriores (Art. 4º, III); deficiência mental – funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como: a) comunicação; b) cuidado pessoal; c) habilidades sociais; d) utilização dos recursos da comunidade; e) saúde e segurança; f) habilidades acadêmicas; g) lazer; e h) trabalho (Art. 4º, IV); deficiência múltipla – associação de duas ou mais deficiências (Art. 4º V). 114 3. Integração de Normas Internacionais de Direitos Humanos A Constituição de 1988 estabelece a mais precisa e pormenorizada carta de direitos de nossa história e inclui vasta identificação de direitos civis, políti- cos, econômicos, sociais, culturais, além de preciso conjunto de garantias cons- titucionais. A Constituição também impõe, ao Estado brasileiro reger-se, em suas relações internacionais, pelo princípio da prevalência dos direitos humanos (Art. 4o, II, Constituição). Resultado dessa nova diretiva constitucional foi a ade- são do Brasil, no início dos anos noventa, aos Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos, e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, às Convenções Americana de Direitos Humanos e contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, que se encontram entre os mais importantes instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos. A aplicação dos tratados internacionais na ordem jurídica interna é motivo de discussão, na área do direito constitucional, pois a posição hierárquica dos tratados no ordenamento jurídico de cada país é fixada pela respectiva Consti- tuição. No entanto, não se deve esquecer de que essa é uma questão de teoria geral do direito7. Esse tópico cuida de conflito de normas. Assim, convém lembrar que essa espécie de conflito não traduz contradição lógica, mas oposição que é superada pela derrogação, ou seja, o acionamento de função normativa que opera em vigor por meio da edição de outra norma. Nenhuma das normas em conflito retira a validade uma da outra, mas a validade de qualquer delas, ou de ambas, somente pode ser abalada por meio de norma derrogatória o que, para a ciência do direito, deve ser resolvido pela via interpretativa (Diniz, 1987, p.13). A doutrina sobre tratados e acordos faz referência às regras de interpreta- ção e, sobretudo, de integração, as quais cuidam dos demais tratados e acordos, exceto os que traduzem direitos sociais8. Nesse sentido não se aplicam, para os tratados de direitos humanos, as regras dos demais acordos internacionais. Des- sa forma, as respostas sobre os efeitos normativos de cada tratado, acordo ou convenção, dependem das regras constitucionais de cada país e, também, da matéria que é objeto de tais documentos internacionais. A denominação esco- lhida para o documento não tem influência sobre sua especificidade, em face da variedade de denominações que tem sido dada aos acordos internacionais. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 tem dois dispo- sitivos que tratam da relação entre os tratados e o ordenamento interno, cada qual aplicável a distintos instrumentos. Uma regra para os direitos humanos está contida nos §§ 10 e 20 do Art. 50; outra, para os demais acordos, está no Art. 102, III, b. A Emenda Constitucional n0 45/2004, por seu turno, inovou sobre a 115 matéria, conquanto encontre resistência de alguns9. Há quem entenda, porém, que se pode estabelecer uma classificação, a partir do novo texto (Lenza, 2005, p. 311): · Tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos e desde que aprovados por 3/5 dos votos de seus membros, em cada Casa do Congresso Nacional em dois turnos de votação (cf. Art. 60 § 2º, e art. 5, § 3º): equivalem às emendas constitucionais, guardando, desde que observem os “limites do poder de reforma”, estrita relação de paridade com as normas constitucionais; · Tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos aprovados pela regra anterior à Reforma e desde que não sejam confirmadas pelo quorum qualificado: seguindo o entendimento do Supremo Tribunal Federal - STF, guardam estrita relação de paridade normativa com as leis ordinárias10; · Tratados e convenções de outra natureza: têm força de lei ordinária. Afirma-se que, após a edição da EC no 45/2004 o modelo brasileiro passa a ser monista moderado como regra e monista radical por exceção, no caso agora previsto no § 3º, do Art. 5º, da Constituição. Apenas os Diplomas interna- cionais que disponham sobre direitos humanos, desde que aprovados pelo pro- cedimento e quorum previstos no § 2º, do Art. 60, da Constituição terão a mes- ma hierarquia que as emendas constitucionais11. Interessante observar o critério de classificação dos direitos individuais, sustentado por José Afonso da Silva (1999) que afirma existirem, ao lado dos direitos individuais expressos ou implícitos, também os “direitos individuais de- correntes do regime e de tratados internacionais subscritos pelo Brasil, aqueles que não são nem explícita nem implicitamente enumerados, mas provêm, ou podem vir a provir, do regime adotado, como o direito de resistência, entre outros de difícil caracterização a priori”. O Supremo Tribunal Federal, contudo, ao analisar o mérito de questionamentos sobre a prisão por dívida, escorados no Pacto de São José, igualou os tratados de direitos humanos aos demais tratados, deixando claro que aqueles diplomas se situam no mesmo patamar hierárquico das leis ordinárias e, como tais, devem enfrentar questões relacionadas com eventual conflito entre normas12. Há, inclusive, comparação com os ordenamentos de Argentina, Nica- rágua e Bulgária: [...] É inquestionável, dentro do sistema jurídico brasileiro, que a normatividade emergente dos tratados internacionais permite situar tais atos de direito internacional público, no que concerne à hierarquia das fontes, no mesmo plano e grau de eficácia em que se posicionam as leis internas de caráter meramente ordinário, como reconhece a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RTJ 58/70 - RTJ 83/809 - ADI 1.480-DF, Rel. Min. Celso de Mello). 116 Este tema deverá ocupar, nos próximos tempos, boa parte da atenção dos acadêmicos e das linhas editoriais, desde a concepção de uma nova organi- zação tributária internacional, até a elaboração de normas de direitos humanos em decorrência dos efeitos do avanço nas telecomunicações, no movimento de interação e relação dos capitais, do cosmopolitismo ético e do comércio entre os capitais de todos os países. Na era da globalização verifica-se, no entanto, inusitado paradoxo para os direitos humanos. Deles se pode dizer: “quanto mais afirmados, mais são negados” (Faria, 1996), assertiva que é confirmada nos países periféricos, onde a sociedade não atingiu o mesmo nível de garantias dos países centrais.13 4. O sistema interamericano Os direitos humanos também se encontram inseridos no conjunto de regras comuns aos continentes, denominado sistema regional14, cujo objetivo pretende fortalecer os direitos humanos globais, em cada parte do planeta. Assim, podem ser identificados: o sistema europeu15, o sistema americano, também denominado interamericano, pois se refere a todo o continente americano, o sistema africano16 e o sistema árabe17, cada qual com suas declarações, pactos e convenções, a partir dos documentos globais, identificados como sistema global18. O desenvolvimento do Sistema Interamericano ocorreu nas últimas déca- 19 das e pode ser dividido em cinco etapas, conforme observa Trindade (2000a): 1ª) “antecedentes do sistema”, marcada pela mescla de instrumentos de conteúdo e de efeitos jurídicos variáveis(convenções e resoluções orientadas a determinas situações ou categorias de direitos); 2ª) formação do sistema interamericano de proteção, papel solitário e primordial da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e pela expansão gradual da mesma; 3ª) institucionalização convencional do sistema com a entrada em vigor da Convenção de São José, em meados de 1978; 4ª) que se iniciou na década de 80 com a consolidação da jurisprudência da Corte Interamericana com a adoção de dois Protocolos Adicionais: Direitos econômicos, Sociais e Culturais (1988) e sobre a Abolição da Pena de Morte (1990), além das convenções setoriais, desde a prevenção da tortura (1985), até a mais recente20 Convenção Interamericana para Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de deficiência (1999). Por fim, a quinta etapa, merece destaque. Essa quinta (5ª) etapa pode ser denominada de fase do “fortalecimento” do sistema interamericano de proteção, destacando-se: fixação de regras que evitem acumulações indevidas de cargos, ampliação da estrutura material e humana de trabalho, aproximação entre a Corte (São José da Costa Rica) e a Comissão (Washington DC), de forma a possibilitar reuniões conjuntas com 117 mais freqüência por parte desses dois órgãos de supervisão da convenção (até 2000 não foram realizadas mais que dez); revisão e melhor definição sobre as hipóteses de admissibilidade ou não, evitando-se a revisão de decisão; admissibilidade de acesso direto da vítima, com a devida assistência judiciária, a toda a tramitação do procedimento (Trindade, 2000a e 2003). A inserção do Brasil no sistema internacional de direitos humanos, em espe- cial naquele interamericano, ao qual pertence naturalmente, só ocorreu de forma gradual, motivado pelo processo de redemocratização iniciado no final dos anos 70, cujo marco significativo é a anistia, intensificado nas décadas seguintes21. Em 1992 o Decreto nº 678, de 6/11/1992, promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica -, que havia sido adotada e aberta à assinatura na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, em San José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969. Esse Pacto cria a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (Arts. 33/51, 70/73, 79 e 80) e a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Arts. 33, 52/69, 70/73, 81 e 82), as quais têm estatutos e regimentos próprios. 4.1 Conjunto normativo do Sistema Interamericano O sistema interamericano22 é dotado de conjunto de instrumentos básicos que se relacionam com os direitos da infância e da juventude, dos quais desta- camos alguns, para análise do sistema de garantias, para o adolescente autor de ato infracional: a) Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem (1948) – Resolução XXX, Ata Final, aprovada na IX Conferência Internacional Americana, em Bogotá, em abril de 1948. b) Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica – (1969) – Adotada e aberta à assinatura na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, em San José da Costa Rica, em 22/11/ 1969, adotada pelo Brasil, pelo Decreto nº 678, de 6/11/1992. Este Pacto cria a Corte Interamericana de Direitos Humanos e a Comissão Interamericana de Direi- tos Humanos23. O reconhecimento da jurisdição da Corte pelo Brasil ocorreu em novembro de 2002. O Decreto nº/11/2002, declara o reconhecimento da com- petência obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos; c) Protocolo de San Salvador – Protocolo Adicional à Convenção America- na sobre os Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – Assinado em San Salvador, El Salvador, em 17/11/1998, no 18º perí- odo Ordinário de Sessões da Assembléia Geral; promulgado no Brasil pelo De- creto nº 3.321, de 30/12/1999; 118 d) Convenção Interamericana para Prevenir a Tortura – Adotada e aberta à assinatura no XV Período Ordinário de Sessões da Assembléia Geral das Orga- nizações dos Estados Americanos, em Cartagena das Índias (Colômbia), em 9 de dezembro de 1985, promulgada pelo Decreto nº 98.386, de 9/11/1989; e) Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – Convenção de Belém do Pará, Adotada Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos em 6/6/1994. Ratificada Pelo Brasil em 27/11/1995, e Promulgada pelo Decreto nº 1.973, de 1/8/1996; f) Protocolo à Convenção Americana sobre Direitos Humanos Referentes à Abolição da Pena de Morte – Adotado pela Assembléia Geral, aprovado em Assunção, Paraguai, em 8/6/1990; g) Convenção Interamericana sobre Tráfico Internacional de Menores, as- sinada na Cidade do México, em 18 de março de 1994, passando a mesma a vigorar, para o Brasil, em 15 de agosto de 1997, na forma de seu Art. 33; e, promulgado pelo Decreto nº 2.740, de 20/8/1998; h) Convenção Interamericana para Eliminação de todas as Formas de Dis- criminação contra as Pessoas Portadoras de deficiência, adotada na Cidade de Guatemala, Guatemala em 7 de junho de 1999, no vigésimo nono período ordinário de sessões da Assembléia Geral, promulgada pelo Decreto nº 3.956, de 8/10/2001. 4.2. Sistema de supervisão da Convenção Americana Os Arts. 33 e seguintes a Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica - cuidam dos meios de proteção do sistema, definindo competências da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (Co- missão) e da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte). Esse mecanis- mo ou sistema de implementação está baseado em duas formas de controle: as petições24 ou comunicações individuais, e os relatórios. Os direitos da pessoa com deficiência se encontram catalogados em dois documentos do sistema interamericano: o Protocolo de São Salvador e a Con- venção Interamericana para Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de deficiência. O sistema de petições está presen- te no Protocolo de São Salvador mas, apenas para o direito de associação e liberdade sindical (Art. 8.1.a) e ao direito à educação (Art. 13). Assim, a “Proteção de deficientes” (Art. 18 do Protocolo de San Salvador) se encontra amparada pelo mecanismo dos relatórios25, elaborados pela própria Comissão. Entretanto, como veremos a seu tempo, ao cuidar da educação o Protocolo de São Salvador contemplou o direito à educação especial para a pessoa com deficiência. Destarte, é possível implementar a defesa desse direi- 119 to pelo sistema de petições. Já a Convenção Interamericana para Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de deficiência adotou o sistema de relatórios e criou a Comissão para a Eliminação de todas as Formas de Discrimi- nação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência com competência para emi- tir, reformular e atualizar as diretrizes sobre o conteúdo e a forma dos relatórios a serem apresentados pelos Estados Partes. O certo, porém, é que a própria Convenção estabelece que os Estados devem apresentar seu relatório inicial na primeira sessão da Comissão26. Os parâmetros para elaboração deste primeiro relatório estão sendo elaborados no âmbito da Comissão de Assuntos Jurídicos e Políticos do Conselho Permanente da OEA. 4.2.1 Comissão Interamericana de Direitos Humanos A Comissão Interamericana de Direitos Humanos é órgão da Organização dos Estados Americanos incumbido de promover a observância e a defesa dos direitos humanos e servir como órgão consultivo da Organização sobre os direi- tos por ela definidos com relação aos Estados que a integram, direitos consagra- dos na Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem, com relação aos demais Estados membros. 4.2.1.a Composição e formação da Comissão A Comissão Interamericana de Direitos Humanos é integrada por sete membros, pessoas de alta autoridade moral e de reconhecido saber em matéria de direitos humanos que representarão todos os membros da Organização dos Estados Americanos. Os membros da Comissão serão eleitos a título pessoal, pela Assembléia Geral da Organização, a partir de uma lista de candidatos pro- postos pelos governos dos Estados membros. Cada Estado pode propor até três candidatos, nacionais ou de qualquer outro Estado membro da Organização dos Estados Americanos. Se for proposta lista de três candidatos, pelo menos um deles deverá ser nacional de Estado diferente do proponente. Os membros da Comissão serão eleitos por quatro anos e só poderão ser reeleitos uma única vez. Não podem fazer parte da Comissão mais de um nacional do mesmo Estado (Pacto São José, Arts. 34/37). 4.2.1.b Função da Comissão Para promover a observância e a defesa dos direitos humanos e, no exercí- cio do seu mandato, a Comissão terá as seguintes funções e atribuições: estimular a consciência dos direitos humanos nos povos da América; formular recomenda- ções aos governos dos Estados membros, quando considerar conveniente para 120 que adotem medidas progressivas em prol dos direitos humanos no âmbito de suas leis internas e seus preceitos constitucionais, bem como disposições apropri- adas para promover o devido respeito a esses direitos; preparar os estudos ou relatórios que considerar convenientes para o desempenho de suas funções; soli- citar aos governos dos Estados membros que lhe proporcionem informações so- bre as medidas que adotarem em matéria de direitos humanos; atender às consul- tas que, por meio da Secretaria-Geral da Organização dos Estados Americanos, forem a ela formuladas pelos Estados membros sobre questões relacionadas com os direitos humanos e, dentro de suas possibilidades, prestar-lhes o assessoramento solicitado; atuar com respeito às petições e outras comunicações, no exercício de sua autoridade, de conformidade com o disposto nos artigos 44 a 51 da Conven- ção; e apresentar um relatório anual à Assembléia Geral da Organização dos Esta- dos Americanos (Pacto São José, Art. 41). 4.2.1.c Competência Qualquer pessoa ou grupo de pessoas, ou entidade não-governamental legalmente reconhecida em um ou mais Estados membros da Organização, pode apresentar à Comissão petições que contenham denúncias ou queixas de violação da Convenção por um Estado Parte desde que no momento do depó- sito do seu instrumento de ratificação à Convenção ou de adesão a ela, ou em qualquer momento posterior, declare que reconhece a competência da Comis- são para receber e examinar as comunicações em que um Estado Parte alegue haver outro Estado Parte incorrido em violações dos direitos humanos estabele- cidos na Convenção. Estas comunicações só podem ser admitidas e examinadas se apresenta- das por Estado Parte contra Estado Parte que reconheça a competência da Co- missão. A Comissão não admitirá nenhuma comunicação contra um Estado Parte que não haja feito tal declaração. As comunicações podem ser feitas para que a declaração vigore por tempo indefinido, por período determinado ou para casos específicos; e, são depositadas na Secretaria-Geral da Organização dos Estados Americanos, a qual encaminhará cópia dessas comunicações aos Esta- dos membros da referida Organização (Pacto de São José, Arts. 44 e 45). 4.2.1.d Requisitos da comunicação - Pacto de São José, Arts. 46 e 47 Para que uma petição ou comunicação apresentada seja admitida pela Comissão, será necessário: a) que hajam sido interpostos e esgotados os recur- sos da jurisdição interna, de acordo com os princípios de direito internacional geralmente reconhecidos; b) que seja apresentada dentro do prazo de seis meses, a partir da data em que o presumido prejudicado em seus direitos tenha 121 sido notificado da decisão definitiva; salvo se não existir, na legislação interna do Estado de que se tratar, o devido processo legal para a proteção do direito ou violação dos direitos que são alegados; ou, não se houver permitido ao presumido prejudicado em seus direitos o acesso aos recursos da jurisdição interna, ou houver sido ele impedido de esgotá-los; ou, ainda, se houver demo- ra injustificada na decisão sobre os mencionados recursos27. Além desses dois aspectos, é necessário que a matéria da petição ou comunicação não esteja pendente de outro processo de solução internacional; e, no caso da representação feita por pessoa ou grupo, a petição deverá conter o nome, a nacionalidade, a profissão, o domicílio e a assinatura da pessoa ou pessoas ou do representante legal da entidade que submeter a petição. A Co- missão declarará inadmissível toda petição ou comunicação apresentada sem esses elementos e requisitos, ou não expuser fatos que caracterizem violação dos direitos garantidos pela Convenção; e se pela exposição do próprio petici- onário ou do Estado, for manifestamente infundada a petição ou comunicação ou for evidente sua total improcedência; ou, ainda, for substancialmente repro- dução de petição ou comunicação anterior, já examinada pela Comissão ou por outro organismo internacional. Nos termos dos Artigos 48 a 51 do Pacto de São José, a comissão adotará medidas de instrução e poderá formular recomendações, e caso estas não sejam acolhidas publicará e dará publicidade de seu relatório, além de encaminhar o caso a Corte Interamericana. 4.2.2 Corte Interamericana de Direitos Humanos A Corte Interamericana de Direitos Humanos é uma instituição judiciária autônoma, cujo objetivo é a aplicação e a interpretação da Convenção America- na sobre Direitos Humanos. A Corte exerce suas funções, em conformidade com as disposições da citada Convenção e de seu Estatuto. Tem a função jurisdicional, regida pelas disposições dos Artigos 61, 62 e 63, da Convenção; e a consultiva, estabelecida no Artigo 64, da Convenção. Está sediada em San José, Costa Rica, mas pode realizar reuniões em qualquer Estado Membro da Organização dos Estados Americanos – OEA. 4.2.2.a Composição da Corte A Corte compor-se-á de sete juízes, nacionais dos Estados Membros da Organização, eleitos a título pessoal dentre juristas da mais alta autoridade mo- ral, de reconhecida competência em matéria de direitos humanos, que reúnam as condições requeridas para o exercício das mais elevadas funções judiciais, de acordo com a lei do Estado do qual sejam nacionais, ou do Estado que os propu- 122 ser como candidatos. Não deve haver dois juízes da mesma nacionalidade. E serão eleitos, em votação secreta e pelo voto da maioria absoluta dos Estados Partes na Convenção, na Assembléia Geral da Organização, de uma lista de candidatos propostos pelos mesmos Estados; cada um dos Estados Partes pode propor até três candidatos, nacionais do Estado que os propuser ou de qualquer outro Estado membro da Organização dos Estados Americanos. Quando se pro- puser uma lista de três candidatos, pelo menos um deles deverá ser nacional de Estado diferente do proponente (Pacto de São José, Arts. 52 e 53). 4.2.2.b Competência e funções Somente os Estados Partes e a Comissão têm direito de submeter um determinado caso a decisão da Corte, desde de que esgotadas as possibilidades ao alcance da Comissão (Pacto, Art. 61). Todo Estado Parte pode, no momento do depósito de seu instrumento de ratificação da Convenção ou de adesão a ela, ou em qualquer momento poste- rior, declarar que reconhece como obrigatória, de pleno direito e sem conven- ção especial, a competência da Corte em todos os casos relativos à interpreta- ção ou aplicação da referida Convenção. Essa declaração pode ser feita incondi- cionalmente, ou sob condição de reciprocidade, por prazo determinado ou para casos específicos. O instrumento deverá ser apresentado ao Secretário-Geral da Organização, que encaminhará cópias aos outros Estados membros da Organi- zação e ao Secretário da Corte. A Corte tem competência, também, para co- nhecer qualquer caso relativo à interpretação e aplicação das disposições da Convenção que lhe seja submetido, desde que os Estados Partes já tenham reconhecido ou reconheçam a referida competência, seja por declaração espe- cial, como prevêem os incisos anteriores, seja por convenção especial (Pacto de São José, Art. 62). 4.2.2.c Decisões reparatórias Quando decidir que houve violação de qualquer dos direitos ou liberda- des protegidos pela Convenção, a Corte determinará que se assegure ao preju- dicado o gozo de seu direito ou liberdade violados; é necessário que sejam reparadas as conseqüências da medida ou situação que haja configurado a vio- lação desses direitos além de pagamento de indenização justa à parte lesada. Em casos de extrema gravidade e urgência, para evitar danos irreparáveis às pessoas, a Corte, nos assuntos que estiver conhecendo, poderá tomar as medi- das provisórias pertinentes; e, cautelarmente, ainda que o assunto não tenha sido submetido ao seu conhecimento, poderá atuar a pedido da Comissão (Pac- to de São José, Art. 63). 123 Os Estados membros da Organização poderão consultar a Corte sobre a interpretação da Convenção ou de outros tratados concernentes à proteção dos direitos humanos nos Estados americanos e nos demais assuntos de sua compe- tência. A Corte, a pedido de um Estado membro da Organização, poderá emitir pareceres sobre a compatibilidade entre qualquer de suas leis internas e os mencionados instrumentos internacionais, poderá, igualmente, submeter à con- sideração da Assembléia Geral da Organização, em cada período ordinário de sessões, um relatório sobre suas atividades no ano anterior; de maneira especial, e com as recomendações pertinentes, indicará os casos em que um Estado não tenha dado cumprimento a suas sentenças (Pacto de São José, Arts. 64/65). A sentença da Corte deve ser fundamentada. Se, eventualmente, não expressar no todo ou em parte a opinião unânime dos juízes, qualquer deles terá direito a que se agregue a ela o seu voto dissidente ou individual. Tal sentença da Corte será definitiva e inapelável. Em caso de divergência sobre o sentido ou alcance da sentença, a Corte interpretá-la-á, a pedido de qualquer das partes, desde que o pedido seja apresentado dentro de noventa dias a partir da data da notificação da sentença (Pacto de São José, Arts. 66/67). Os Estados Partes na Convenção comprometem-se a cumprir a decisão da Corte em todo caso em que forem partes. A parte da sentença que determinar indenização compensatória poderá ser executada no país respectivo pelo pro- cesso interno vigente para a execução de sentenças contra o Estado. Por fim, a sentença da Corte deve ser notificada às partes no caso e transmitida aos Esta- dos Partes na Convenção (Pacto de São José, Arts. 68/69). 4.4. Reconhecimento da Jurisdição da Corte Interamericana Direitos Humanos Com a edição do Decreto nº 4.463, de 8/11/2002 acentua-se a relevância da Corte Interamericana de Direitos Humanos na medida em que é reconheci- da, pelo Brasil, sua competência em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José), de 22 de novembro de 1969, de acordo com Art. 62 da citada Convenção, sob reserva de reciprocidade e para fatos posteriores a 10 de dezembro de 1998 (Art. 1º, Decreto nº. 4.463/02). Dez anos depois, a relevância desses dois órgãos resulta acentuada, pois, o Estado brasileiro, por meio do Decreto nº 4.463/02 declara o reconhecimento da competência obrigatória da Corte Interamericana28. Assim, nos termos deste diploma legal é reconhecida como obrigatória, de pleno direito e por prazo indeterminado, a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação da Convenção Ameri- 124 cana de Direitos Humanos (Pacto de São José), de 22 de novembro de 1969, de acordo com Art. 62 da citada Convenção, sob reserva de reciprocidade e para fatos posteriores a 10 de dezembro de 1998 (Art. 1º, Decreto nº. 4.463/02). Do final de 2002 até a presente data já foram proferidas duas sentenças relacionadas com o Brasil.29 A primeira delas, o caso Ximenes Lopes, trata de uma pessoa portadora de transtorno mental falecida em razão de maus tratos que sofreu no Hospital Psiquiátrico Guararapes, situado na cidade de Sobral, no Estado do Ceará. O segundo julgamento – caso Nogueira de Carvalho – diz respeito ao assassinato do advogado defensor dos direitos humanos que, após denunciar assassinatos e torturas cometidas por agentes policiais integrantes do grupo Meninos de Ouro comandados pelo então Secretário Adjunto de Segu- rança Pública do Rio Grande do Norte. Além disso, várias medidas cautelares (provisionais) foram proferidas em outros três casos que se encontram em andamento perante a Corte: § Medidas Provisionais: – Corte IDH. Asunto de la Cárcel de Urso Branco . Medidas Provisionales Respecto a Brasil. Resolución de la Corte Versão em português , 21-09-05; Resolución de la Corte Versão em português ,07-07-04(Voto Juez García Ramírez, Voto Juez Cançado Trindade); Resolución de la Corte Versão em português, 22-04-04; Resolución de la Corte Versão em português , 29- 08-02; Resolución de la Corte Versão em português,18-06-02. – Corte IDH. Asunto de las personas privadas de libertad de la Penitenciaria “Dr. Sebastião Martins Silveira” en Araraquara, São Paulo . Medidas Provisionales Respecto a Brasil. Resolución de la Corte Versão em português, 30-09-06 (Voto Juez Cançado Trindade, Voto Juez Cançado Trindade); Resolución de Presidente (Medidas Urgentes) Versão em português, 28-07-06. – Corte IDH. Asunto de los Niños y Adolescentes Privados de Libertad en el “Complexo do Tatuapé” da FEBEM. Medidas Provisionales Respecto a Brasil. Resolución de la Corte Versão em português, 0 4 - 0 7 - 0 6 ; Resolución de la CorteVersão em português, 30-11-05( Voto Juez García Ramírez, Voto Juez Cançado Trindade); Resolución de la Corte Versão em português, 17-11-05 (Voto Juez Cançado Trindade). 5. A pessoa com deficiência e a implementação dos Direitos Sociais no Sistema Interamericano Na verdade como já vimos acima, os direitos das pessoas com deficiên- cia aparecem em dois documentos básicos do sistema interamericano: no Pro- tocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, Protocolo de San Salvador, de 17 de novembro de 1988(art. 18); e na Convenção Interamericana sobre a Elininação 125 de Todas as Formas de Discriminação contra Pessoas Portadoras de Deficiência, de 1999. A forma de controle desses direitos é operacionalizada por intermédio dos relatórios. Todavia, em face do teor do Artigo 13 do Protocolo de São Salvador, é possível, igualmente, acionar o sistema interamericano por intermé- dio de petições relativas ao direito à educação. 5.a Protocolo de São Salvador O Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre os Direitos Huma- nos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais foi assinado em San Salvador, El Salvador, em 17 de novembro de 1998, no 18º período Ordinário de Sessões da Assembléia Geral e promulgado no Brasil pelo Decreto nº 3.321, de 30/12/1999. O artigo 18 do Protocolo contempla a “Proteção de deficientes” – toda pessoa afetada por diminuição de suas capacidades físicas e mentais tem direito a receber atenção especial, a fim de alcançar o máximo desenvolvimen- to de sua personalidade. Os Estados Partes comprometem-se a adotar as medidas necessárias para esse fim e, especialmente, a: a) executar programas específicos destinados a proporcionar aos deficientes os recursos e o ambiente necessário para alcançar esse objetivo, inclusive programas trabalhistas adequados a suas possibilidades e que deverão ser livremente aceitos por eles ou, se for o caso, por seus repre- sentantes legais; b) proporcionar formação especial às famílias dos deficientes, a fim de ajudá-los a resolver os problemas de convivência e convertê-los em elementos atuantes no desenvolvimento físico, mental e emocional destes; c) incluir, de maneira prioritária, em seus planos de desenvolvimento urbano a consideração de soluções para os requisitos específicos decorrentes das neces- sidades deste grupo; d) promover a formação de organizações sociais nas quais os deficientes possam desenvolver uma vida plena. Nesse Protocolo também há referência à pessoa com deficiência no Arti- go 13 que cuida do Direito à educação. Inicialmente o Protocolo de San Salva- dor fixa que “toda pessoa tem direito à educação”, educação essa que deverá orientar-se para o pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sen- tido de sua dignidade e deverá fortalecer o respeito pelos direitos humanos, pelo pluralismo ideológico, pelas liberdades fundamentais, pela justiça e pela paz. Convêm, também, que a educação capacite todas as pessoas para parti- cipar efetivamente de uma sociedade democrática e pluralista de forma a pro- piciar subsistência digna com favorecimento da compreensão, da tolerância e da amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promoção das atividades em prol da manutenção da paz. (Pacto São Salva- dor, Art. 13, §§1º e 2º). 126 Prossegue o instrumento internacional no parágrafo 3º, do Art. 13, afir- mando que os Estados Partes deste Protocolo reconhecem que, a fim de conse- guir o pleno exercício do direito à educação, entre outros elementos: alínea e “deverão ser estabelecidos programas de ensino diferenciado para os deficien- tes, a fim de proporcionar instrução especial e formação a pessoas com impedi- mentos físicos ou deficiência mental.” A expressão instrução especial poderá levar o leitor desavisado apontar como necessário o regime de escola especial. Porém, no entendimento mais dinâmico do próprio conceito de educação e considerando a qualidade que não pode ser desatrelada, temos que a escola deve ser para todos, como diz o §1°, do Artigo 13, com programa que contemple metodologia e recursos necessári- os para a educação de pessoas com deficiência, e não necessariamente uma escola própria, isolada e segregada30. O Pacto de São Salvador, pautado no princípio da subsidiariedade e da autonomia de vontade, preserva tanto a opção dos pais pela opção do ensino, como a livre iniciativa para atuar na educação, desde que respeitados os princí- pios do próprio pacto e da legislação interna do país, que também deve pautar- se pelo disposto neste protocolo de São Salvador31. 5.b Convenção Interamericana para Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de deficiência A Convenção Interamericana para Eliminação de todas as formas de Dis- criminação contra as Pessoas Portadoras de deficiência foi adotada na Guatemala, na cidade do mesmo nome, em 7 de junho de 1999, no 29º período ordinário de sessões da Assembléia Geral e, promulgada pelo Decreto nº 3.956, de 08 de outubro de 2001, cujo objeto e objetivo principal é prevenir e eliminar todas as formas de discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência e propiciar a sua plena integração à sociedade (Art.2º). O texto da convenção fixa duas discriminações: a primeira que vem a ser de natureza negativa, associada ao preconceito que deve ser combatida (discri- minação propriamente dita); e a segunda que decorre de ações afirmativas que devem ser estimuladas (“diferenciação ou preferência” – discriminação po- sitiva). Considera-se discriminação toda diferenciação, exclusão ou restrição ba- seada em deficiência, antecedente de deficiência, conseqüência de deficiência anterior ou percepção de deficiência presente ou passada, que tenha o efeito ou propósito de impedir ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício por parte das pessoas portadoras de deficiência de seus direitos humanos e suas liberdades fundamentais (Art. 1, §2, a). 127 Não se caracteriza discriminação a diferenciação ou preferência adotada pelo Estado Parte para promover a integração social ou o desenvolvimento pes- soal dos portadores de deficiência, desde que a diferenciação ou preferência não limite em si mesma o direito à igualdade dessas pessoas e que elas não sejam obrigadas a aceitar tal diferenciação ou preferência. Nos casos em que a legislação interna preveja a declaração de interdição, quando for necessária e apropriada para o seu bem-estar, esta não constituirá discriminação (Art. 1, §2, b). Desta forma, os Estados Partes comprometem-se a: tomar as medidas de caráter legislativo, social, educacional, trabalhista, ou de qualquer outra nature- za, que sejam necessárias para eliminar a discriminação contra as pessoas porta- doras de deficiência e proporcionar a sua plena integração à sociedade, apre- sentando rol exemplificativo32 em seu Artigo 3. Nos termos da Convenção da Guatemala, o trabalho prioritário deve ocor- rer na área da saúde, na preparação das pessoas com deficiência para vida mais autônoma possível e na eliminação do preconceito presente no seio da socie- dade (Art. 3°, §2°, alíneas a, b, c): prevenção de todas as formas de deficiên- cia33; detecção e intervenção precoce, tratamento, reabilitação, educação, for- mação ocupacional e prestação de serviços completos para garantir o melhor nível de independência e qualidade de vida para as pessoas com deficiência; e, sensibilização da população, por meio de campanhas de educação, destinadas a eliminar preconceitos, estereótipos e outras atitudes que atentam contra o direi- to das pessoas serem iguais, permitindo desta forma o respeito e a convivência entre as pessoas com deficiência. 6. Conclusão. Exercício do direito à educação e o sistema interamericano: educar a pessoa com deficiência é dever de todos No plano legal, o Brasil já tem observado esses preceitos, em especial após a Constituição de 198834 com edição de Leis importantes destacando-se a Lei nº 7.853/89 que fixa as diretrizes de garantias nas áreas da educação, saúde, formação profissional, trabalho, edificações e criminalização do preconceito. A Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000, estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas com deficiên- cia ou com mobilidade reduzida que estabelece o conceito de barreiras35 e especialmente a “barreiras nas comunicações: qualquer entrave ou obstáculo que dificulte ou impossibilite a expressão ou o recebimento de mensagens por intermédio dos meios ou sistemas de comunicação, sejam ou não de massa”; há também normas específicas para a linguagem de libras (Lei nos 10.048, de 8 de novembro de 2000 e Lei 10.436, de 24 de abril de 2002). Assim, do ponto de vista legislativo há avanços significativos (CERIS, 2006). 128 Segundo avaliação do IPEA ao considerar participação na escola, no tra- balho e rendimentos, há indicadores que apontam o atendimento escolar insu- ficiente para as pessoas com deficiência e com implicações diretas no grau de ocupação e renda dessa população que, em muitas situações, torna-se depen- dente dos benefícios sociais36. Por outro lado, mesmo diante de todo esse arcabouço legislativo, vez por outra há surpresas como a de se entender que os dispositivos constitucio- nais e legais estão voltados apenas e tão somente para os estabelecimentos do pode público, não vinculando particulares que oferecem serviços educacionais, o que tem de ser rechaçado com veemência (Balera e Pinho, 2006). O direito à educação diferenciada para a pessoa com deficiência pode ser exigido perante o Sistema Interamericano, através de petição. É que, como sali- enta o Art. 13 do Protocolo de São Salvador, toda pessoa tem direito à educação e, no âmbito dos Estados Partes deverão ser estabelecidos programas de ensino diferenciado para os deficientes, a fim de proporcionar instrução especial e for- mação a pessoas com impedimentos físicos ou deficiência mental (Art. 13, §3, e). Em nosso ordenamento jurídico a educação é direito fundamental e, por conseguinte, dever do Estado, não excluindo de nenhum modo a iniciativa privada do processo educacional. O sistema constitucional prevê a coexistência de escolas públicas e privadas (Balera e Pinho, 2006). No sistema interamericano o direito à educação da pessoa com deficiên- cia foi destacado e mereceu proteção específica, tanto que não está situado no artigo 18 do Protocolo de São Salvador, que cuida da proteção de deficientes mas, sim no tópico destinado ao direito à educação (Art. 13), em plena conso- nância com o disposto no Art. 208, III, da Constituição de 1988. O que se busca é a educação de boa qualidade para todos, idéia básica de inclusão. Para tanto, imprescindível a instituição de programa diferenciado e não um sistema ou nível de ensino distinto, pois este programa deve estar disponível para o ensino fundamental, ensino de segundo grau (médio) e para o ensino superior (Proto- colo de São José, Art. 13). Nos termos do Artigo 13 do Protocolo de São Salvador o programa de ensino diferenciado deve ter conteúdo e objetivos perseguidos pela educação como um todo, ou seja: orientar-se para o pleno desenvolvimento da persona- lidade humana e do sentido de sua dignidade e deverá fortalecer o respeito pelos direitos humanos, pelo pluralismo ideológico, pelas liberdades fundamen- tais, pela justiça e pela paz. Convêm, também, que a educação capacite todas as pessoas para participar efetivamente de uma sociedade democrática e pluralista, de forma a garantir subsistência digna, com favorecimento da com- 129 preensão, da tolerância e da amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos além de promoção de atividades em prol da manutenção da paz. Na hipótese de inexistirem programas de ensino diferenciado para as pessoas com deficiência, a fim de proporcionar instrução especial e formação de pessoas com impedimentos físicos ou deficiência mental e essa situação decorra da “ação imputável diretamente a um Estado Parte deste Protocolo”, poderá haver mediante participação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e, quando cabível, da Corte Interamericana de Direitos Humanos, à aplicação do sistema de petições individuais37. Notas 1 A doutrina de direitos humanos protegidos internacionalmente oferece uma das mais vigorosas críticas da soberania do modo como é atualmente constituída, e as práticas da legislação de direitos humanos e as políticas externas de direitos humanos fornecem exemplos concretos da mudança na compreensão dos limites da soberania (Sikkink, 2006). 2 Considerando que a noção elementar de sistema é a de conjunto de peças que compõe o todo, parece-nos adequado examinar cada peça isoladamente e no conjunto dentro no qual a mesma se encaixa (Balera, 2006). 3 Assim, há uma interação entre o sistema global e o regional por isso se aceita “atualmente a idéia da comutatividade: os sistemas regionais e o sistema global podem e devem atuar simultaneamente para reforçar o controle internacional sobre violações de direitos humanos. E isto é válido precisamente em função das distintas naturezas de cada um” (Alves, 2003, p.75). 4 Letra “e” do Preâmbulo. In, Indexação do protocolo facultativo desenvolvido pelo CAO-CIVEL-MPSP, a partir do texto apresentado no http://www.mj.gov.br/ mpsicorde/arquivos/publicacao/714/Images/714_1.doc. 5 termo utilizado ao referir-se sobre a ampliação do corpo normativo, Convenções interamericanas setoriais de proteção (Trindade 2000a., p. 137). 6 RIBEIRO, p. 89: “conceituação legal de pessoa com deficiência prevista no art. 4º do Decreto n. 3.298/99 (que regulamenta a Lei no 7.853/89), com a nova redação atribuída pelo Decreto n. 5.296/04 (que regulamenta as Leis nos 10.048 e 10.098, de 2000"); e, Ampla pesquisa sobre o conceito em vários diplomas normativos nacionais e internacionais em BOUCINHAS FILHO, p. 501/503.. 7 A lição propedêutica de Geraldo Ataliba, na seara do Direito Tributário, é válida para outros ramos do estudo do direito: “Exemplificando com o nosso curso, o maior número de questões discutidas girará em torno da Teoria Geral do Direito, e não do Direito Tributário. Pode-se verificar que 80% das discussões não serão sobre teoria geral do direito” (Ataliba, 1978, p.13). 8 “Pelo que se observa, um critério classificatório das normas jurídicas, que desprezasse a contundente realidade da existência das normas de Direito Social, seria não apenas inatural, como irresponsável” (Vasconcelos, 1996, p. 223). 9 IESKI CALMON de PASSOS, Jorge. “Direitos Humanos na reforma do Judiciário.” In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.). Reforma do Judiciário; Primeiros 130 ensaios críticos sobre a ECA n. 45/2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. “O teor do § 3. doa art. 5º é de todo inconstitucional, pois viola o disposto no § 4º, IV, ao Art. 60 da Constituição, atentando contra cláusulas pétreas.” 10 Há, pelo autor, a ressalva de sua divergência com esse entendimento; além disso, cita, em sua nota 79-c, os entendimentos de Flávia Piovesan e de José Carlos Francisco, propondo que esses tratados têm caráter constitucional. O último inclusive, aponta que, quando o constituinte quis afastar a recepção automática com caráter de norma constitucional, manifestou-se expressamente, como o fez com as súmulas preexistentes, nos termos do art. 8º da EC n. 45. 11 Com a edição da EC no 45/2004, que introduziu o § 3o ao art 5o da CR, houve uma clara opção do ordenamento constitucional brasileiro pela supremacia constitucional de seu texto originário em relação às normas internacionais, verbis: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. Logo, são possíveis as seguintes conclusões: 1) qualquer documento internacional tem nível hierárquico inferior ao texto constitucional originário; 2) apenas os documentos internacionais que disponham sobre direitos humanos e tenham sido aprovados pelo mesmo procedimento e quorum previstos no § 2o do art. 60 da CR têm a mesma hierarquia das emendas; 3) os demais documentos internacionais, de qualquer outro conteúdo ou que tratem de direitos humanos mas não tenham sido aprovados na forma do § 2o do art. 60 da CR, têm a mesma hierarquia das leis ordinárias; 4) tudo isso sem alterar o modo como tais normas adquirem validade e eficácia no ordenamento nacional, ou seja, mediante o modelo de execução. Com isso, o modelo brasileiro passa a ser monista moderado como regra e monista radical por exceção, no caso agora previsto no § 3º, do Art. 5º, da CR. (Jeveux, p. 96). 12 R.E. n. 269.661-7 – SP. Relator: Min. Celso de Mello. Brasília, 9/5/2000. In: DJU – Diário da Justiça, seção 1, n. 112-E, segunda-feira, 12 de junho de 2000, p. 50-51. No mesmo sentido: HC n. 77.631-SC, STF, rel. Min. Celso de Melo, 3/8/1998, DJU de 19/8/1998, Info. STF n. 124, de 21/9/1998 (In: Arquivos de Direitos Humanos, 1999. p.217-222). 13 NEVES, Marcelo. “Crise do estado: da modernidade central à modernidade periférica – anotações a partir do pensamento filosófico e sociológico alemão.” In: Revista Trimestral de Direito Público. Vol.5. São Paulo, s/d. 14 TRINDADE, Antonio A. Cançado. Op. cit., 1991. TRINDADE, Antonio A. Cançado. A proteção internacional dos direitos humanos e o Brasil. (1948-1997): as primeiras cinco décadas. 2a ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000. MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito internacional público. 12ªed. Vol.2. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. MELLO, Cleyson de Moraes; FRAGA, Thelma Araújo Esteves (orgs.). Direitos Humanos: coletânea de legislação. Rio de Janeiro: F. Bastos, 2003. LIMA JÚNIOR, Jayme Benvenuto; GORENSTEIN, Fabiana; HIDAKA, Leonardo Jun (orgs.). Manual de direitos humanos internacionais: acesso aos sistemas global e regional de proteção dos direitos humanos. São Paulo: Edições Loyola, 2002. NIKKEN, Pedro. La proteccion internacional de los derechos humanos: su desarrollo progresivo. Madri: Instituto interamericano de dedrechos humanos; Editorial Civitas S.A., 1987. NORRIS, Robert E.; BUERGENTHAL, Thomas; SHELTON, Dinah. La protecion de los derechos humanos en las Americas. Madri: Instituto interamericano de derechos humanos; Editorial Civitas S.A., 1994. 131 15 Estatuto do Conselho da Europa – Adotado em Londres, a 5 de maio de 1949. Entrada em vigor na ordem internacional: 3 de agosto de 1949. Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais tal como Emendada pelo Protocolo n. 11. Protocolo n. 1 Adicional à Convenção de Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais. Protocolo n. 2 que Confere ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Competência para Emitir Opiniões Consultivas. Protocolo n. 4 em que se Reconhecem Certos Direitos e Liberdades alem dos que já Figuram na Convenção e no Protocolo Adicional à Convenção – Estrasburgos, 16.9.1963 – Series de Tratados Europeus/ 46. Protocolo n. 6 à Convenção para a Proteção dos Direitos do homem e das Liberdades Fundamentais Relativo á Abolição da Pena de Morte. Protocolo n. 7 à Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais. Carta Social Européia Revista. Adotada em Estrasburgos, a 3 de maio de 1996. Entra em vigor na Ordem Internacional: 1 de junho de 1999. Protocolo Adicional à Carta Social Européia prevendo um Sistema de Reclamações Coletivas. Adotado em Estrasburgos, a 9 de novembro de 1995. Entrada em vigor na ordem internacional: 1 de julho de 1998. 16 Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos. Convenção que rege os aspectos específicos dos Refugiados na África. – CARTA DE BANJUL. Aprovada pela Conferência Ministerial da Organização da Unidade Africana (OUA) EM Banjul, Gâmbia, em janeiro de 1981, e adotada pela XVIII Assembléia dos Chefes de Estado e Governo da Organização da Unidade Africana (OUA) em Nairobi, Quênia, em 27 de julho de 1981. Convenção da OUA – Convenção da Organização da Unidade Africana (OUA) que rege os aspectos específicos dos problemas dos refugiados na África. Adotada pela Conferência dos Chefes de Estado e de Governo quando da Sexta Sessão Ordinária (Adis-Abeda, 10 de setembro de 1969) – Entrada em vigor: 20 de junho de 1974, de acordo com artigo XI – Texto: Nações Unidas, Recolha de Tratados n. 146.981. 17 TRINDADE, Antonio A. Cançado. Op. cit., 1991. p.503. Esta obra já trazia o “Projeto de Carta dos Direitos Humanos e dos Povos no Mundo Árabe”, de 1971. STEINER, Sylvia Helena de Figueiredo. A convenção americana sobre direitos humanos e sua integração ao processo penal brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. A autora observa que a Carta Árabe de Direitos Humanos foi aprovada em setembro de 1994, mas ainda não entrou em vigor. 18 Carta Geral das Nações Unidas (1945). Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) – Adotada e proclamada pela Resolução no 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948. Assinada pelo Brasil na mesma data. Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966) – Adotada pela Resolução no 2.200-A da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966. Aprovado pelo Decreto Legislativo n. 226, de 12.12.1991. Assinado pelo Brasil em 24 de Janeiro de 1992. Entrou em vigor no Brasil em 24.2.1992. Promulgado pelo Decreto n. 591, de 6.7.1992. Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (1966) – Adotado pela Resolução no 2.200-A da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966. Aprovada pelo Decreto Legislativo no 226, de 12.12.1991. Retificado pelo Brasil em 24 de Janeiro de 1992. Em vigor no Brasil em 24.4.1992. Promulgado pelo Decreto no 592, de 6.7.1992. Protocolo Facultativo Referente ao Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos – Aprovado pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 16 de dezembro de 1966. Em vigor em 23 de março de 1976. Segundo Protocolo Facultativo Referente ao Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e 132 Políticos, Destinado a Abolir a Pena de Morte. Adotada e Proclamada pela Resolução n. 44/128 da Assembléia das Nações Unidas, de 15 de dezembro de 1989. Existe, ainda, o sistema humanitário, que procura proteger pessoas em situação de conflito armado, cujas bases são das Convenções de Genebra. 19 SIKKINK: “a expansão da legislação e da política de direitos humanos no período pós-guerra representou uma tentativa consciente de modificar os entendimentos e práticas compartilhadas de soberania”. 20 Os documentos estão arrolados logo abaixo. 21 Especialmente, sobre a produção dos documentos que pautaram a política externa brasileira, na área de direitos humanos, conferir em MEDEIROS, Antônio Paulo Cachapuz de(org.). Pareceres dos Consultores Jurídicos do Itamaraty - Antonio Cançado Trindade, Vol. VIII(1985-19990). 22 PRONER, Carol. Os direitos humanos e seus paradoxos: análise do sistema americano de proteção. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002. HANASHIRO, Olaya Silvia Machado Portella. O sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo - FAPESP, 2001. GOMES, Luiz Flávio; PIOVESAN, Flávia (coords.). O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e o direito brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. 23 Parte I – Direitos e Deveres protegidos; e, Parte II – Meios de Proteção. Capitulo VI – Órgãos Competentes. Capitulo VII – Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Seção 1 – Organização. Seção 2 – Funções. Seção 3 – Competência. Seção 4 – Processo. Capitulo VIII – Corte Interamericana de Direitos Humanos. Seção 1 – Organização. Seção 2 – Competência e Funções. Seção 3 – Processo.Capitulo IX – Disposições Comuns. (...) Capitulo XI – Disposições Transitórias. Seção 1 – Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Seção 2 – Corte Interamericana de Direitos Humanos. 24 “El Sistema Interamericano es único en cuanto que todos los Estados Miembros de la OEA están sujetos al derecho de petición, ya sea como estados Partes de La Convención, ya a través del sistema fundado en la Carta. La reclamaciones interestatales no están previstas expresamente tratándose de Estados que no son Partes de la Convención; en el caso de los que sí lo son, las reclamaciones interestatales son optativas” (NORRIS, Robert E.; BUERGENTHAL, Thomas; SHELTON, pág. 262). 25 “o protocolo teria sido mais positivo se tivesse sido estendido o direito de petição individual igualmente aos outros direitos protegidos. Propiciar-se-ia , assim, o desenvolvimento de uma jurisprudência também neste domínio, e reduzir-se-ia a disparidade de procedimentos de supervisão entre, por um lado, os direitos civis e políticos, e, por outro, os direitos econômicos e culturais” (Trindade, 2000 a , p. 139). 26 "ao ratificar a Convenção, cada Estado se compromete, em virtude do artigo VI 3, a apresentar um relatório ao Secretário-Geral da Organização para que este o encaminhe à Comissão para ser analisado e estudado. A alínea 4 indica que os relatórios deverão incluir as medidas que os Estados membros tiverem adotado na aplicação desta Convenção e qualquer progresso que tiverem alcançado na eliminação de todas as formas de discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência. Os relatórios também conterão todas as circunstâncias ou dificuldades que afetarem o grau de cumprimento derivado desta Convenção” (OEA/SER.G- CP/CAJP-2420/06 rev.4-19 janeiro 2007). 133 27 Sobre este aspecto a Opinião Consultiva OC-11/90, de 10.08.1990, dispensa no caso de inexistir defensor para o caso, por inexistência do serviço de assistência, ou por medo de represálias os defensores existentes não assumirem a defesa do caso. E GARCIA ELORRIO 28 Decreto nº 4.463, de 8 de novembro de 2002, promulga a Declaração de Reconhecimento da Competência Obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos, sob reserva de reciprocidade, em consonância com o art. 62 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José), de 22 de novembro de 1969. 29 http://www.corteidh.or.cr/pais.cfm?id_Pais=7– consulta em 6/4/2007 15:16 30 DUK aponta para a experiência de inclusão regional desenvolvido na região de Chimbarongo, VI Região do Chile: “As escolas que participam desse projeto regional têm muito claro o papel represenado pela família na aprendizagem de seus filhos, em especial no que se refere a crianças com maior nível de dificuldade. Assim, dentre outras atividades, realizam reuniões mensais com os pais das crianças incluídas, por meio das quais estes se mantêm informados quanto aos progressos de seus filhos na aprendizagem, além de obter um feedback e orientações pra que possam ajudá-los em casa, comprometendo, assim, sua participação no processo educacional. De igual modo, essas escolas estabelecem relações de cooperação com um Centro de educação Especial da localidade, o qual lhes presta serviços de apoio especializado. No caso, profissionais de apoio visitam regularmente as escolas e colaboram com os docentes na preparação das adaptações curriculares, no preparo da de metodologias de atendimento à diversidade, assim como no acompanhamento e apoio à aprendizagem dos alunos(a)s com necessidades educacionais especiais. “(pág.164) 31 “de acordo com a legislação interna dos Estados Partes, os pais terão direito a escolher o tipo de educação a ser dada aos seus filhos, desde que esteja de acordo com os princípios enunciados acima.” “Nada do disposto neste Protocolo poderá ser interpretado como restrição da liberdade dos particulares e entidades de estabelecer e dirigir instituições de ensino, de acordo com a legislação interna dos Estados Partes.” (Pacto São Salvador art. 13, §§ 3.e 4.) 32 Artigo 3., §1.: a) medidas das autoridades governamentais e/ou entidades privadas para eliminar progressivamente a discriminação e promover a integração na prestação ou fornecimento de bens, serviços, instalações, programas e atividades, tais como o emprego, o transporte, as comunicações, a habitação, o lazer, a educação, o esporte, o acesso à justiça e aos serviços policiais e as atividades políticas e de administração; b) medidas para que os edifícios, os veículos e as instalações que venham a ser construídos ou fabricados em seus respectivos territórios facilitem o transporte, a comunicação e o acesso das pessoas portadoras de deficiência; c) medidas para eliminar, na medida do possível, os obstáculos arquitetônicos, de transporte e comunicações que existam, com a finalidade de facilitar o acesso e uso por parte das pessoas portadoras de deficiência; d) medidas para assegurar que as pessoas encarregadas de aplicar esta Convenção e a legislação interna sobre esta matéria estejam capacitadas a fazê-lo. 33 IPEA: “Outro desafio é a prevenção. A deficiência atinge 1 ,5% da população e é contingência que muitas vezes pode ser prevenida. Deveria, por isto, merecer o mesmo empenho que a política previdenciária. Na saúde a prevenção tem menor custo/benefício que a política curativa, e o mesmo vale para a deficiência, cuja prevenção deve ocorrer nas áreas alimentar, de saúde, de transportes, de segurança pública e do trabalho.” 134 34 Constituiçao de 1988, arts. 7º, XXI; 37, § VIII; 203, IV e V; 208, III; 227, II, §2º; 244. 35 Art. 2º, II,(...) “barreiras: qualquer entrave ou obstáculo que limite ou impeça o acesso, a liberdade de movimento e a circulação com segurança das pessoas” 36 IPEA: “Em relação aos aspectos de participação na escola, no trabalho e rendimentos, freqüentavam a escola 3,2 milhões de pessoas com deficiência ou 13% delas, percentual bastante inferior ao das pessoas sem nenhum tipo de deficiência, cuja freqüência à escola era de 3,7%, dado que sugere que o atendimento escolar às pessoas com deficiência é insuficiente, porque indisponível para os demandantes potenciais. Das pessoas com 10 anos ou mais de idade, 23,5 milhões tinham alguma deficiência e sua taxa de ocupação era em torno de 11% inferior à das pessoas sem nenhum tipo de deficiência e seu rendimento também era menor. Dos ocupados, 5,6 milhões eram homens e 3,5 milhões eram mulheres. Entre os homens, 8,9% desempenhavam trabalho não-remunerado ou recebiam pagamento em benefícios, enquanto entre as mulheres este percentual chegava a 13,3%, situação mais acentuada que a observada entre as pessoas que não apresentam deficiência, cujos percentuais de ausência de remuneração pelo trabalho desenvolvido eram de respectivamente 7,0% e 8,7%. Entre a população sem deficiência acima de dez anos, ,5% não auferia rendimentos, percentual bastante superior ao da população com deficiência, de 31%. Provavelmente, o Benefício de Prestação Continuada e a Renda Mensal Vitalícia influenciem, em alguma medida, este resultado, pois 1,5 milhão de pessoas com deficiência recebe esses benefícios de Assistência Social. No entanto, entre as pessoas com deficiência predominavam os menores rendimentos. A proporção de pessoas com até 1 salário mínimo de rendimento entre as pessoas com deficiências (31,9%) era o dobro do que a existente entre as demais pessoas (15%). Acima de cinco salários a situação se invertia, com percentuais de 9, % e 11,6%, respectivamente.” 37 Protocolo de São Salvador, art. 19, § 6. 6. Caso os direitos estabelecidos na alínea “a” do artigo 8, e no artigo 13, forem violados por ação imputável diretamente a um Estado Parte deste Protocolo, essa situação poderia dar lugar, mediante participação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e, quando cabível, da Corte Interamericana de Direitos Humanos, à aplicação do sistema de petições individuais regulado pelos artigos 44 a 51 e 61 a 69 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Bibliografia ALVES, José Augusto Lindgren. Os direitos humanos como tema global. São Paulo: Perspectiva, 2003. ANNONI, Danielle. Dirietos humanos & acesso à justiça no direito internacional. Curitiba: Juruá, 2003. ARAUJO, Luiz Alberto David.. A proteção constitucional das pessoas portadoras de deficiência. Brasília: CORDE(Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência), 1994. ATALIBA, Geraldo 1978 Propedêutica jurídica. In: ATALIBA, Geraldo (Coord.) 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Estudo sobre a inclusão escolar e o direito de opção da família. Palavras chave: deficiência, inclusão escolar, educação, ensino, escolas. Abstract: Analysis of some provisions of the Constitution and laws about the right to education the chrildren with disabilities. A study of inclusive education and the family’s right to choose it. Keywords: Disabilitie, inclusive education, education, common education, schools. 139 1. Educação: um Direito Fundamental de todas as pessoas A Lei nº 7.853/89, conforme disposição contida em seu primeiro artigo, visa garantir o pleno exercício dos direitos individuais e sociais das pessoas com deficiência, entre eles, o direito à educação. A Constituição reconhece a importância deste direito fundamental ao considerá-la, no seu Art. 205, como imprescindível ao pleno desenvolvimento da pessoa, ao seu preparo para o exercício da cidadania e à sua qualificação para o trabalho1. A sua negação reveste-se de gravidade extrema. Impedir o seu exercício significa condenar alguém a viver à margem da sociedade, privando- o do crescimento pessoal que apenas o convívio social é capaz de oferecer. Sendo tal conduta praticada em desfavor de uma criança, esta se reveste de especial crueldade, pois a infância é o momento em que o indivíduo está mais apto ao aprendizado. A simples negação deste direito, nesta fase da vida, significa retirar-lhe toda e qualquer oportunidade de desenvolver-se como pes- soa. A criança não pode esperar pelo momento da escola, pois este é o seu momento. Amanhã, será tarde demais e, todos os esforços porventura empre- endidos já não mais farão sentido. Sobre a necessidade de atenção imediata deste direito na infância, vale transcrever as sábias palavras da poetisa Gabriel Mistral, ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura, em 1945: Nós somos culpados de muitos erros e muitas faltas, mas nosso maior crime é abandonar as crianças, negligenciando a fonte da vida. Muitas coisas que nós precisamos fazer podem esperar: a criança não pode. Exatamente agora é o tempo em que os seus ossos estão sendo formados, seu sangue está sendo feito e seus sentidos estão sendo desenvolvidos. Para ela, não podemos responder “amanhã”. Seu nome é hoje. Em consonância com esta premissa, a nossa Constituição reconhece a fundamentalidade do direito à educação, ao elencá-lo entre os direitos sociais2 (Art. 6º). Mais do que isso, introduziu comando expresso (Art. 205) afirmando que a educação é um direito de todos e um dever do Estado e da Família. Tal direito tem um grande desafio: garantir o seu acesso a todos os indivíduos. A escola tem que ser para todos, não podendo nenhum aluno ser excluído, pois, todos devem ser aceitos como parte integrante do sistema educacional. Desta forma, cabe ao Poder Público e à sociedade implementar medidas tendentes à promoção da inclusão das pessoas com deficiência na rede regular de ensino. A preocupação com a universalidade deste direito é internacional. A Declaração Universal dos Direitos Humanos3 de 1948, prescreve no Art. XXVI, 1 que toda pessoa tem direito à instrução4. Do mesmo modo, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais5 reconhece, no Art. 13, o direito de toda pessoa à educação6. 140 A Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada pela As- sembléia Geral das Nações Unidas em 06/12/067, reconhece que a discriminação contra qualquer pessoa, por motivo de deficiência, configura uma violação da dignidade e do valor inerentes ao ser humano, prescrevendo no Art. 5º a necessi- dade da coibição de qualquer tipo de discriminação8. Além disto, é reconhecido, no Art. 24, o direito à educação das pessoas com deficiência, assegurando um sistema educacional inclusivo em todos os níveis, ao longo de toda a vida9. Ressalte-se a obrigação da família, pois esta tem responsabilidades quanto à implementação do direito à educação de suas crianças e adolescentes. A Cons- tituição enfatizou no Art. 227, o dever geral da família, da sociedade e do Esta- do, prescrevendo ser dever destes entes sociais assegurar à criança e ao adoles- cente, com absoluta prioridade, o direito à educação, entre outros direitos10. Essa obrigação foi reforçada no Art. 22911, da Constituição que reafirma o dever dos pais de educar os seus filhos menores. O Estatuto da Criança e do Adolescente repete tal dever, ressaltando a obrigação dos pais ou responsáveis de matricular os seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino (Art. 22 e 5512), sob pena de perda ou suspensão do poder familiar, nos termos do Art. 24 do mencionado diploma13. Neste mesmo sentido, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96) afirma o dever dos pais ou responsáveis de efetuar a matrícula dos menores, a partir dos seis anos de idade, no ensino fundamental (Art. 6º). Assim, diante da normativa constitucional e legal, não cabe aos pais o direito de escolha no que se refere à matrícula de seus filhos com deficiência na rede regular de ensino. Ora, estamos a tratar de direito fundamental (no caso, o direito à educação) que, por sua própria natureza, possui como umas de suas características a irrenunciabilidade. Nesse sentido, José Afonso da Silva (1995, p. 176/177) ensina que: No qualitativo fundamental, acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que a todos, por igual, devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados. Do homem, não como o macho da espécie, mas no sentido de pessoa humana. Todavia, apesar da clareza da impossibilidade deste “direito de opção”, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 7.699/06, que institui o Estatuto da Pessoa com Deficiência e traz, no Art. 37, Parágrafo Único, disposi- ção ABSURDA E INACEITÁVEL que fere de morte toda e qualquer disposição sobre direitos humanos. Diz o artigo: Projeto de Lei nº 7.699/06 141 Art. 37 ... Parágrafo Único: Fica assegurado à família ou ao representante legal do aluno com deficiência o direito de opção pela freqüência às classes comuns da rede comum de ensino, assim como ao atendimento educacional especializado. A situação se torna ainda mais grave ainda pelo fato de que o Parecer da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, sobre o referido Pro- jeto de Lei, então em curso no Senado Federal, aprovado em 06.12.2006, no que se refere a este assunto, foi no seguinte sentido: [...] o parágrafo único do artigo 37 do Substitutivo não conflita com o princípio de autonomia da pessoa com deficiência, por estar aqui tratando da pessoa com deficiência, que devido às condições intelectuais, não pode manifestar sua preferência, tanto assim que, o próprio texto encerra que o direito de preferência assiste ao representante legal, indicando tratar-se de representante de pessoa absolutamente incapaz, segundo o Código Civil. Quanto à possibilidade de escolha entre classes comuns da rede de ensino bem como atendimento educacional especializado, pondero que a redação do artigo 208, III, da Constituição Federal, repetida nos artigos 4º, III e 58 da LDB, ao determinar que a educação será efetivada mediante a garantia de atendimento educacional especializado às pessoas com deficiência preferencialmente na rede regular de ensino, apresenta um permissivo implícito, na medida em que o constituinte, ao utilizar o advérbio preferencialmente, permite que o atendimento educacional especializado às pessoas com deficiência seja prestado de outra forma que não apenas na rede regular de ensino, do contrário, teria dito o legislador que este atendimento educacional especializado dar-se-ia exclusivamente nesta rede, o que não foi dito. Não se pode conferir ao texto constitucional mera interpretação gramatical, literal. É preciso avaliar o que está implícito nesta desta literalidade. Assim, o artigo 208, inciso III da Constituição Federal e a legislação infraconstitucional correlata devem ser analisadas sob uma interpretação sistemática, que leve em conta o preceito normativo como integrante do ordenamento jurídico como um todo. Desta forma, o termo “preferencialmente” vem aquém daquilo que a Constituição pretendia dizer. E se a norma constitucional não disse expressamente aquilo que queria dizer, é preciso ler nas entrelinhas aquilo que não está escrito, mas implícito.14 O Parecer aprovou o substitutivo do Projeto de Lei do Senado nº 6/06, anexado ao mencionado Projeto de Lei nº 7.699/06. Embora com algumas alte- rações, o texto manteve o conteúdo da perigosa permissividade legal, em clara violação a um direito fundamental. Agora é o parágrafo único do Art. 27 que diz: Projeto de Lei nº 7.699/06 Art. 27 142 Parágrafo único. Fica assegurado à família, ou ao responsável legal, o direito de opção pela escola que julgar mais adequada à educação da pessoa com deficiência. É inacreditável que, nos dias atuais, se tenha pensamento tão arcaico e preconceituoso quanto o proferido no Parecer acima transcrito. A leitura do referido texto acarreta profunda indignação, ainda mais pelo fato de ter sido o mesmo analisado e aprovado por membros do Congresso Nacional, especifica- mente pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa. O mencionado Parecer denota total desconhecimento da matéria, ao ig- norar que a deficiência mental é apenas uma das espécies do gênero deficiên- cia, pressupondo o Relator que todos aqueles que possuem deficiência têm o seu intelecto comprometido. Além disto, o texto vai de encontro a todas as premissas da filosofia inclusivista, na medida em que afirma que essas pessoas não podem manifestar a sua preferência no tocante à escola regular, em razão de sua incapacidade absoluta. Reflete, portanto, um pensamento preconceituoso ao confundir deficiência com incapacidade, como se esta fosse uma conseqüên- cia daquela, imaginando que aquela expressão traduz o antônimo de eficiência, quando na verdade o oposto desta última é a ineficiência. Como visto, a aprovação do dispositivo que admite a segregação da pes- soa com deficiência, por opção de seus pais ou representantes legais, baseia-se na redação do Art. 208, III, da Constituição. Este dispositivo afirma que a educa- ção será efetivada mediante a garantia de atendimento educacional especializa- do às pessoas com deficiência, preferencialmente, na rede regular de ensino. Supondo fazer uma interpretação sistemática, o Relator entendeu que o legisla- dor constituinte estabeleceu um permissivo implícito quando utilizou o advér- bio ‘preferencialmente’ permitindo, por conseqüência, a possibilidade de esco- lha entre as classes comuns da rede de ensino bem como o atendimento educa- cional especializado. Conclui que, do contrário, teria o legislador dito que este atendimento dar-se-ia “exclusivamente” nesta rede, o que não foi feito. Na interpretação sistemática realizada, esqueceu-se a Comissão de verifi- car o que prescreve a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LBD (Lei nº 9.394/96) sobre o significado de “atendimento educacional especializado”, confundindo os níveis de ensino com as suas modalidades. Quando a Constituição trata da educação, está a mesma a se referir à educa- ção escolar, responsável pelo desenvolvimento da base nacional comum prevista na Lei de Diretrizes e Bases da Educacional Nacional. Esta lei, em seu Art. 21, estabelece que a educação escolar compõe-se da Educação básica, formada por três etapas, quais sejam, educação infantil, ensino fundamental e ensino médio e, Educação Superior. Portanto, esta é a educação regular garantida como direito 143 fundamental pela Carta Magna, não se confundindo com o atendimento educaci- onal especializado mencionado no Art. 208, III da Constituição. O referido atendimento é prestado pela educação especial (Art. 58 a 60, da LDB) e visa à melhoria dos serviços educacionais colocados à disposição dos alunos. Esta é referida pelo Art. 58 da LDB como modalidade educacional15 e, portanto, não se confunde com os níveis da educação escolar. A conclusão é extraída da própria estrutura tópica e organizacional da mencionada Lei. No Título V são apresentados os Níveis e as Modalidades de Educação e Ensino, sendo a educação especial tratada em capítulo destacado da Educação Básica e Superior, não podendo a mesma expedir certificação equivalente aos níveis de ensino. Sendo a educação especial uma modalidade educacional, ela perpassa por todos os níveis escolares, desde a educação infantil até o ensino superior, não podendo por tal motivo, funcionar como um substitutivo da educação esco- lar. Aquela não funciona como um sistema paralelo de ensino com níveis e etapas próprias, podendo ser entendida como um instrumento, um comple- mento que deve estar sempre presente na Educação Básica e Superior para os alunos com deficiência que dela necessitarem (Ministério Público Federal, 2004). Desse modo, não é aceitável o ensino prestado unicamente em escolas especiais ou em classes especiais (ainda que nas escolas regulares), pois a edu- cação especial não é nível de escolarização e, portanto, não garante a educação regular de que trata a Constituição de 1988. Optando os pais ou responsáveis apenas pela educação especial (ou aten- dimento educacional especializado) não estarão garantindo o direito fundamen- tal à educação. Alie a isto o fato de que o titular do direito que aqui se pretende resguardar é a criança e o adolescente e não os seus pais, sendo estes meros representantes daqueles e, por conseqüência, estes últimos têm a obrigação de efetivar a realização do mencionado direito. Isto porque, sendo a educação um direito da criança e do adolescente, corresponde aos seus pais o dever de matriculá-los na rede regular de ensino, não podendo optar unicamente pelo atendimento educacional especializado. O Art. 208, III, da nossa Constituição apenas autoriza que o atendimento educacional especializado seja também oferecido fora da rede regular de ensi- no. Assim, é totalmente equivocado o entendimento de que tal dispositivo dispõe sobre a possibilidade de preferência da educação escolar das pessoas com deficiência na rede regular. Em conclusão, não há como existir em nosso ordenamento jurídico o Pa- rágrafo Único, do Art. 27, do Projeto de Lei nº 7.699/06 em curso no Congresso Nacional, padecendo de vício de inconstitucionalidade, por afronta ao Art. 6º e ao Art. 205 da Constituição e, mais grave ainda, por violação aos princípios da 144 dignidade da pessoa humana, da igualdade e da cidadania e, por ofensa aos Direitos Humanos. Deste modo, não cabe à família ou ao responsável legal a opção de matri- cular a criança ou adolescente com deficiência na escola regular. Trata-se de direito que se impõe, e a sua violação acarreta sanções de natureza civil (destitui- ção ou suspensão do poder familiar) e penal (crime de abandono intelectual16). A Constituição teve nítida preocupação com a observância do direito à educação, somente permitindo a admissão no trabalho a partir da idade de dezesseis anos, exceto na condição de aprendiz, o que pode ser dar a partir dos catorze anos17, para fins de garantir permanência na escola. No Art. 206, da nossa Constituição estão enunciados os princípios embasadores do direito à educação, quais sejam: igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar pensamento, a arte e o saber; pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; valorização dos pro- fissionais do ensino garantidos, na forma da lei, planos de carreira para o magis- tério público, com piso salarial proporcional e ingresso exclusivamente por con- curso público de provas e títulos; gestão democrática do ensino público, na forma da lei; e a garantia de padrão de qualidade. Edilsom Pereira de Farias (1996, p.113) ensina que o direito à educação é mais do que o direito de não ser excluído de uma escola; é, de fato, o interesse de conseguir uma vaga e as condições para estudar, ou seja, tempo livre, mate- rial escolar, etc.. Quanto mais restrito o acesso a uma educação de qualidade, mais reduzidas serão as condições necessárias ao alcance da plena cidadania. Em razão da importância deste direito, a Carta Magna prevê a possibilida- de de responsabilização civil e penal para as autoridades competentes, no caso do ensino obrigatório não ser oferecido, ou ainda, se for ele oferecido irregular- mente (Art. 208, § 1º)18. Entenda-se por oferta irregular aquela que somente garante a vaga ao aluno sem atentar para a garantia de qualidade do padrão de ensino, aos princípios estabelecidos (Art. 206) e para a especificação do dever estatal (Art. 208). Ressalte-se aqui que não somente a criança e o adolescente com deficiên- cia têm o direito à educação na rede regular de ensino, mas todos aqueles que se encontrem nesta condição, independentemente da sua idade. A Carta Magna assegura, em seu Art. 208, I, última parte, a oferta gratuita do ensino para todos aqueles que não tiveram acesso na idade própria. A LDB assegura este direito disciplinando, nos Arts. 37 e 38, a educação de Jovens e Adultos. 145 A Constituição tratou de garantir, por todas as formas, a implementação do direito à educação. O Art. 208, § 1º estabelece que o acesso ao ensino obrigatório (entenda-se ensino fundamental) e gratuito é direito público subje- tivo, não deixando dúvidas quanto à possibilidade de pleitear judicialmente a sua implementação através de prestações materiais por parte do Estado. Trata- se aqui do dever primeiro de um Estado, não sendo à toa que o Art. 6º, da Constituição inicia a enunciação dos direitos sociais pelo direito à educação. Somente através da educação, poderemos atingir o ápice de respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, pois, através dela, serão formadas pes- soas conscientes de seus direitos e de seu papel na sociedade. É preciso estimulá- las para desenvolver as suas potencialidades, já que a medida de auto-realização de cada indivíduo está ligada, indissoluvelmente, à educação que lhe é concedi- da. Faz-se necessário educar para a cidadania, convivendo com as diversidades e provocando a reflexão do comportamento humano, a fim de disseminar o com- bate ao preconceito e estimular a capacidade individual de cada um. 2. Atendimento Educacional Especializado Lei nº 7.853/89 Art. 2º Parágrafo único, I a) a inclusão, no sistema educacional, da Educação Especial como modalidade educativa que abranja a educação precoce, a pré-escolar, as de 1º e 2º graus, a supletiva, a habilitação e reabilitação profissionais, com currículos, etapas e exigências de diploma próprios; A Lei nº 7.853/89, em razão de ser anterior à atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (nº 9.394/96), traz denominações não mais utiliza- das pela norma vigente. A própria Constituição extinguiu a organização da edu- cação em graus, passando a dividi-la em educação básica (educação infantil, ensino fundamental e médio) e educação superior. Assim, a Lei nº 7.853/89 já nasceu desatualizada. A antiga educação precoce e pré-escolar corresponde à atual educação infantil. O antigo sistema chamava o ensino fundamental e médio de primeiro e segundo graus, respectivamente. Já a educação supletiva equivale à educação de jovens e adultos, enquanto que a habilitação e a reabilitação profissionais correspondem à educação profissional. Ressalte-se que a Lei em comento não fez alusão à educação superior. Todavia, tal omissão não implica na ausência de obrigatoriedade do oferecimento da educação especial nesta etapa escolar da vida do aluno. Analisando a legislação vigente, extrai-se tal conclusão da interpretação sistemática dos dispositivos 21 e 146 58, da LDB. Este último prescreve que a educação especial é modalidade de educação escolar19, sendo a composição desta estabelecida no Art. 21, qual seja: educação básica e superior. Alie a isto o fato de que, tratando-se de modalidade educacional, a educação especial perpassa por todos os níveis escolares, desde o ensino infantil até o superior, bem como por todas as modalidades de educação (educação de jovens e adultos e educação profissional). Na cartilha produzida pelo Ministério Público Federal com o apoio do Ministério da Educação sobre o acesso dos alunos com deficiência à rede regular de ensino, atenta-se para o fato de que, diferentemente da LDB, a Constituição não tratou da educação especial, mas sim do atendimento educacional especi- alizado, não podendo, portanto, as duas expressões serem utilizadas como sinô- nimos. Para o mencionado documento, o legislador constituinte pretendeu, jus- tamente, diferenciar o tipo de atendimento que vinha sendo prestado às pesso- as com deficiência antes de 1988. Justifica ainda a preferência pelo termo ‘atendimento educacional especi- alizado’ em razão de que, na Constituição anterior, os alunos com deficiência eram considerados titulares do direito à Educação Especial, sendo esta matéria tratada no âmbito da assistência social e não nos dispositivos referentes à Educação em geral. Assim, para não ser inconstitucional, a LDB ao usar o termo Educação Espe- cial deve fazê-lo permitindo uma nova interpretação, conforme os novos ditames constitucionais. Isto porque esta sempre foi vista como a modalidade de ensino que podia substituir os serviços educacionais comuns (2004, p. 10). Independentemente da expressão que se preferir, há que se ter em men- te que, atualmente, seja a educação especial ou o atendimento educacional especializado, não pode substituir a escolarização oferecida na classe comum da rede regular de ensino. Todavia, há realmente que se preferir a denominação trazida pela Constituição, pois a expressão ‘educação especial’ pode dar a idéia de que existe um sistema paralelo de ensino com níveis e etapas próprias. O atendimento educacional especializado diferencia-se substancialmente da escolarização. Deve ser oferecido em horário oposto a esta, justamente para que os alunos possam freqüentar as turmas de ensino regular. A Resolução nº 02/01, do Conselho Nacional de Educação, ao instituir as Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica, estabelece no Art. 1º que esta modalidade educativa é prestada aos alunos que apresentem necessidades educacionais especiais20. Esta terminologia é bastante abrangente, incluindo além dos alunos com deficiência, aqueles com altas habilidades, os que têm dificuldade de aprendizagem, enfim, todo e qualquer aluno que neces- site de um atendimento educacional especializado. Desta forma, nem todos os alunos com deficiência terão necessidades educacionais especiais. 147 No tocante à identificação dos alunos com necessidades educacionais es- peciais, a referida Resolução do Conselho Nacional de Educação, estabelece o seguinte: Art. 5º: Consideram-se educandos com necessidades educacionais especiais os que, durante o processo educacional, apresentarem: I – dificuldades de aprendizagem ou limitação no processo de desenvolvimento que dificultem o acompanhamento das atividades curriculares, compreendidas em dois grupos: a) aquelas não vinculadas a uma causa orgânica específica; b) aquelas relacionadas a condições, disfunções, limitações ou deficiências; II – dificuldades de comunicação e sinalização diferenciadas dos demais alunos, demandando a utilização de linguagens e códigos aplicáveis; III - altas habilidades/superdotação, grande facilidade de aprendizagem que os leve a dominar rapidamente conceitos, procedimentos e atitudes. Art. 6º: Para a identificação das necessidades educacionais especiais dos alunos e a tomada de decisões quanto ao atendimento necessário, a escola deve realizar, com assessoramento técnico, avaliação do aluno no processo de ensino e aprendizagem, contando, para tal, com: I - a experiência de seu corpo docente, seus diretores, coordenadores, orientadores e supervisores educacionais; II - o setor responsável pela educação especial do respectivo sistema; III - a colaboração da família e a cooperação dos serviços de Saúde, Assistência Social, Trabalho, Justiça e Esporte, bem como do Ministério Público, quando necessário. Rosita Carvalho (2000, p. 79) define a educação especial como o conjun- to de recursos e serviços educativos utilizados para contribuir com o processo de aprendizagem de alunos que, por inúmeras causas endógenas ou exógenas, temporárias ou permanentes, apresentam necessidades educativas especiais. Sob esse enfoque, conclui não se tratar de um subsistema, mas sim da melhoria da qualidade das respostas educativas que a escola pode oferecer. Conforme o Parecer nº 17/01, proferido pelo Conselho Nacional de Edu- cação, por meio da Comissão de Educação Básica, referente à educação especi- al, todos os alunos, em determinado momento de sua vida escolar, podem apresentar necessidades educacionais, e seus professores, em geral, conhecem diferentes estratégias para oferecer respostas a elas. No entanto, existem ne- cessidades educacionais que requerem da escola uma série de recursos e apoi- os de caráter mais especializado, que proporcionem aos alunos meios para o acesso ao currículo. Essas são as chamadas necessidades educacionais especiais. Trata-se de um conceito amplo, pois, ao invés de focar a deficiência da pessoa, 148 enfatiza o ensino e a escola, bem como as formas e as condições de aprendiza- gem (Griboski, 2004, p. 330). Conforme entendimento proferido na cartilha produzida pelo Ministério Público Federal com o apoio do MEC (2004, p. 8), o atendimento educacional especializado pode ser entendido como a utilização dos instrumentos necessá- rios à eliminação das barreiras que as pessoas com deficiência têm para relacio- nar-se com o ambiente externo. Por exemplo: ensino da Língua brasileira de sinais (LIBRAS), do código Braille, uso de recursos de informática e outras ferra- mentas tecnológicas, além de linguagens que precisam estar disponíveis nas escolas comuns para que elas possam atender com qualidade aos alunos com e sem deficiência. O mencionado atendimento não pode ser entendido como aula de refor- ço. O seu objetivo não é repassar o conteúdo ministrado na classe regular, mas sim possibilitar ao aluno com necessidade educacional especial o acesso pleno ao conhecimento, oferecendo os instrumentos necessários desenvolva todas as suas potencialidades, seja no ambiente escolar, seja na vida diária. Não é objetivo do atendimento educacional especializado oferecer uma educação à parte para os alunos com deficiência. Estes terão acesso a todas as aulas ministradas ao restante da turma. Portanto, é primordial que este atendi- mento seja prestado em horário diverso das aulas na classe regular, funcionando o mesmo como um complemento da escolarização. Em conformidade com os atuais ditames constitucionais, é o processo de aprendizagem que deve ser adaptado às necessidades dos alunos e não os alunos serem obrigados a se adaptar ao que se pensa, preconceituosamente, a respeito de sua aprendizagem (Carvalho, 2000, p. 58). Para tanto, é interessan- te que se rejeite a designação pejorativa “aluno especial”, como se todos os alunos não tivessem relevância para o sistema educacional. Mittler (2003, p. 32) questiona se a linguagem que usamos serve aos nossos objetivos ou se os enfraquece. Essas crianças são consideradas “especi- ais” apenas porque o sistema educacional até então não foi capaz de responder às suas necessidades. O desafio da inclusão é que, ela objetiva a reestruturação do sistema para que este possa responder a uma gama inteira de necessidades especiais. Logo, devemos encontrar palavras que impeçam a rotulação dos alu- nos, ao mesmo tempo em que enfatizem os desafios do sistema. Carvalho (2000, p. 78/79) dispõe que, talvez a educação especial possa ser reconceitualizada, deixando de ser entendida como a educação que se diri- ge a um determinado grupo de alunos, chamados de especiais, apenas por suas características ou déficits pessoais. 149 Como serviço de apoio, o atendimento educacional especializado abrange: a) currículos, métodos, técnicas, recursos educativos e organização específicos para atender as suas necessidades; b) terminalidade específica para aqueles que não puderem atingir o nível exigido para a conclusão do ensino fundamental, em virtude de suas deficiências, e aceleração para concluir em menor tempo o programa escolar para os superdotados; c) professores com especialização adequada em nível médio ou superior, para atendimento especializado, bem como professores do ensino regular capacitados para a integração desses educandos nas classes comuns; d) educação especial para o trabalho, visando a sua efetiva integração na vida em sociedade; e) acesso igualitário aos benefícios dos programas sociais suplementares disponíveis para o respectivo nível do ensino regular (Art. 59 da LDB). Percebe-se, portanto, que a educação inclusiva não se satisfaz com a sim- ples matrícula dos alunos com deficiência nas escolas regulares. Há que se proporcionar as condições para o sucesso escolar de todos os alunos, favorecen- do o acesso total ao conhecimento. Para que a educação seja exitosa, é preciso que o processo de aprendiza- gem leve em consideração as diferenças individuais existentes entre os alunos. Desta forma, estes devem ser avaliados conforme as suas necessidades específi- cas e não mediante padrões rigidamente predeterminados. No atual sistema, im- porta muito mais os fracassos do que os avanços de cada um. É necessária a revisão do sistema de avaliações e o rompimento com o sistema tradicional de repetência, fazendo-se a avaliação do aluno através de um relatório de progresso. A inclusão não implica no desenvolvimento de um ensino individualizado para os alunos que apresentam déficits intelectuais, problemas de aprendiza- gem e outros relacionados ao desempenho escolar. Na visão inclusiva, não se segregam os atendimentos escolares, seja dentro ou fora das salas de aula e, portanto, nenhum aluno é encaminhado a salas de reforço ou aprende a partir de currículos adaptados. É uma ilusão pensar que o professor consegue predeterminar a extensão e a profundidade dos conteúdos a serem construídos pelos alunos, assim como facilitar as atividades para alguns, porque, de antemão já prevê a dificuldade que possam encontrar para realizá-las. Na verdade é o aluno que se adapta ao novo conhecimento e só ele é capaz de regular o seu processo de construção intelectual (Ministério Público Federal : 2004, p. 34). Reveste de imprescindibilidade a quebra das barreiras arquitetônicas den- tro da escola (e não somente na sua entrada), a disponibilização de intérprete e de professor de língua de sinais, material didático em Braille, ensino do código Braille, entre outras medidas. É importante que todos os alunos, mesmo aqueles 150 que não possuem deficiências, se beneficiem desse conhecimento do aprendi- zado em língua de sinais e escrita e leitura no método braile, a fim de facilitar a comunicação entre todos, contribuindo para a construção da cidadania. Com o já dito, o atendimento especializado não pode funcionar como um substitutivo do ensino regular, devendo aquele ser oferecido em caráter com- plementar, em horário diverso do horário das aulas. Deve o mesmo funcionar como algo a mais a ser oferecido, não podendo se admitir que as classes e as escolas especiais funcionem como um repositório do insucesso escolar. Registre-se aqui que o Art. 58, § 2º da LDB, ao tratar da educação especial, estabelece que o atendimento educacional será prestado em classes, escolas ou serviços especializados, sempre que, em função das condições específicas dos alunos, não for possível a sua integração nas classes comuns do ensino regular. Todavia, isto não significa que ao aluno “que não conseguiu se integrar” será oferecido unicamente o atendimento educacional especializado. Primeiramen- te porque este é apenas um suporte, um apoio, um complemento e não a própria escolarização, significando esta possibilidade na negação do acesso ao direito à educação. O sentido do dispositivo acima transcrito é o de que para aqueles alunos que, em razão de suas condições específicas, tiverem dificuldades de acesso aos ensinamentos prestados em sala de aula, será oferecido, em caráter complementar, um atendimento especializado para fins de facilitar o processo de aprendizagem. Não há uma autorização da LDB para que a escolarização seja oferecida em ambiente escolar segregado, pois o objetivo do atendimento educacional especializado é remover as barreiras que impedem a freqüência desses alunos às classes comuns do Ensino Regular. Esse trabalho é constituído por um con- junto de recursos educacionais e de estratégias de apoio colocados à disposição dos alunos com deficiência, proporcionando-lhes diferentes alternativas de aten- dimento, reconhecendo as particularidades de cada aluno. São consideradas matérias do atendimento educacional especializado: Lín- gua brasileira de sinais (LIBRAS); interpretação de LIBRAS; ensino de Língua Portuguesa para surdos; Sistema Braille; orientação e mobilidade; utilização do soroban; as ajudas técnicas, incluindo informática adaptada; mobilidade e comu- nicação alternativa/aumentativa; tecnologias assistivas; informática educativa; educação física adaptada; enriquecimento e aprofundamento do repertório de conhecimentos; atividades da vida autônoma e social, entre outras (Ministério Público Federal : 2004, p. 11). Todavia, antes de tudo, é preciso rever comportamentos e atitudes para que se esteja apto ao processo educacional inclusivo. Este exige ruptura de 151 paradigmas, quebra de barreiras. Se não houver uma mudança de postura na forma de receber e enxergar o aluno com deficiência, a inclusão não se reali- zará. 3. Escolas Especiais: Definição e Objetivos Lei nº 7.853/89 Art. 2º Parágrafo único, I b) a inserção, no referido sistema educacional, das escolas especiais, privadas e públicas; A denominação de “escola especial” tem relação com a expressão “edu- cação especial”. Assim, a escola é definida como “especial” em razão do serviço nela prestado, qual seja, o oferecimento do atendimento educacional especi- alizado, nos moldes atuais. Isto significa dizer que, apesar de definida como escola, a matrícula do aluno na escola especial não dispensa a freqüência è rede regular de ensino. Não é admissível a matrícula de aluno com deficiência, em idade de seis a 14 anos (período do ensino fundamental obrigatório), unicamente na escola espe- cial como substituição à escola regular, pois o papel da primeira é de complementação à escolarização para o aluno que necessitar de atendimento educacional especializado. Essa deve ser a única finalidade das escolas especiais: fornecer o atendi- mento educacional especializado como apoio complementar à escolarização. Não se pode mais aceitar a prática de encaminhar o aluno que não “consegue aprender” juntamente com o restante da turma para uma escola especial a fim de que esta se encarregue do papel do ensino regular. Ressalte-se que a autorização para que o atendimento educacional espe- cializado seja prestado também fora da escola regular está contido no Art. 208, III da Constituição Federal. Todavia, resta claro que o intuito do legislador cons- titucional foi no sentido da excepcionalidade desta situação. As escolas especiais públicas e privadas estão inseridas no sistema educa- cional como prestadoras do atendimento educacional especializado, tendo por finalidade complementar a escolarização, prestando o apoio necessário ao pro- cesso escolar desenvolvido na escola regular, sendo vedada a possibilidade de matrícula unicamente neste estabelecimento em substituição à escola regular. A escola é denominada regular quando reconhecida pelos órgãos oficiais de educação como apta ao oferecimento da educação básica. Isto não significa dizer, todavia, que as escolas especiais, sejam elas públicas ou privadas, não pre- 152 cisem ser autorizadas pelos órgãos oficiais de Educação. A Resolução 02/01, do CNE/CEB estabelece, no § 1º do Art. 10, que as escolas especiais devem cumprir as exigências legais similares às de qualquer escola quanto ao seu processo de credenciamento e autorização de funcionamento de cursos e posterior reconheci- mento. Desta forma, precisam estas escolas ser reconhecidas pelos referidos ór- gãos como aptas ao oferecimento do atendimento educacional especializado. É importante reafirmar que a escola especial não pode funcionar como reforço escolar, pois a escolaridade dos alunos com deficiência compete à escola regular. Como ressaltado na cartilha elaborada pelo Ministério Público Federal, o papel da instituição é o de oferecer o que não é próprio dos currículos da base nacional comum (2004, p. 16), devendo ser prestado o serviço de apoio especi- alizado. Este consiste no ensino da LIBRAS (língua brasileira de sinais), do sistema Braille, na adoção de quaisquer outras técnicas e recursos especiais de ensino e aprendizagem que facilitem o acesso da pessoa com deficiência ao ensino em geral, além de preparar a pessoa com deficiência para a vida autônoma e social trazendo conteúdos sobre orientação e mobilidade, ajudas técnicas, mobilidade e comunicação, tecnologias assistivas, enriquecimento e aprofundamento do reper- tório de conhecimentos, entre outras que se fizerem necessárias. Ao iniciar o atendimento de um aluno com deficiência, devem-se avaliar quais as suas necessidades educacionais especiais para que se possa definir o atendimento necessário. No Parecer nº 17/01 sobre educação especial, o Conselho Nacional de Edu- cação, através da Comissão de Educação Básica, declara que a referida avaliação pedagógica objetiva a identificação das barreiras que estejam impedindo ou difi- cultando o processo educativo. Acrescenta ainda que deve ser enfatizado o de- senvolvimento e a aprendizagem do aluno, bem como a melhoria da instituição escolar, consistindo esta avaliação em um processo permanente. Para tanto, deve ser formada uma equipe, no âmbito da própria escola, integrada pelos profissio- nais que acompanhem o aluno. Prevê ainda que, sendo os recursos escolares insuficientes para a compreensão das necessidades educacionais dos alunos e para a identificação dos apoios necessários, a escola pode recorrer a uma equipe multiprofissional. Conclui que é a partir desta avaliação que se legitima a criação dos serviços de apoio pedagógico especializado para o atendimento das necessi- dades educacionais especiais dos alunos (Griboski, 2004, p. 331). A finalidade desta modalidade educativa somente será atingida se presta- da como complementação à escolarização, pois se parte da premissa da exis- tência de barreiras que estejam impedindo ou dificultando o processo educativo desenvolvido na escola regular. Por isto é que se afirma que nem todo aluno com deficiência será público alvo do atendimento educacional especializado, 153 pois se o mesmo estiver tendo pleno acesso ao conhecimento ministrado em sala de aula, este atendimento não se fará necessário. Visando a efetiva inclusão social, a LDB garante a educação especial para o trabalho21 (Art. 59, IV). Neste propósito, prevê a Resolução 02/01, do CNE/ CEB, no Art. 17, § 1º, que as escolas de educação profissional podem realizar parcerias com escolas especiais, públicas ou privadas, tanto para construir com- petências necessárias à inclusão de alunos em seus cursos quanto para prestar assistência técnica e convalidar cursos profissionalizantes realizados por essas escolas especiais. Apesar de muitas escolas especiais serem denominadas de entidades fi- lantrópicas, tem as mesmas a função de promoção da inclusão das pessoas com deficiência. Em razão disto, não basta ter “carinho e amor” no atendimento por elas desenvolvido para que se alcance os objetivos do atendimento educacional especializado. Trata-se de um trabalho muito mais sério e que vai muito além da boa vontade. A escola especial ciente do seu papel, tem a responsabilidade de providen- ciar a matrícula do aluno nela atendido na escola regular. Tendo conhecimento da recusa ou de qualquer obstáculo oferecido por qualquer estabelecimento de en- sino para o acesso do aluno com deficiência, o fato deve ser comunicado imedi- atamente ao Ministério Público, sob pena de responsabilidade por omissão. Não se pode permitir que as escolas especiais se omitam e silenciem quando as pessoas nela atendidas não estiverem tendo acesso à escola regular. Tal situação é motivo mais do que justificado para o descredenciamento da instituição, desautorizando-a da prestação do atendimento educacional especi- alizado, em razão do descumprimento das exigências legais. Ora, a manutenção dos alunos com deficiência unicamente nas escolas especiais é prática segregatória e atentatória de seus direitos fundamentais. Muitas vezes, esta opção aparece sob um falso manto de proteção que só serve para dificultar o processo de desenvolvimento pessoal de cada aluno. É impor- tante e benéfica, para as crianças com deficiência, a convivência com a diversi- dade humana, pois influencia a superação de seus limites individuais. 4. O Atendimento Educacional Especializado na Escola Regular Lei nº 7.853/89 Art. 2º Parágrafo único, I c) a oferta obrigatória e gratuita, da Educação Especial em estabelecimento público de ensino; 154 A Constituição (Art. 208, III), apesar de permitir que o atendimento educa- cional especializado seja oferecido fora da escola regular, deixa claro que a prefe- rência é que ele seja prestado no estabelecimento de ensino que o aluno está matriculado. Como já explicitado anteriormente, a oferta desta modalidade educacio- nal deve se dar em todos os níveis de ensino, prescrevendo o § 3º, do Art. 58, da LDB o seu início na faixa etária de zero a seis anos. Para a satisfação do dever constitucional de prestação do atendimento educacional especializado, o Art. 3º, Parágrafo Único da Resolução nº 02/01 CNE/CEB estabelece que as redes de ensino pública e privada devem constituir e fazer funcionar um setor responsável pela educação especial, dotado de re- cursos humanos, materiais e financeiros que viabilizem e dêem sustentação ao processo de construção da educação inclusiva. É o que se extrai do documento publicado pelo Ministério da Educação e intitulado de “Ensaios Pedagógicos”, em artigo de autoria de Denise de Oliveira Alves e Marlene de Oliveira Gotti (2006, p. 77): Os sistemas de ensino deverão organizar os espaços, recursos e serviços que compõe o atendimento educacional especializado. Este deve ser realizado, preferencialmente, em salas de recursos multifuncionais da própria escola de ensino regular onde o aluno esteja matriculado (...). Cabe às Secretarias de Educação avaliarem as demandas oriundas das escolas de sua rede no que se refere à organização e autorização de abertura de salas de recursos para a realização do atendimento educacional especializado. O Conselho Nacional de Educação, por meio da Comissão de Educação Básica, no Parecer nº 17/01 sobre educação especial, definiu o serviço de apoio pedagógico especializado como sendo o conjunto de serviços educacionais di- versificados, oferecidos pela escola comum, para responder às necessidades educacionais especiais do educando. Acrescenta ainda que eles possam ser desenvolvidos: a) nas classes comuns, mediante: a atuação de professor de educação especial, de professores intérpretes das linguagens e códigos aplicá- veis, bem como de outros profissionais; itinerância intra e interinstitucional, con- sistente na orientação e supervisão por professores especializados, através de visitas periódicas às escolas; e outros apoios necessários à aprendizagem, à locomoção e à comunicação; b) em salas de recursos, nas quais o professor da educação especial realiza a complementação e/ou suplementação curricular, utilizando equipamentos e materiais específicos (2004, p. 336). Para o sucesso escolar de todos os alunos, é imprescindível que a inserção dos alunos com deficiência nas classes comuns seja realizada de maneira 155 distributiva, pelas várias classes do ano escolar em que forem classificados, a fim de favorecer a convivência com a diversidade e a real inclusão. Por vezes, em razão da necessidade de atenção individualizada do aluno, faz-se necessário que o atendimento educacional seja complementado com serviços especializados nas áreas de saúde, assistência social e trabalho. A escola deve assegurar a todos os alunos as condições para o pleno acesso ao conhecimento, devendo ser respeitadas as limitações individuais. Desta forma, estes alunos devem ser avaliados conforme as suas necessidades especí- ficas e não mediante padrões rigidamente predeterminados. Há de ser romper com o sistema tradicional de repetência, pois o proces- so de avaliação do desempenho dos alunos com exigência de nota mínima, não atenta para as diferenças existentes na sala de aula. A repetência constante do aluno que não consegue apreender certos conteúdos, viola a garantia constitu- cional de acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um22 (Art. 208, V). Em sua cartilha sobre educação inclusiva, o Ministério Público Federal ad- verte que estes mencionados alunos, mesmo não conseguindo aprender todos os conteúdos escolares, há que se garantir a eles o direito à convivência na escola, entendida como espaço privilegiado da formação global das novas gera- ções. Uma pessoa, com severas limitações, precisa inquestionavelmente dessa convivência. Além disso, os conteúdos escolares que esse aluno não conseguir aprender numa escola que lhe proporcione um ambiente desafiador e que adote as práticas de ensino adequadas à heterogeneidade das salas de aula, provavelmente não serão aprendidos em um ambiente segregado de ensino (2004, p. 22). Levando em consideração as diferenças de cada aluno, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional garante a terminalidade específica daqueles alu- nos que não puderem atingir o nível exigido para a conclusão do ensino funda- mental, em virtude de suas deficiências, e aceleração para concluir em menor tempo o programa escolar para os alunos superdotados ou com altas habilida- des (Art. 59, II). A terminalidade específica implica na certificação de conclusão da escolaridade, habilitando o aluno para o ingresso no ensino médio ou na educação profissional. Todavia, a sua concessão deve ser fundamentada em avaliação pedagógica. Assim, não é justificativa para a opção apenas pelo atendimento educaci- onal especializado o fato de o aluno possuir severas limitações, pois a própria legislação prevê alternativas para esta situação. Além desta mencionada “op- ção” ser vedada pelo ordenamento jurídico brasileiro, ela prejudica tanto as crianças com deficiência como também aquelas que não as possui, pois o 156 favorecimento da convivência plural beneficia a todos, tanto no aspecto huma- no como no aspecto pedagógico. É sem dúvida, a heterogeneidade que dinamiza os grupos, dando-lhes vigor, funcionalidade e garantindo o sucesso escolar. Precisamos nos conscientizar de que as turmas escolares são e sempre serão desiguais, queiramos ou não. A aprendizagem como o centro das atividades escolares e o sucesso dos alunos como a meta da escola, independentemente do nível de desempenho a que cada um seja capaz de chegar são condições básicas para se caminhar na dire- ção de escolas acolhedoras. O sentido desse acolhimento não é a aceitação passiva das possibilidades de cada aluno, mas o de sermos receptivos aos níveis diferentes de desenvolvimento das crianças e dos jovens. Afinal, as escolas existem para formar as novas gerações e não apenas alguns de seus futuros membros, os mais privilegiados (Ministério Público Federal, p. 34). 5. O oferecimento da Educação Especial para alunos em tratamento de saúde Lei nº 7.853/89 Art. 2º Parágrafo único, I d) o oferecimento obrigatório de programas de educação especial a nível pré-escolar, em unidades hospitalares e congêneres nas quais estejam internados, por prazo igual ou superior a 1 (um) ano, educandos portadores de deficiência; A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional prescreve que o atendi- mento educacional especializado será feito em classes, escolas, ou serviços especializados, sempre que, em função das condições específicas dos alunos, não for possível a sua integração nas classes comuns de ensino regular (Art. 58, § 2º). Assim, o dispositivo acima transcrito autoriza que o atendimento educaci- onal especializado seja prestado fora do espaço escolar, em decorrência da situação vivenciada pelo aluno. Ressalte-se que, diante da atual normativa, não subsiste a restrição imposta pelo dispositivo em comento, no tocante à prestação do atendimento educacio- nal especializado em hospitais apenas na etapa da educação infantil, haja vista que este é modalidade educativa que se aplica em todos os níveis de ensino. A Resolução nº 02/01, do CNE/CEB dispõe que os sistemas de ensino devem organizar o atendimento educacional especializado aos alunos impossi- bilitados de freqüentar as aulas, em razão de tratamento de saúde que implique internação hospitalar, atendimento ambulatorial ou permanência prolongada em domicílio (Art. 13). 157 Ressalte-se que a LDB, em conformidade com o imperativo constitucio- nal de garantia da educação a todos os alunos, não exigiu lapso temporal para que o direito ao atendimento educacional especializado possa ser exercido, tendo em vista o grave prejuízo acarretado ao aluno com a interrupção da educação. Desta forma, o critério de internação por prazo igual ou superior a 1 (um) ano estabelecido pelo dispositivo em comento não foi recepcionado pela Constituição. O atendimento aqui analisado tem por objetivo a continuidade do proces- so de desenvolvimento e aprendizagem dos alunos matriculados na educação regular, contribuindo para o seu retorno e reintegração ao grupo escolar. Toda- via, não há empecilhos para que o mesmo seja prestado também a pessoas não matriculadas no sistema educacional, facilitando o seu posterior acesso à escola regular. A importância deste atendimento especializado nos hospitais reside no fato de que a mesma proteger o desenvolvimento do aluno, assegurando a sua reinserção escolar após a desinternação, garantindo a preservação do direito das crianças e adolescentes hospitalizados à educação. Além disto, este atendimento previne o fracasso escolar daqueles que se afastam da escola por motivos de saúde. A hospitalização não implica, necessariamente, em qualquer limitação ao aprendizado escolar. O atendimento educacional especializado, nestas situações, além de dar continuidade ao processo de aprendizagem, influirá diretamente, no desenvolvimento pessoal do aluno, podendo servir como fator de melhora do estado de saúde, reduzindo o tempo de internação. Assim, esta modalidade de ensino traz importantes ganhos tanto para a educação quanto para a saúde. Este atendimento educacional especializado ratifica a condição de cida- dão do aluno, pois mesmo estando hospitalizado, continua ele como titular de todos os seus direitos fundamentais. É a afirmação da proteção integral conferida à criança e ao adolescente, onde lhes são assegurados todas as oportunidades e facilidades, a fim de facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade (Art. 3º, do Estatuto da Criança e do Adolescente). O dispositivo traduz-se na verdadeira expressão “educação para todos”, onde ninguém pode ser excluído do sistema educacional, independentemente de quaisquer condições temporárias ou contínuas que apresente. Todavia, não se trata aqui de entretenimento ou de aproveitamento do tempo do aluno hospitalizada, mas sim de verdadeira promoção do processo de aprendizagem. Todavia, a atuação do educador deve tanto atender às necessi- dades educativas da criança, quanto respeitar seu ritmo pessoal e estado clínico. 158 6. Igualdade de tratamento entre todos os alunos Lei nº 7.853/89 Art. 2º Parágrafo único, I e) o acesso de alunos portadores de deficiência aos benefícios conferidos aos demais educandos, inclusive material escolar, merenda escolar e bolsas de estudo; O dispositivo em análise traduz uma decorrência do princípio da igualdade, na medida em que assegura aos alunos com deficiência os mesmos benefícios conferidos aos demais educandos. A Constituição garante o atendimento ao edu- cando, no ensino fundamental, através de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde (Art. 208, VII). Ao preconizar tal garantia, pretendeu o legislador assegurar reais condi- ções de aprendizado. Há que se considerar que uma grande parte dos alunos do nosso sistema público educacional mora em comunidades rurais distantes, de difícil acesso. Nestas situações, a ausência de oferta do transporte escolar inviabiliza a efetivação da educação. Tratando-se de alunos com deficiência, há que se garantir o transporte escolar acessível àqueles que possuem deficiência física ou mobilidade reduzida, em obediência à Lei nº 10.098/00 e ao Decreto nº 5.926/04, que dispõem sobre os critérios básicos para a promoção da acessi- bilidade. Assim, a oferta de transporte inacessível viola o direito fundamental à educação de aluno com deficiência física. Com relação ao material escolar, é direito do aluno com deficiência visual a sua disponibilização em método Braille. A desatenção a este preceito implica na inviabilização do acesso ao conhecimento, traduzindo-se em negação do direito fundamental à educação. Ressalte-se que esta obrigação de oferta de material acessível não se aplica apenas aos livros, se estendendo a todo e qual- quer material trabalhado no âmbito escolar. Deste modo, tratando-se de aula passada em vídeo, há que se permitir o acesso às informações aos alunos com deficiência visual, mediante a disponibilização de aparelhos de televisão equi- pados com os recursos tecnológicos que permitam sua utilização por esses alunos e, aos alunos com deficiência auditiva, através de intérprete de LIBRAS. Considerando a realidade de nosso país, a oferta da merenda escolar re- veste-se de extrema importância, pois, muitas vezes, estamos tratando de cri- anças e adolescentes que não têm com o que se alimentar, convertendo-se tal direito em um grande incentivo para a freqüência às aulas. Há que se ressaltar que, no caso de crianças com diabetes ou outras situações em que se faça 159 necessária a observância de uma dieta específica, é direito do aluno a atenção às suas necessidades alimentares. No que se refere à assistência à saúde, deve ser estabelecida uma articula- ção entre o sistema público de educação e o de saúde para fins de preservação dos direitos fundamentais dos alunos. Tratando-se de aluno com deficiência, esta necessidade se faz mais premente em razão das suas limitações. No caso de aluno com doença mental que não está tendo a devida assistência, deve o mesmo ser encaminhado para o tratamento médico especializado, sob pena de comprome- timento do seu processo de aprendizagem. A escola, ao detectar que a criança apresenta problemas oftalmológicos, auditivos ou qualquer outro, há de requisitar a prestação do serviço de saúde ao educando que dela estiver necessitando. Havendo a necessidade de o aluno ser assistido pelo sistema de saúde, não acarreta a interrupção das aulas, exceto se houver indicação médica para tanto (no caso, será prestado o atendimento educacional especializado no hos- pital ou em seu domicílio). A referida assistência pode ser prestada também através da transmissão de conhecimentos sobre higiene, alimentação equilibra- da, educação sexual, entre outros assuntos, seja pelos próprios professores ou por profissionais da área respectiva. Desta forma, a escola pode ser utilizada também como espaço de promoção da saúde. Considerando que o aluno com deficiência é parte integrante do sistema educacional, a ele também se aplica todo e qualquer benefício concedido aos educandos em geral. No caso de oferta de bolsas de estudos, fardamento esco- lar, oferecimento de modalidades esportivas, entre outros, o acesso do aluno com deficiência deve ser pleno, sob pena de configuração de situação discriminatória. 6. Integração versus Inclusão Lei nº 7.853/89 Art. 2º Parágrafo único, I f) a matrícula compulsória em cursos regulares de estabelecimentos públicos e particulares de pessoas portadoras de deficiência capazes de se integrarem no sistema regular de ensino. Como explicitado no início aos comentários deste dispositivo, não há op- ção por parte dos pais ou responsáveis em matricular as crianças e adolescentes na rede regular de ensino, mas sim uma obrigação (em decorrência do previsto nos dispositivos 227 e 229, da Constituição; Art. 22 e do Estatuto da Criança e do Adolescente; Art. 6º da LDB; Art. 246 do CP), sob pena de configuração do 160 crime de abandono intelectual (encontrando-se o mesmo no período do ensino fundamental obrigatório), além da sanção civil de destituição do poder familiar. Apesar de a lei em comento ter sido publicada após o advento da Consti- tuição de 1988, a última parte deste inciso em análise, diverge totalmente dos princípios e prescrições do atual regime constitucional. Este estabelece que a educação é um direito de todas as pessoas, sendo a mesma condição necessária para a promoção da cidadania e garantia de sua dignidade. A prescrição na Lei nº 7.853/89 do direito de acesso ao ensino regular às pessoas com deficiência, desde que capazes de se adaptar ao sistema regular de ensino, reflete um resquício do movimento da integração escolar. Diferentemente da inclusão, no processo de integração, não se favorece a todas as pessoas, mas somente àquelas que possuírem condições pessoais de se integrar. Para os que não se enquadrarem nesta situação, lhes restará o aten- dimento segregado em instituições especializadas de acordo com cada tipo de deficiência. Vale salientar que, no âmbito da integração escolar, o aluno que conseguia se adaptar para freqüentar uma escola regular não era incluído no sistema educa- cional. Concedia-se a ele apenas a oportunidade de estar fisicamente na escola, não significando dizer que estava incluído. Por vezes, tal aluno estudava em salas especiais, o que implica em segregação, só que agora dentro da escola regular. É importante registrar que nenhuma das formas de integração satisfaz ple- namente, pois ela não exige mudanças por parte do estabelecimento de ensino, cabendo à pessoa com deficiência, exclusivamente, o esforço para se integrar. No Brasil o movimento de integração esteve bastante forte nas décadas de 1970 e 1980, daí a existência de normas dessa época reconhecendo direitos, mas de forma condicionada: “sempre que possível,” “desde que capazes de se adaptar”, e assim por diante. Todavia, quem dirá se é possível a inclusão ou quem é capaz de se adap- tar? A Constituição, quando prescreve o direito à educação, não confere a nin- guém este tamanho poder de escolher quem dela poderá desfrutar. Constitui- se em direito de todas as pessoas. Não se pode conceber um critério subjetivo de escolha dos alunos onde, no período de matrícula, será feita uma triagem: esse tem condições, esse não tem... Diferentemente na inclusão, a escola tem que se modificar para incluir a pessoa com deficiência, pois é aquela quem precisa ser capaz de atender às necessidades de todos os alunos e não o contrário. Portanto, a integração é a contraposição do atual movimento de inclusão. Nesta, o esforço é bilateral, mas é principalmente a escola quem deve impedir que a exclusão ocorra. 161 Apesar das diferenças, integração e a inclusão possuem o mesmo obje- tivo: a inserção da pessoa com deficiência na sociedade. Todavia, a inclusão é total e incondicional, significando, antes de tudo, deixar de excluir. Já a integração é parcial e condicionada às possibilidades de cada pessoa. Na esco- la que pratica a integração, será integrado aquele aluno que tiver condições de freqüentar e acompanhar a sala de aula. Já na escola inclusiva, esta terá que encontrar as respostas educativas às necessidades específicas de cada aluno, quaisquer que sejam elas. Na integração se dá oportunidade, na inclusão se reconhece o direito. Conforme ensina Sassaki (1999, p. 17), a inclusão se inspira sob novos princípios, quais sejam: celebração de diferenças, direito de pertencer, valoriza- ção da diversidade humana, solidariedade humanitária, igual importância das minorias e cidadania com qualidade de vida. É preciso transformar a visão assistencialista da sociedade em uma questão de direitos humanos. A inclusão não é uma questão fácil de se refletir. Ou se aceita ou não se aceita. Ou se adere totalmente aos seus princípios, ou simplesmente não se fala de inclusão. Não há meia inclusão. O mais polêmico, nesta teoria, é, com certe- za, o fato de ser ela incondicional. Sassaki (1999, p. 19) preceitua que um dos seus princípios é a rejeição zero, também conhecida como exclusão zero. Trata-se de um movimento internacional e irreversível. Este teve os seus contornos definidos, pela primeira vez, na Assembléia das Nações Unidas, em 1990, por meio da Resolução 45/91 que define uma sociedade para todos. É preciso lembrar que, quando se fala em inclusão, não somente está a se referir às pessoas com deficiência, mas a todas as minorias (negros, homossexuais, ciganos, índios, entre outros). Conforme Werneck (2000b, p. 21), a inclusão não é uma forma generosa de se resolver os problemas das pessoas com deficiência. Ela se faz necessária diante da sociedade desigual em que vivemos, confrontando diretamente os objetivos constitucionais da não-discriminação e da valorização do homem, na condição de ser humano. Afirma-se que, apesar de a Constituição não conter a expressão inclusão, são os princípios dessa filosofia que se encontram albergados no texto constitu- cional. Atente-se bem: está elencado como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil (Art. 3º) a construção de uma sociedade livre, justa e solidá- ria, onde as desigualdades sociais devem ser reduzidas, promovendo-se o bem de todos sem qualquer tipo de preconceitos; como princípios fundamentais estão a dignidade da pessoa humana, a cidadania e a igualdade. Portanto, à qualquer pessoa não poderá ser negado o direito de fazer parte da sociedade e, por conseqüência, da rede regular de ensino. 162 É interessante mencionar que os documentos legislativos, internacionais e nacionais, por vezes utilizam a expressão integração como sinônimo de inclu- são23. Apesar disso, a ONU, por meio da Resolução 45/9124, consagrou a expres- são uma ‘sociedade para todos’, demonstrando qual o objetivo a se perseguir. A escola inclusiva é pensada para todos os alunos. Mas de que “todos” estamos falando? “Todos” em qualquer situação? Independente da sua condi- ção? Não há como fragmentar as circunstâncias, em quaisquer que sejam elas. Sempre, “todos” estarão como partes do sistema educacional. É preciso conceber, na verdade, a idéia de escola para todos no seu sentido mais abrangente, de forma a não excluir ninguém do sistema educacional. Werneck (1999, p. 195) atenta que pode até parecer absurdo que toda criança tenha o direito de freqüentar a escola regular, incluindo aquela cuja única forma de comu- nicação seja piscar os olhos, mas esta é a proposta da sociedade inclusiva. Por que retirar dessas crianças a oportunidade de convívio social? A simples alegação de que não irão apreender os conceitos ministrados em sala de aula não convence, posto que este não é o único objetivo da educação. Ora, esta criança, dentro das suas limitações, pode, certamente, evoluir. Se ela, ao chegar à escola, era incapaz de responder a qualquer estímulo e, ao final do ano, em decorrência da convivên- cia e do contato com os outros alunos, ela sorri sempre quando alguém se apro- xima, é preciso reconhecer que, dentro das suas limitações, houve uma significa- tiva evolução. Com este resultado, pode-se afirmar que a escola cumpriu com a sua função social de fornecer respostas a todos os alunos. Tratando-se de pessoas sem quaisquer condições de interação com o meio externo, estas necessitam de cuidados de saúde que as impedem, ao menos temporariamente, de receberem educação escolar. Caso ocorra uma melhora dessa condição de saúde, ainda que pequena, essas pessoas por direito deverão freqüentar escolas comuns da rede regular. Nesses ambientes educativos, certa- mente elas terão melhores oportunidades de se desenvolver no aspecto social e, quanto aos aspectos educacionais escolares, esses alunos poderão aprender o que lhes for possível (Ministério Público Federal, 2004, p. 22). Pelo princípio da inclusão, a ninguém deve ser negada sua real e efetiva participação. As escolas devem se ajustar às necessidades dos alunos, quaisquer que sejam suas condições, não se admitindo exceções, daí ser uma educação para todos. Alunos diferentes terão oportunidades diferentes para que o ensino alcance os mesmos objetivos. A verdadeira escola é aquela para onde todos os alunos daquele bairro, da- quela comunidade, vão estudar. Esse é o espaço privilegiado da preparação para a cidadania e para o pleno desenvolvimento humano, objetivos previstos na Consti- tuição Federal, que devem ser alcançados pelo ensino (Fávero, 2004, p. 53). 163 A inclusão educacional pretende o que se deseja de uma escola: o favorecimento da convivência com a diversidade, a instituição do respeito e da fraternidade entre as pessoas, sem excluir ninguém do ensino regular. Somente dessa forma, preparar-se-ão verdadeiros cidadãos do futuro, construindo uma escola livre de preconceitos. A escola inclusiva é benéfica para todas as pessoas, devendo o convívio com as diferenças ser estimulado desde o início, desde a mais inicial das formas de convivência social: a educação infantil. A partir do momento em que se favorece o convívio com a diversidade desde cedo, se ganha na construção da cidadania, pois a única forma de combater o preconceito, eficazmente, é na infância, impedindo que o mesmo apareça. Esse convívio plural formará adultos conscientes de que o processo inclusivo é salutar e necessário, pois aqueles que, na infância, sempre desfrutaram da presença de crianças e adolescentes com deficiência em sua escola, não duvidarão da capacidade destas pessoas e, com certeza, estimularão a inclusão de todos em um mesmo ambiente (seja escola, trabalho, lazer...). Mittler (2003, p. 17) acredita que o maior obstáculo para a mudança está dentro de nós mesmos, seja nas nossas atitudes, seja nos nossos medos. A nossa tendência é a de superestimar as dificuldades que podem enfrentar as pessoas com deficiência, assim como temer os desapontamentos que eles podem ex- perimentar se “falharem”. Mas isso é cair na linguagem do “nós” e do “eles”, dificilmente estas são as palavras que constroem uma sociedade inclusiva ou uma escola inclusiva. É tempo de mudar as escolas, as atitudes, os pensamentos, o ambiente como um todo. Inclusão significa transformação. Sem este redimensionamento no atual panorama escolar, poder-se-á falar em outra coisa, mas não de inclusão. Os professores precisam se conscientizar de que o seu papel é educar os seus alunos, mas não os que ele escolhe, mas os que a ele chegam. Os diretores das escolas públicas também têm que assumir a sua função, cobrando do Execu- tivo os suportes necessários para a concretização deste novo paradigma educaci- onal. As Secretarias de Educação têm que incluir em suas prioridades a formação continuada dos docentes, pois não se deseja transferir o desafio unicamente para o professor. Este desafio é de todos! Do mesmo modo, os pais ou responsáveis precisam reivindicar o direito de suas crianças e adolescentes sem se conformar com as rejeições praticadas. Todos têm que se envolver nesse processo, que não é fácil, diga-se de passagem, mas que é necessário e irreversível. O Ministério Público tem que assumir uma postura bastante ativa nessa área, sendo ele também responsável pela inclusão social. Cabe a esta instituição exigir das escolas a realização de uma política inclusiva. 164 O principal responsável por esta implementação é o Poder Público que, obrigatoriamente, deve incluir em seus orçamentos recursos públicos para a viabilização da real inclusão, além de promover as políticas públicas necessárias para a progressiva concretização da educação para todos. Diante da natureza do direito à educação, a omissão do Poder Público acarreta a obrigatoriedade de ação por parte do Ministério Público que, por sua vez atuará, preventivamente, na tutela do orçamento podendo utilizar-se da ação civil pública, do termo de ajustamento de conduta ou da recomendação, a fim de garantir os recursos necessários para a devida implementação do direito. Apesar de a reversão do quadro atual ser lenta, pois não se modifica todo um sistema “do dia para a noite”, ela é plenamente possível. As barreiras e as dificuldades existem. O Ministério Público encarregado de zelar pela efetividade dos direitos consagrados à pessoa com deficiência, assume o papel de agente transformador, a fim de tornar a sociedade inclusiva e elevar tal parcela da popu- lação à condição de cidadão, garantindo a plenitude de sua dignidade humana. Notas 1 Art. 205: A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. 2 Art. 6º da Constituição: São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. 3 Foi aprovada pela Resolução 217, na 3ª sessão ordinária da Assembléia Geral da ONU, em Paris, em 10/12/1948, sob a presidência de Eleanor Roosevelt, tendo o Brasil assinado a referida Declaração na própria data de sua adoção e proclamação. 4 Art. XXVI. 1: “Toda pessoa tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito”. 5 Adotado pela XXI Sessão da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 19.12.1966. Aprovado no Brasil pelo Decreto Legislativo 226, de 12.12.1991, e promulgado pelo Decreto 591, de 06.07.1992. 6 Art. 13.1: Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa à educação. Concordam em que a educação deverá visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e a fortalecer o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais. Concordam ainda que a educação deverá capacitar todas as pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e entre todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz”. 165 (Aprovado no Brasil pelo Decreto Legislativo 226, de 12.12.1991, e promulgado pelo Decreto 591, de 06.07.1992). 7 A Convenção foi assinada pelo Brasil em 30.04.07, em Nova Iorque, porém, ainda não foi ratificada. 8 Art. 5 - Igualdade e não-discriminação: 1. Os Estados Partes reconhecem que todas as pessoas são iguais perante e sob a lei e que fazem jus, sem qualquer discriminação, a igual proteção e igual benefício da lei; 2. Os Estados Partes deverão proibir qualquer discriminação por motivo de deficiência e garantir às pessoas com deficiência igual e efetiva proteção legal contra a discriminação por qualquer motivo. 9 Art. 24 – Educação: 1. Os Estados Partes reconhecem o direito das pessoas com deficiência à educação. Para realizar este direito sem discriminação e com base na igualdade de oportunidades, os Estados Partes deverão assegurar um sistema educacional inclusivo em todos os níveis, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida, com os seguintes objetivos (...); 2. Para a realização deste direito, os Estados Partes deverão assegurar que: a. As pessoas com deficiência não sejam excluídas do sistema educacional geral sob alegação de deficiência e que as crianças com deficiência não sejam excluídas do ensino fundamental gratuito e compulsório, sob a alegação de deficiência (...). 10 Art. 227: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. 11 Art. 229: “Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm os dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”. 12 Art. 22: “Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes a obrigação de cumprir a fazer cumprir as determinações judiciais”. Art. 55: “Os pais ou responsáveis têm a obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino”. 13 Art 24: “A perda e a suspensão do pátrio-poder serão decretadas judicialmente, em procedimento contraditório, nos casos previstos na legislação civil, bem como na hipótese de descumprimento injustificado dos deveres e obrigações a que alude o art. 22”. 14 Disponível em webthes.senado.gov.br/bin/gate.exe?f=tocn&state=plsd9t.1.21, acesso em 08.07.07. 15 Art. 58 da LDB: Entende-se por educação especial, para os efeitos desta lei, a modalidade de educação escolar, oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, para educando portadores de necessidades educacionais especiais (grifo nosso). 16 Art. 246 do Código Penal: “Deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade escolar: Pena – detenção de 15 (quinze) dias a 01 (um) mês, ou multa”. Art. 7º, XXXIIII da CF: “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: XXXIII – proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos”. 166 17 Art. 227, § 3º da CF: “O direito à proteção especial abrangerá os seguintes aspectos: I – idade mínima de quatorze anos para admissão ao trabalho, observado o disposto no art. 7º, XXXIII”. 18 Ar. 208, § 1º: “O não oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente”. 19 Art. 58 da LDB: Entende-se por educação especial, para os efeitos desta lei, a modalidade de educação escolar, oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, para educandos portadores de necessidades especiais. 20 Art. 1º da Res. CNE/CEB nº 02/01: A presente Resolução institui as Diretrizes Nacionais para a educação de alunos que apresentem necessidades educacionais especiais, na educação básica, em todas as suas etapas e modalidades. 21 Art. 59, IV da LDB: Os sistemas de ensino assegurarão aos educandos com necessidades especiais a educação especial para o trabalho, visando a sua efetiva integração na vida em sociedade, inclusive condições adequadas para os que não revelarem capacidade de inserção no trabalho competitivo, mediante articulação com os órgãos oficias afins, bem como para aqueles que apresentam uma habilidade superior nas áreas artística, intelectual ou psicomotora. 22 Art. 208, V da CF: O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um. 23 A Resolução 49/153 (1995) tem em seu título: Em direção à plena integração de pessoas com deficiência na sociedade. 24 Assembléia Geral das Nações Unidas, 68ª Sessão Plenária em Nova York, 14 de dezembro de 1990. Bibliografia CARVALHO, Rosita Edler. A nova LDB e a Educação Especial. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. WVA, 2000. FARIAS, Edilsom Pereira de. A Colisão de Direitos. A Honra, a Intimidade, a Vida Privada e a Imagem versus a Liberdade de Expressão e Informação. 3. ed. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1996. GRIBOSKI, Cláudia Maffini (Org.). et. al. Direito à Educação: subsídios para a gestão dos sistemas educacionais: orientações gerais e marcos legais. Brasília: MEC, SEESP, 2004. KONZEN, Afonso Armando. et al (Coord). Pela Justiça na Educação. Brasília: MEC, Fundescola, 2000. MANTOAN, Maria Teresa Égler. Caminhos Pedagógicos da Inclusão. Disponível em: < h t t p : / / w w w . e d u c a c a o o n l i n e . p r o . b r / art_caminhos_pedagogicos_da_inclusao.asp>. Acesso em: 10 ago 2005. ______. Ensinando a Turma Toda: As Diferenças na Escola. Disponível em: http:// intervox.nce.ufrj.br/~elizabet/turma.htm. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Secretaria de Educação Especial. Ensaios Pedagógicos. 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Rio de Janeiro: WVA Editora, 1999. ______. Ninguém mais vai ser bonzinho na sociedade inclusiva. 2. ed. Rio de Janeiro: WVA Editora, 2000. 168 SEÇÃO V - SAÚDE E REABILITAÇÃO A PESSOA COM DEFICIÊNCIA E O DIREITO À SAÚDE Lenildo Queiroz Bezerra Resumo: Identifica e analisa as normas que disciplinam o direito à saúde da pessoa com deficiência no ordenamento jurídico brasileiro. Parte-se do pressuposto de que o direito à saúde da forma concebida pela Constituição, é um direito fundamental da pessoa humana e, como tal, público, subjetivo, universal e irrenunciável, assecuratório do indissociável e supremo direito à vida. Identifica seus principais aspectos relacionados à pessoa com deficiência, destacando as inovações que decorreriam da promulgação do Projeto de Lei nº 7.699/2006, que trata do Estatuto da Pessoa com Deficiência. Discorre-se sobre o princípio da isonomia, enfatizando a necessidade de se alcançar o aspecto substancial por meio de medidas que compensem os débitos funcionais que são inerentes às pessoas com deficiência, dentre às quais, o tratamento especializado, não discriminatório, prioritário e preventivo, que receberam atenção especial em tópicos específicos. Palavras-Chaves: pessoa com deficiência, deficiência, direito à saúde, direito fundamental, estatuto da pessoa com deficiência, tratamento, prioritário, especializado, não discriminatório, isonomia. Abstract: Identify and analyze the norms that run the right to the health of people with disability in the Brazilian legal system. It runs from the point that the right to the realth made by the constitution is a fundamental right of human beings and, such as public, subjective, universal and undone, securitizing the unsocial and extremely right to the life. It identifies their owns aspects related to the people with disability pointed the innovations that ran from the promulgation of the right project 7.699/ 2006, that treats of the statute of the person with disability, it runs from the beginning of the isonomy, pointing the necessity to reach the substantial aspect by the manners that compensates functional debts which are inherent to the people with disability, who the specialized treatment, not discriminating, preventive and priority, that received special attention in specific points. Keywords. People with disability, disabled, rights to the health, fundamental rights, the statute of the person with disability, treatment, priority, specialized, not discriminating, isonomy. 169 1. Introdução O s conceitos e impressões equivocados estabelecidos em relação às pes- soas com deficiência, excluídas das relações convencionais da sociedade que é em grande parcela hipócrita e preconceituosa e que tem dificuldades em aceitar com naturalidade os débitos funcionais humanos, sempre foram obstácu- lo à efetivação de seus direitos. Estigmas foram criados e sua superação é um processo moroso, mas que ganhou destaque durante o Renascentismo, período caracterizado pela valori- zação da pessoa humana. A partir desse momento histórico, vêm sendo contabilizadas importantes conquistas, passando a sociedade, que até então impunha à pessoa com deficiência uma trajetória de exclusão, a gradativamente reconhecer-lhe direitos impostergáveis. A exclusão a que as pessoas com deficiência estavam sujeitas implicava em restrições ao exercício de direitos fundamentais, dentre os quais, a saúde. Isto porque, durante muito tempo imperou o consenso de que seria contraproducen- te garantir-lhes acesso aos serviços sanitários, diante das reduzidas expectativa de vida e capacidade laboral, razão pela qual se buscava de maneira incessante a cura para a deficiência, o que raramente demonstrava-se viável, deixando de se trabalhar a possibilidade de simplesmente assegurar-lhes a dignidade. O Poder Público no Brasil impulsionado pelo movimento globalizado que conferiu realce em passado recente da história humana à valorização social da pessoa com deficiência, representada por 14,5% (catorze e meio por cento) dos habitantes segundo dados do Censo 2000 do IBGE, passou a editar textos normativos que, dispondo a respeito do direito à saúde das pessoas com limita- ções funcionais, deflagraram o processo de inclusão social, contribuindo sensi- velmente para o aumento substancial da expectativa e da qualidade de vida. É o que se verifica especialmente a partir do advento da Constituição da Repúbli- ca de 1988, e com a legislação federal infraconstitucional que se seguiu, notadamente, a Lei nº 7.853/89, a Lei nº 8.069/90, a Lei nº 9.656/98, a Lei nº 11.105/2005 e, os Decretos nos 3.298/99 e 5.296/2004. Nesse contexto, o Estado brasileiro, no dia 30 de março de 2007, deu um importante passo para promover e consolidar os direitos das pessoas com defi- ciência ao assinar a Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada por unanimidade pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas – ONU em dezembro de 2006, a primeira a ser lançada no Século XXI, tendo sido o primeiro tratado na área dos direitos humanos mais rapidamente aprovado na história do Direito Internacional. 170 Ao aderir à Convenção o Brasil reforça o compromisso de adotar medidas legislativas e administrativas para assegurar os direitos na mesma reconhecidos. Esta tem como princípios o respeito pela independência da pessoa, não-discri- minação, efetiva participação e inclusão social, respeito às diferenças e a igual- dade de direitos. No Art. 25 preconiza o reconhecimento pelos Estados signatá- rios do direito de as pessoas com deficiência usufruírem o padrão mais elevado possível de saúde, sem discriminação baseada na deficiência, devendo ser adotadas todas as medidas apropriadas para assegurar serviços de saúde sensí- veis às questões de gênero, incluindo a reabilitação. Embora não se possa deixar de reconhecer a importância das conquistas até o presente instante obtidas, deve-se analisar se efetivamente a consolidação das normas através da promulgação do Projeto de Lei nº 7.699/2006, de inicia- tiva do Senador Paulo Paim, que trata do Estatuto da Pessoa com Deficiência, constituiria um avanço em prol do público ao qual é dirigida. 2. Direito à saúde A saúde, elemento de cidadania, concebida na Constituição da República como direito fundamental do homem (Art. 196), é um direito público de cunho subjetivo, universal e irrenunciável, assecuratório do indissociável e supremo direito à vida, oponível contra o Estado, em quaisquer de suas esferas, na inces- sante perseguição da ordem social justa, sendo inadmissível o estabelecimento de condicionantes ao seu exercício. A aparente programaticidade da norma constitucional assecuratória do impostergável direito à saúde encontra obstáculo intransponível na Carta Constitu- cional Brasileira que possui como fundamento a dignidade da pessoa humana (Art. 3º, I), e a necessidade de se reconhecer que a aplicabilidade imediata e a eficácia plena constituem conseqüência da constatação da fundamentabilidade do direito em disceptação. Por outro ângulo, em uma verdadeira hermenêutica voltada aos fins da justiça social, esta discussão acerca da programaticidade ou da aplicabilidade das normas sanitárias seria inócua, afinal qual o sentido de não fazer valer normas que procuram proteger o maior bem que todos possuímos (a vida)? De que valeria o poder constituinte originário autorizar ao poder constituído que este viesse a prejudicá-lo por interesse que não os seus, negando o caráter comunitária de nossa Lei Maior? (SCHWARTZ, 2001, p. 64-65). O Supremo Tribunal Federal, corte incumbida da preservação da autorida- de da Constituição Federal em nosso país, instado a deliberar a respeito da matéria, nos autos do Agravo Regimental ao Recurso Extraordinário nº 393175/ RS, em julgamento ocorrido aos 12 dias do mês de dezembro de 2006, publica- 171 do no Diário da Justiça de 02 de fevereiro de 2007, na Segunda Turma, acom- panhando à unanimidade o voto relatado pelo Ministro Celso de Mello, projetou a saúde como um direito público subjetivo indisponível assegurado à generali- dade das pessoas pela própria Constituição da República, ao decidir nos termos da ementa a seguir transladada: PACIENTES COM ESQUIZOFRENIA PARANÓIDE E DOENÇA MANÍACO- DEPRESSIVA CRÔNICA, COM EPISÓDIOS DE TENTATIVA DE SUICÍDIO - PESSOAS DESTITUÍDAS DE RECURSOS FINANCEIROS - DIREITO À VIDA E À SAÚDE - NECESSIDADE IMPERIOSA DE SE PRESERVAR, POR RAZÕES DE CARÁTER ÉTICO-JURÍDICO, A INTEGRIDADE DESSE DIREITO ESSENCIAL - FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS INDISPENSÁVEIS EM FAVOR DE PESSOAS CARENTES - DEVER CONSTITUCIONAL DO ESTADO (CF, ARTS. 5º, CAPUT, E 196) - PRECEDENTES (STF) - ABUSO DO DIREITO DE RECORRER - IMPOSIÇÃO DE MULTA - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. O DIREITO À SAÚDE REPRESENTA CONSEQÜÊNCIA CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA. - O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular - e implementar - políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. - O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas - representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE. - O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. DISTRIBUIÇÃO GRATUITA, A PESSOAS CARENTES, DE MEDICAMENTOS ESSENCIAIS À PRESERVAÇÃO DE SUA VIDA E/OU DE SUA SAÚDE: UM DEVER CONSTITUCIONAL QUE O ESTADO NÃO PODE DEIXAR DE CUMPRIR. - O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, “caput”, e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria 172 humanidade e de sua essencial dignidade. Precedentes do STF. MULTA E EXERCÍCIO ABUSIVO DO DIREITO DE RECORRER. - O abuso do direito de recorrer - por qualificar-se como prática incompatível com o postulado ético-jurídico da lealdade processual - constitui ato de litigância maliciosa repelido pelo ordenamento positivo, especialmente nos casos em que a parte interpõe recurso com intuito evidentemente protelatório, hipótese em que se legitima a imposição de multa. A multa a que se refere o art. 557, § 2º, do CPC possui função inibitória, pois visa a impedir o exercício abusivo do direito de recorrer e a obstar a indevida utilização do processo como instrumento de retardamento da solução jurisdicional do conflito de interesses. Precedentes. A saúde é um bem primário, no sentido de que se sobrepõe aos demais direitos fundamentais em face do seu caráter imediatista, garantidor do direito à vida e assecuratório do princípio constitucional fundamental da dignidade da pes- soa humana. Contudo, somente alcança a efetividade se disponibilizada a fruição de outros direitos, igualmente fundamentais, que lhe dão suporte, possuindo como fatores determinantes e condicionantes, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais (Art. 3º, da Lei nº 8.080/90). 3. A isonomia como pressuposto para o alcance de direitos à pessoa com deficiência Através do postulado principiológico da igualdade ou isonomia, consagra- do como princípio informador de toda a ordem constitucional, busca-se comba- ter privilégios injustificados, bem como contribuir para a diminuição dos efeitos decorrentes das desigualdades evidenciadas diante do caso concreto. Dessa forma, o que se veda são as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, pois, o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência tradicional do próprio conceito de Justiça (MORAIS, 2001, p. 62). A paridade de tratamento exaure-se no princípio retributivo. O princípio da igualdade supera a posição formal da paridade para realizar a igualdade substancial: quando existe desigualdade de fato, não existe espaço para o princípio da paridade de tratamento (PERLINGIERI, 1997 apud BEVERVANÇO, 2003, p.126). Objetivando atender satisfatoriamente ao princípio da igualdade, foram estabelecidos privilégios no nosso sistema normativo em favor de pessoas com deficiência, buscando-se compensar débitos funcionais que lhes são inerentes e que durante um longo período da história humana constituíram o motivo para sua total exclusão da participação sócio-comunitária. Por possuírem, as pessoas com deficiência, necessidades especiais, torna- se imperativo compreender que, além dos direitos relativos a todos, devem 173 lhes ser reconhecidos direitos específicos, que compensem, na medida do pos- sível, as limitações e impossibilidades a que estão sujeitas, inclusive os que concernem ao sistema sanitário, onde se situam as mais flagrantes necessidades do ser humano com limitações funcionais acentuadas. Assim, para que se atenda substancialmente ao preconizado no princípio da isonomia devem ser assegurados nos serviços de saúde, pelo Poder Público, atendimentos especializados, não discriminatórios, prioritários e preventivos, que serão objeto de análise a seguir. 3.1 O atendimento prioritário Consoante observado, o atendimento prioritário na área de saúde, uma das vertentes do postulado da igualdade, constitui direito assegurado à pessoa com deficiência, estando regulamentado no Decreto nº 5.296/2004, que em seu Art. 6º dispõe consistir em tratamento diferenciado e atendimento imediato. Por atendimento imediato deve-se compreender aquele prestado às pes- soas com deficiência antes de qualquer outra, depois de concluído o atendi- mento que estiver em andamento, observada a absoluta prioridade constitucio- nal preconizada no Art. 227, caput, da Constituição da República, à criança e ao adolescente e a ressalva à primazia no atendimento às pessoas com idade supe- rior a 60 (sessenta) anos, estatuída no inciso I, do parágrafo único, do Art. 3º, da Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003. Deve-se observar, no entanto, que em qualquer hipótese prevista para o atendimento prioritário, estão excluídas as situações de urgência (resultantes de acidentes pessoais ou de complicações no processo gestacional) e emergência (os que implicarem risco imediato de vida ou de lesões irreparáveis para o paciente), onde a discricionariedade e os critérios médicos excepcionam a pri- oridade estabelecida para o atendimento às pessoas com deficiência. Afinal, somente os profissionais da área médica poderão definir as prioridades, sob pena de se correr o risco de não se obter êxito no salvamento de vidas viáveis, diante da atenção que nortearia em situações de normalidade o atendimento especializado nas diversas áreas. O Projeto de Lei nº 7.699/06, que trata do Estatuto da Pessoa com Defici- ência, reforça o direito atualmente conferido no Decreto nº 5.296/2004 ao con- templar, em seu Art. 5º, ser dever do Estado, da sociedade, da comunidade e da família assegurar, com prioridade, às pessoas com deficiência a plena efetivação, dentre outros, dos direitos referentes à saúde, que implicaria, segundo disposto no Art. 6º, em primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstân- cias, em precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública, junto aos órgãos públicos e privados prestadores de serviços à popula- 174 ção e na garantia de acesso à rede de serviços de saúde e de assistência social locais. O projeto de lei excepciona, como não poderia deixar de fazer, os servi- ços de emergência dos estabelecimentos públicos e privados de atendimento à saúde, ao condicionar a primazia à avaliação médica em face da gravidade dos casos a atender. De forma a satisfazer a conceituação terminológica adotada pelo Art. 35- C, da Lei nº 9.656/98 e evitar interpretações equivocadas, reputa-se necessário inserir dentre os atendimentos que estariam excluídos da prioridade, não ape- nas o atendimento de emergência, mas também, por não se admitir diferencia- ções arbitrárias, o atendimento de urgência. No que se refere, ainda, ao atendimento prioritário nos serviços de saúde, a proposta legislativa enumera como ação específica dirigida às pessoas com deficiência, a garantia de atendimento domiciliar, a assistência imediata e a disponibilização de locais apropriados para o cumprimento da prioridade no atendimento, o que incluiria a possibilidade de agendamento de consultas, rea- lização de exames e procedimentos médicos. 3.2 O atendimento especializado Não obstante suas intensas limitações funcionais, hodiernamente as pes- soas com deficiência têm sobrevida semelhante às demais e os avanços obser- vados no atendimento especializado tiveram um papel fundamental para o estabelecimento desse novo patamar orientador. Nem sempre foi assim. Em decorrência de prognósticos pessimistas que apontavam a inutilidade dos progressos que poderiam ser obtidos através de tratamentos destinados especificamente às pessoas com deficiência, não se ofe- reciam propostas de atenção especializada. Com o avanço científico, verificou- se a exeqüibilidade da vida com dignidade a essa parcela da população, medi- ante o oferecimento de serviços médicos especializados. Diante desse novo paradigma, o Art. 2º, II, c, da Lei nº 7.853/89, estabe- leceu que ao Poder Público e seus órgãos cabe assegurar às pessoas com deficiência o pleno exercício de seus direitos básicos, inclusive dos direitos à saúde mediante a criação de uma rede de serviços especializados em reabili- tação e habilitação. Em compasso com a norma federal acima referida, mas avançando em relação à mesma, o Art. 17, do Decreto nº 3.298/99, que a regulamentou, asse- gurou o benefício do processo de reabilitação a toda pessoa que apresente deficiência, qualquer que seja sua natureza, agente causal ou grau de severida- de, o qual deverá durar o tempo necessário ao alcance do nível físico, mental ou social funcional ótimo, proporcionando-lhe os meios de modificar sua própria 175 vida, podendo compreender medidas visando a compensar a perda de uma função ou uma limitação funcional e facilitar ajustes ou reajustes sociais. E o mesmo Decreto nº 3.298/99, na esteia do Art. 11, §§ 1º e 2º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, inclui na assistência integral à saúde e reabilitação da pessoa com deficiência a concessão de órteses, próteses, bolsas coletoras e materiais auxiliares, tendo em vista que tais equipamentos complementam o atendimento e aumentam as possibilidades de independên- cia e inclusão da pessoa com deficiência, assim como o provimento de medica- mentos que favoreçam a estabilidade clínica e funcional e auxiliem na limitação da incapacidade, na reeducação funcional e no controle das lesões que geram incapacidades. Os serviços especializados destinados às pessoas com deficiência são finan- ciados com verbas públicas do SUS ou com valores específicos, constituindo ofen- sa aos princípios que lhe são inerentes a recusa ou dificuldades impostas à oferta do serviço, diante das imposições normativas anteriormente descritas. Assim, qual- quer pessoa que apresente redução funcional tem direito ao diagnóstico e à avaliação por uma equipe multidisciplinar, bem como de beneficiar-se com regu- laridade dos processos de reabilitação de seu estado físico, mental ou sensorial, quando este constituir obstáculo à sua independência e inclusão, prevenindo o agravamento de sua deficiência ou o acometimento de doenças oportunistas. A Lei nº 11.105/2005, por sua vez, constitui um importantíssimo diploma por respaldar a luta por um avanço responsável dirigido a melhorias no atendi- mento especializado de pessoas com deficiência, por permitir, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embri- ões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no procedi- mento a que se destinavam originalmente, atendidas determinadas condições. As pesquisas nutrem de esperanças aqueles que vislumbram na medicina regenerativa a última alternativa possível para a reabilitação de pessoas com deficiências, especialmente provocadas por doenças genéticas incuráveis. A literatura médica, inclusive, já relacionou exemplos de progressos obtidos por meio da utilização de células-tronco, como a cura de cegueira e a produção de sensação física nos membros paralizados de paraplégico. Embora não se deixe de reconhecer os avanços extraordinários obtidos até o presente instante, seria bastante significativa a aprovação do texto dos artigos inseridos no Capítulo II, do Projeto de Lei do Estatuto da Pessoa com Deficiência, no que tange à especialidade do tratamento dispensado às pessoas com deficiência, que conseguiu contemplar vários direitos já assegurados e ou- tros que seriam garantidos e fomentados, avançando em relação àqueles já 176 dispostos em leis vigentes no nosso ordenamento jurídico, como ao estabelecer que os procedimentos de habilitação e reabilitação seriam assegurados durante todo o tempo de vida que for indicado à pessoa com deficiência. O fornecimento gratuito e obrigatório de medicamentos, ajudas técnicas, dentre outros benefícios, também é um aspecto precioso da proposição, por não estabelecer condicionantes, devendo ser assegurado independentemente da opção eleita pelo usuário em relação ao sistema de saúde (publico ou privado). Outras inovações importantes constantes da proposta de lei (Estatuto da Pessoa com Deficiência) referem-se à obrigatoriedade de oferecimento de cur- sos de capacitação aos profissionais dos serviços de saúde para atender à pes- soa com deficiência e à garantia do transporte, inclusive aéreo interestadual às pessoas com deficiência comprovadamente carentes que necessitem de aten- dimento fora da localidade de sua residência. Diante da imprecisão terminológica e do impacto financeiro imposto por tal prerrogativa às empresas operadoras de transporte de passageiros, deverá tal assunto ser regulamentado através de norma que venha a definir os critérios para a utilização desse benefício. 3.3 O atendimento não discriminatório Em decorrência da exclusão a que estavam submetidas as pessoas com deficiência, do não reconhecimento de seus direitos de cidadania, não bastasse a inexistência de uma primazia hoje explícita na norma, era comum a recusa ou a imposição de dificuldades ao acesso desse público aos serviços de saúde. Todavia, como reflexo da adesão do nosso ordenamento jurídico ao movi- mento que buscava combater as históricas discriminações que lhes eram impos- tas, emerge a Lei nº 7.853/89, que trata, dentre outros temas, do apoio às pessoas com deficiência e sua integração social, contemplando, em seu Art. 8º, inciso IV, a figura típica penal, que comina pena em abstrato de reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa, para o agente que recusar, retardar ou dificultar internação ou deixar de prestar assistência médico-hospitalar e ambulatorial, quando possível, à pessoa portadora de deficiência. Insta ressaltar que uma das modalidades discriminatórias mais comumente praticadas em passado não remoto no nosso país consistia em obstáculos im- postos às pessoas com deficiência para ingresso na condição de usuárias das operadoras de planos ou seguros privados de assistência à saúde, mediante a imposição de condições rigorosas, cobranças de valores elevados, desestimulando ou mesmo inviabilizando o acesso desse público. Diante dessa perspectiva e como forma de eliminar o tratamento discriminatório, vem à tona a Lei nº 9.656/98, que em seu Art. 14, estabelece de maneira taxativa a proibição de se obstar a participação de planos ou seguros 177 privados de assistência à saúde a qualquer pessoa em face de sua deficiência, sujeitando a operadora, seus administradores, membros de conselhos adminis- trativos, deliberativos, consultivos, fiscais e assemelhados a penalidades por descumprimento que vão desde a advertência à inabilitação permanente para exercício de cargos de direção ou em conselhos das operadoras a que se refere a lei, bem como em entidades de previdência privada, sociedades seguradoras, corretoras de seguros e instituições financeiras. Estabelece, ainda, a responsabi- lidade solidária decorrente de prejuízos a terceiros em conseqüência do descumprimento de leis, normas e instruções referentes às operações previstas na legislação e, em especial, pela falta de constituição e cobertura das garantias obrigatórias. Com idêntico propósito, a Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, no Art. 25, item “e”, proíbe a discriminação contra pessoas com deficiência na provisão de seguro de saúde e seguro de vida, caso tais seguros sejam permitidos pela legislação nacional, os quais deverão ser ofereci- dos de maneira razoável e justa. Avançaria a legislação pátria com a aprovação do Projeto de Lei do Estatuto da Pessoa com Deficiência, que é mais incisivo ao vedar todas as formas de discriminação da pessoa com deficiência, qualquer que seja a sua condição, tipo e grau de comprometimento, inclusive pela cobrança de valores diferenciados, no âmbito dos planos privados de assistência à saúde, em razão de sua deficiência. 3.4 Atendimento preventivo A prevenção compreende ações e medidas orientadas a evitar as causas da deficiência que possam ocasionar incapacidade e a elidir sua progressão ou deri- vação em outras incapacidades, podendo incluir diversas ações tais como: cuida- dos primários da saúde, puericultura, pré-natal e pós-natal, educação em matéria de nutrição, campanhas de vacinação contra doenças transmissíveis, medidas contra doenças endêmicas, normas e programas de segurança para evitar deficiências e doenças profissionais e a prevenção das deficiências resultantes da combinação do meio ambiente ou causada por conflitos armados (Ministério da Saúde, 2006, p. 9), bem como através do estímulo ao desenvolvimento científico e tecnológico, planejamento familiar e aconselhamento genético. As ações preventivas constituem garantia prevista na Lei nº 7.853/89, tendo por objetivo evitar a ocorrência da deficiência ou o seu agravamento, devendo ser dispensada especial atenção ao tratamento precoce dos déficits inatos do metabolismo, à triagem auditiva e oftalmológica neonatal e ao acompanhamento do desenvolvimento infantil nos aspectos motor, sensorial e cognitivo, uma vez que a detecção precoce impede com maior probabilidade a deficiência. 178 A Lei nº 7.853/89, em seu Art. 2º, inciso II, a, estabeleceu ser dever do Poder Público assegurar às pessoas com deficiência o pleno exercício de seus direitos básicos, inclusive dos direitos à saúde, mediante a promoção de ações preventivas, como as referentes ao planejamento familiar, ao aconselhamento genético, ao acompanhamento da gravidez, do parto e do puerpério, à nutrição da mulher e da criança, à identificação e ao controle da gestante e do feto de alto risco, à imunização, às doenças do metabolismo e seu diagnóstico e ao encaminhamento precoce de outras doenças causadoras de deficiência. Por força do disposto no Art. 10, inciso II, do Estatuto da Criança e do Adolescente, no nosso país, os hospitais e demais estabelecimentos de atenção à saúde de gestantes, públicos e particulares, estão obrigados a realizar o “teste do pezinho”, exame que busca o diagnóstico e a terapêutica de anormalidades no metabolismo do recém-nascido, tais como o hipotireoidismo congênito, a anemia falciforme e a fenilcetonúria, doenças que podem provocar deficiências mentais. A surdez infantil, contudo, é um problema que atinge de três a cinco crianças por cada mil nascidas no Brasil, portanto em uma proporção maior que as doenças diagnosticadas através do “teste do pezinho” – algo em torno de 1 (um) para cada 2.000 (duas mil) nascidas – e que poderia ser melhorada ou recuperada se descoberta nos primeiros seis meses de vida, posto que o siste- ma auditivo do recém-nascido é dotado de grande plasticidade, moldando-se aos estímulos sonoros que recebe. Atualmente existe uma triagem auditiva, o “teste da orelhinha”, que identifica problemas relacionados à perda auditiva congênita, obrigatória apenas em alguns Estados da Federação. Outro exame que previne deficiências, conhecido por “teste do olhinho”, é destinado à precoce detecção de eventuais problemas de saúde, tais como tumo- res, catarata congênita, traumas de parto, hemorragias, inflamações/infecções e malformações, que se não tratados a tempo podem resultar na perda da visão. Fica, então, a sugestão para que medidas preventivas tão importantes, e que demandam investimento reduzido, como o “teste da orelhinha” e o “teste do olhinho” passem a ser adotadas com obrigatoriedade em todo o país. 4. Conclusão Não há dúvida de que a efetivação do direito à saúde das pessoas com deficiência vem sofrendo uma valorosa contribuição da nossa legislação, em es- pecial com a promulgação da Carta Constitucional de 1988, após a qual advieram os mais significativos diplomas normativos brasileiros em favor desse público. Contudo, avanços mais significativos somente se verificarão com a consolidação legislativa no nosso país das normas protetivas à pessoa com defici- ência, através da promulgação do Projeto de Lei nº 7.699/2006, que trata do 179 Estatuto da Pessoa com Deficiência, reservando um capítulo para disciplinar as regras concernentes ao direito à saúde, o qual enfatiza a necessidade de se asse- gurar tratamento especializado, não discriminatório, prioritário e preventivo. Bibliografia CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. O direito à diferença: as ações afirmativas como mecanismo de inclusão social de mulheres, negros, homossexuais e portadores de deficiência. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. FÁVERO, Eugênia Augusta Gonzaga. Direitos das Pessoas com Deficiência: Garantia de Igualdade na Diversidade. Rio de Janeiro: WVA, 2004. FIGUEIREDO Nébia Maria Almeida de (org.). Ensinando a Cuidar em Saúde Pública. São Paulo: Yendis, 2005. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. A pessoa com deficiência e o Sistema Único de Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2006. MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional. Pessoa idosa e Pessoa Portadora de Deficiência: da Dignidade Necessária, Vitória: CEAF, 2003. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 10 ed. São Paulo: Atlas, 2001. PAULA, Alexandre Sturion de. Ensaios Constitucional de Direitos Fundamentais. São Paulo: Servanda, 2006. SCHWARTZ, Germano. Direito à Saúde: Efetivação em uma Perspectiva Sistêmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado. TAVARES, André Ramos, MENDES, Gilmar Ferreira e MARTINS, Ives Granda da Silva (coord.), Lições de Direito Constitucional em Homenagem ao Jurista Celso Bastos. São Paulo: Saraiva, 2005. 180 SEÇÃO V - SAÚDE E REABILITAÇÃO MEDICINA DE REABILITAÇÃO Reabilitação e o modelo da CIF Linamara Rizzo Battistella Resumo: A história da Medicina Física e Reabilitação, remonta a tradição centenária e como filosofia estabelece uma assistência interdisciplinar, enfocando a incapacidade. A prevalência da incapacidade na população brasileira é de 14,5%, segundo o Censo do IBGE/2000, no entanto, a assistência para a Reabilitação das Pessoas com Deficiência, ainda encontra barreiras por insuficiência de recursos, falta de informações adequadas e conscientização da população. Os objetivos da Medicina de Reabilitação, dentro do modelo médico social ou biopiscossocial, é garantir autonomia e independência funcional. A superação da incapacidade depende da associação entre a correta abordagem médica e funcional, a disponibilização das ajudas técnicas quando couber, a ação social e a responsabilidade coletiva para fazer as modificações ambientais e conceituais necessárias para a participação plena das pessoas com deficiência. A introdução da CIF – Classificação Internacional de Funcionalidade, permitiu uma visão coerente das diferentes demandas de saúde sob uma perspectiva biológica, individual e social. A CIF permite registrar a funcionalidade e a sua interação com o ambiente. A observação dos dados de interação do sistema de informações hospitalares, nos alerta para o número de agravos a saúde potencialmente incapacitante e que necessitam dos cuidados especializados do Médico Fisiatra desde a fase de internação. Os recursos disponibilizados para a reabilitação das pessoas com deficiência física incapacitante, estão abaixo das necessidades reais desta população. Palavras chave: Fisiatria, Incapacidade, Reabilitação, CIF, Políticas Públicas. Abstract: The history of Physical and Rehabilitation Medicine can be traced back to a centennial tradition and establishes as its philosophy an interdisciplinary care, focusing on disability. The prevalence of disability in the Brazilian population is 14,5%, according to the census carried out in 2000 by the Brazilian Institute for Geography and Statistics (Censo IBGE/2000), however the Rehabilitation care for People with Disabilities is still hindered by lack of material resources, proper information and some conscientization of the society. The objectives of Physical and Rehabilitation Medicine within the scope of the social or biopsicossocial medical model are to ensure autonomy and functional independence. Overcoming disability 181 depends on the association of correct clinical and functional approach, concession of technical aids when applicable, social action and collective responsibility in order to perform the environmental and conceptual changes required for the full participation of people with disability. The introduction of ICF – International Classification of Functionality permitted a new, coherent view of the various demands of health under a biologic, individual and social perspective. ICF enables us to record functionality and its interaction with the environment. The observation of the interaction data of the Hospitals Information System warns us of the amount of potentially-disabling harms to health that need the specialized assistance of a Physiatrist from the inpatient stage. Resources available for the rehabilitation of people with disabling physical impairments are under the real needs of this population. Key words: Physiatry, Disability, Rehabilitation, ICF, Public Policies. 1. Introdução. Histórico A s origens da Medicina Física remontam à tradição centenária da utilização de agentes físicos como o calor, o frio e a água com fins terapêuticos, e especificamente à introdução, em 1890, da diatermia terapêutica - uma forma de aquecimento profundo com a utilização de ondas curtas. Os princípios da Reabilitação Médica foram formulados inicialmente durante o tratamento de soldados em 1919, após a Primeira Guerra Mundial. A fusão destas especialida- des na Medicina Física e de Reabilitação - MFR - teve início na década de 1920, ganhou força na década de 30 e foi estimulada pela Segunda Guerra Mundial; e por volta de 1947 a MFR foi decretada oficialmente como especialidade pela Comissão Americana de Especialidades Médicas. No Brasil, a Associação Brasileira de Medicina Física e de Reabilitação - ABMFR - existe oficialmente desde 1954. A Fisiatria – do grego physio, ou natureza; uma menção aos agentes (físicos) da natureza usados com finalidades terapêuticas (calor, frio, água, eletricidade) – é o nome abreviado da especiali- dade e o fisiatra, um médico especialista em MFR. A MFR é orientada por uma abordagem biopsicossocial voltada à deficiên- cia e incapacidade. Este modelo atual foi desenvolvido em cooperação com orga- nizações que utilizam e adotam a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde - CIF da Organização Mundial da Saúde – OMS, aprovada pela Assembléia da Organização Mundial de Saúde (WHO) em maio de 2001. O modelo, teoricamente, não privilegia a etiologia e adota uma termino- logia aceita mundialmente para mensurar a funcionalidade no nível do indiví- duo e também considerando os aspectos socioambientais. Este modelo teórico é útil para a definição e avaliação de qualquer programa e intervenção de rea- 182 bilitação. Ele identifica a patologia subjacente, os problemas no nível do funcio- namento dos órgãos e da estrutura corporal permitindo reconhecer o potencial para restauração / otimização da funcionalidade do indivíduo. Além disso, esse modelo leva em consideração a habilidade de participa- ção em sociedade, a qual depende não somente da funcionalidade do sujeito mas também de fatores contextuais que afetam a vida e o ambiente do pacien- te e seus familiares. 2. Filosofia A Medicina Física e Reabilitação (MFR) abrange o diagnóstico e o trata- mento de distúrbios físicos e funcionais. A Medicina de Reabilitação difere do modelo clínico de assistência convencional em vários aspectos. Nela, o objetivo é a incapacidade ao invés do foco na doença. A MFR prioriza a abordagem interdisciplinar da equipe de reabilitação valorizando informações e estratégias para limitar a incapacidade e desenvolver o maior grau de funcionalidade, centrada em objetivos hierarquizados. O modelo tradicional utiliza uma aborda- gem mais fragmentada, na qual vários especialistas trabalham independente- mente com problemas específicos (European Academy of Rehabilitation Medicine, 1989). Os objetivos do tratamento reabilitacional não estão atrelados à cura da doença mas à garantia de qualidade de vida e do desenvolvimento do potencial remanescente. O médico, nesta situação, deve ser também um edu- cador e o paciente é um participante ativo no processo terapêutico. O acesso à reabilitação é um direito humano básico, garantido na Declara- ção das Nações Unidas (1993) e na 58ª Resolução da Assembléia da Organização Mundial de Saúde (2005). Além disso, o Estado brasileiro assegura pela legislação o acesso das pessoas com deficiência aos serviços de saúde (IMESP, 2004). A igualdade de acesso à reabilitação e a participação social sem qualquer forma de discriminação são os fundamentos de uma sociedade justa. As pessoas com deficiência devem ser participantes ativos na criação e no desenvolvimento dos serviços de reabilitação. As boas práticas na reabilitação garantem que a pessoa com deficiência esteja no centro da abordagem multidisciplinar e seja capaz de fazer escolhas quanto aos objetivos e processos do programa de reabilitação. 3. A Relevância da Medicina de Reabilitação para as Pessoas com Deficiências Incapacitantes A prevalência da incapacidade é aceita na maior parte dos países desen- volvidos como em torno de 10%. No Brasil, o Censo Demográfico 2000 do IBGE mostrou que 14,5% da população tem algum tipo de deficiência. As po- 183 pulações estão envelhecendo e isso implica num acréscimo dos níveis de inca- pacidade. Isto se reflete no aumento da carga de cuidado para os indivíduos e, para a sociedade, no aumento dos gastos com saúde e assistência social. A sobrevida nas doenças crônico-degenerativas, nos traumatismos e lesões tem melhorado, mas em contrapartida encontramos um número crescente de pessoas com problemas funcionais geralmente complexos. Além disso, o enve- lhecimento da população brasileira é um fato e vemos um aumento crescente na expectativa de manutenção de boa saúde e qualidade de vida, podendo-se afir- mar que o objetivo da Reabilitação é “Adicionar Qualidade aos Anos de Vida”. A reabilitação é eficaz na redução da carga da incapacidade e no aumento das oportunidades de inclusão social para as pessoas com deficiência. Prevenir as complicações secundárias decorrentes da imobilidade, da lesão cerebral e da dor produz muitos benefícios tanto qualitativamente para o completo estado de saúde do indivíduo como quantitativamente em termos de implicações finan- ceiras para a sociedade. O objetivo maior da Reabilitação é garantir autonomia e independência funcional às pessoas com deficiência, consideradas as restrições impostas por deficiências resultantes de doenças ou lesões. Na prática, esse objetivo é atingido mais satisfatoriamente através de uma combinação de medidas para superar ou trabalhar com as deficiências do paci- ente e medidas para remover ou reduzir as barreiras à participação do indivíduo em seu ambiente familiar e social. Os dois resultados fundamentais da Reabilitação que devem ser demons- trados são o bem-estar da pessoa e sua participação ativa na sociedade incluin- do a profissionalização. 3.1 Modelos Médico e Social Uma variedade de modelos conceituais foi proposta para compreender e explicar a incapacidade e a funcionalidade. Esses modelos podem ser expres- sos em uma dialética de “modelo médico” versus “modelo social”. O modelo médico considera a incapacidade como um problema da pes- soa, causado diretamente pela doença, trauma ou outro estado de saúde, que requer assistência médica fornecida através de tratamento individual por profis- sionais. Os cuidados em relação à incapacidade têm como objetivo a cura ou a adaptação do indivíduo e mudança de comportamento. A assistência médica é considerada como a questão principal e, em nível político, a principal resposta é a modificação ou reforma da política de saúde. O modelo social de incapacidade, por sua vez, considera a questão princi- palmente como um problema criado socialmente e, basicamente, como uma 184 questão da integração plena do indivíduo à sociedade. A incapacidade não é um atributo de um indivíduo, mas sim um conjunto complexo de condições, muitas das quais criadas pelo ambiente social. Assim, o enfrentamento do problema requer ação social e é responsabilidade coletiva da sociedade fazer as modifica- ções ambientais necessárias para a participação plena das pessoas com incapa- cidades em todas as áreas da vida social. Portanto, é uma questão de atitude ou ideologia que requer mudanças sociais que, em nível político, transformam-se em questões de direitos humanos. De acordo com este modelo, a incapacidade é uma questão política. É preciso considerar o risco de se polarizar ou ideologizar uma questão que certamente significa um agravo à saúde, e portanto, depende de medidas eficientes e cientificamente comprovadas para o controle e recuperação sem esquecer do impacto traduzido pelo ambiente hostil e pelas condições sociais inadequadas. A CIF baseia-se em uma integração desses dois modelos aparentemente opostos. Uma abordagem biopsicossocial é utilizada para se obter a integração das várias perspectivas de funcionalidade. Assim, a CIF tenta chegar a uma síntese que ofereça uma visão coerente das diferentes dimensões de saúde sob uma perspectiva biológica, individual e social. Osteoartrite, artrite reumatóide ou quadro clínico funcional musculoesquelético Funções e Estruturas do Corpo: Atividades: Participação: - dor - mobilidade: permanecer em -desempenho laboral - amplitude de movimento pé, caminhar, utilizar meios de - fraqueza muscular transporte -relacionamento familiar - déficits de coordenação - pegar, manusear objetos -lazer e recreação - problemas com a função de -atividades da vida diária, tais -Vida social energia e impulsos e distúrbios do como lavar, vestir-se, fazer sono -participação em atividades compras, preparar alimentos políticas e religiosas Fatores Ambientais: Fatores Pessoais: -local de trabalho -comportamento de saúde -instalações domiciliares e de -estratégias de superação transporte (senso de coerência) -familiares e amigos -multimorbidade -serviços de saúde e seguros -idade e sexo -atitudes de sociabilidade (3) Adaptado do Comitê Europeu de MF&R As deficiências podem ser temporárias ou permanentes, progressivas, re- gressivas ou estáveis, intermitentes ou contínuas. O desvio em relação ao modelo baseado na população pode ser leve ou grave e pode flutuar ao longo do tempo. As deficiências não têm uma relação causal com a etiologia ou com a forma como se desenvolveram. Por exemplo, a perda da visão ou de um membro pode 185 resultar de uma anomalia genética ou de uma lesão. A presença de uma deficiên- cia implica necessariamente uma causa, no entanto, a causa pode não ser sufici- ente para explicar a deficiência resultante. Da mesma forma, quando há uma deficiência, há uma disfunção das funções ou estruturas do corpo, mas isto pode estar relacionado a qualquer doença, distúrbio ou estado fisiológico. As deficiências podem expressar uma alteração da condição de saúde, mas não indicam necessariamente a presença de uma doença ou que o indiví- duo deva ser considerado doente. As deficiências são mais amplas e mais abrangentes no seu escopo do que distúrbios ou doenças. Por exemplo, a perda de uma perna é uma deficiência de uma estrutura do corpo, mas não um distúrbio ou doença. As deficiências podem originar outras deficiências. Por exemplo, a dimi- nuição da força muscular pode prejudicar as funções de movimento; as funções cardíacas podem estar relacionadas ao déficit das funções respiratórias, e uma percepção prejudicada pode estar relacionada a déficit cognitivo (Stucki et al, 2002, 24:932-8). Os fatores ambientais interagem com as funções do corpo, como nas interações entre a qualidade do ar e a respiração, a luz e a visão, os sons e a audição, estímulos que distraem a atenção, a textura do solo e o equilíbrio, temperatura ambiental e a regulação da temperatura corporal. Os fatores ambientais são determinantes para a definição da magnitude da incapacidade em cada indivíduo. Uma pessoa pode: · ter deficiências sem limitações de capacidade (por exemplo, uma desfi- guração resultante da doença de Hansen pode não ter efeito sobre a capacida- de da pessoa); · ter problemas de desempenho e limitações de capacidade sem deficiên- cias evidentes (por exemplo, redução de desempenho nas atividades diárias associadas a várias doenças); · ter problemas de desempenho sem deficiências ou limitações de capaci- dades (por exemplo, indivíduo HIV-positivo, ou um ex-paciente curado de doença mental, que enfrenta estigma ou discriminação nas relações interpessoais ou no trabalho); · ter limitações de capacidade sem assistência e nenhum problema de desempenho no ambiente habitual (por exemplo, um indivíduo com limitações de mobilidade pode se beneficiar de uma ajuda técnica ou tecnológica assistiva, e assim garantir maior funcionalidade para se movimentar). 186 · perpetuar uma atitude negativa (por exemplo, inatividade dos membros pode levar à atrofia muscular; a institucionalização pode resultar em perda das habilidades sociais). 3.2 Fatores Ambientais Os fatores ambientais são organizados na Classificação Internacional de Fun- cionalidade, Incapacidade e Saúde – CIF, tendo em vista dois níveis distintos: · individual – esse nível inclui as características físicas e materiais do ambiente em que o indivíduo se encontra, bem como o contato direto com outros indivíduos da família, colegas e da comunidade em geral; · social – estruturas sociais formais e informais, regras de conduta ou sistemas predominantes na comunidade ou sociedade que têm um impacto sobre os indivíduos, Este nível inclui organizações e serviços relacionados ao ambiente de trabalho, atividades comunitárias, órgãos governamentais, serviços de comunicação e de transporte e redes sociais informais bem como leis, regulamentações, atitudes e ideologias. Os fatores ambientais interagem com todos os componentes. A incapaci- dade é caracterizada como o resultado de uma relação complexa entre o estado ou condição de saúde do indivíduo e fatores que representam as circunstâncias nas quais o indivíduo vive. Assim, diferentes ambientes podem ter um impacto distinto sobre o mes- mo indivíduo com uma determinada condição de saúde. Um ambiente com barreiras, vai restringir o indiventre o estdo ou condiç uma relaçcientipaçleis, res comunitscriminaço desempenho do indivíduo; outros ambientes mais acessí- veis podem melhorar esse desempenho. A sociedade pode limitar o desempe- nho de um indivíduo criando barreiras (por exemplo, prédios inacessíveis) ou não fornecendo as ajudas técnicas necessárias à superação das barreiras (por exemplo, indisponibilidade de dispositivos de auxílio para locomoção, forneci- mento de remédios para controle da dor) (Stucki et al, 2002, 24:932-8). 4. A Medicina Física e Reabilitação nas diferentes fases do processo reabilitacional. A reabilitação é um processo contínuo e coordenado, de duração limitada, tendo início nos estágios iniciais de uma doença ou lesão e prosseguindo até a aquisição, pelo indivíduo, de um papel na sociedade consistente com suas aspi- rações e desejos. Trabalhando de forma integrada com equipes especializadas, é possível desenvolver o processo de reabilitação de forma orientada aos objetivos e centrada no paciente. Os especialistas de MFR atuam na definição do diagnós- tico funcional e anatômico, no reconhecimento do prognóstico funcional e na 187 coordenação do programa de reabilitação. A Medicina Física e de Reabilitação acompanha o paciente nas diferentes fases do processo reabilitacional. O tratamento deve ser oportunizado desde a fase aguda, nas unidades de terapia intensiva, imediatamente após o trauma ou a instalação da lesão (Royal College of Physicians, 2000). A reabilitação na fase aguda é importante no sentido de utilizar a plasticidade neuromuscular de forma eficaz e precoce (Didier, 2004, p. 476) evitando-se ou reduzindo o risco potencial de complicações adicionais. É o papel da reabilitação na prevenção secundária. Princípios da Prevenção Ambiente no qual se toma Prevenção Características Exemplos tais medidas preventivas Primária Evitar a doença ou Áreas política e social Redução da velocidade para a prevenção de lesão Assistência básica de saúde acidentes de trânsito Redução dos fatores de risco para doenças cerebrovasculares e do miocárdio. Secundária Evitar os efeitos e Hospital de agudos e Prevenção da hipertensão intracraniana na lesão complicações da reabilitação intra-hospitalar cerebral própria doença ou Prevenção do acidente cerebrovascular após o lesão infarto do miocárdio Prevenção de problemas de imobilidade e viabilidade dos tecidos Prevenção de contraturas Terciária Evitar os efeitos e Departamentos de Tratamento de problemas físicos complicações da reabilitação pós-aguda e comportamentais após a lesão cerebral própria doença ou Centros Comunitários de Prevenção do agravamento da incapacidade lesão Cond. Funcional para Prevenção de novas incapacidades; como manutenção insuficiência renal com comprometimento das infecções – tratamento urinário. Adaptado do Comitê Europeu de MF&R Nos estágios agudos não-críticos e também nas etapas sub-agudas, o pro- cesso de reabilitação dever ser oferecido em regime de supervisão contínua; o que significa que o paciente deve estar internado em um hospital de reabilita- ção ou em leitos de reabilitação em hospitais gerais. Os leitos de reabilitação, assim como os hospitais de reabilitação, são unidades de menor complexidade e, portanto, menor custo e que oferecem o tratamento integral com todo supor- te laboratorial e clínico específico da Medicina de Reabilitação. Uma forma, já regulamentada pelo Sistema Único de Saúde - SUS, de assistência integral e intensiva para pacientes com deficiências físicas é a moda- lidade “hospital-dia”. As portarias ministeriais que regulamentam a Rede Estadu- al de Assistência à Pessoa com Deficiência Física permitem que os Serviços de 188 Referência em Medicina Física e Reabilitação atendam em período integral nos moldes de hospital-dia os pacientes com deficiências incapacitantes físicas e sensoriais (IMESP, 2004). O SUS exige a presença do médico especialista – Médico Fisiatra para o atendimento ao deficiente físico, Médico Oftalmologista para o deficiente visu- al, Médico Otorrinolaringologista para o deficiente auditivo e Psiquiatras, Neuro- logistas e Pediatras para o acompanhamento do deficiente mental (IMESP, 2004). Ao exigir formação e capacitação de todos os profissionais envolvidos na assistência ao deficiente, o Ministério da Saúde cumpre seu papel ético, valoriza e respeita os direitos das pessoas com deficiência. 5. Alocação de Recursos para a Assistência a Pessoa com Deficiência Uma das discussões mais relevantes na definição das estratégias de assis- tência no âmbito da reabilitação é a questão da alocação de recursos (Royal College of Physicians, 2000). Freqüentemente se justifica a dificuldade do pla- nejamento pela falta de informações adequadas. No entanto, a experiência tem mostrado que os dados do Censo 2000 do IBGE são adequados e suficientes para o planejamento e estimativa de alocação de recursos. É preciso romper este círculo cruel que não disponibiliza recursos porque não tem dados, por falta de recursos não se implementa uma assistência de qualidade e a falta de assistência se reflete na falta de dados para compor a série histórica. Assim, mesmo considerando-se a possibilidade de equívocos, devemos utilizar a base de dados do IBGE e propor políticas de operacionalização da assistência. Além dos dados do IBGE, destacamos a importância dos registros no sistema SIH-SUS decorrentes das internações hospitalares. As informações do SUS traduzem a urgência do tema e a necessidade de implementação das boas práticas de reabilitação. Atualmente observa-se uma tendência ao aumento na proporção de pes- soas idosas na nossa população, o que faz com que o acidente vascular cerebral continue sendo um importante problema de saúde (Royal College of Physicians, 2000). Os sobreviventes do quadro agudo, evoluindo ou não com seqüelas, exigirão cuidados por um longo período (Turner-Stokes et al, 2005). Além disso no Brasil, em geral, as doenças cerebrovasculares atingem indivíduos na faixa etária acima dos 30 anos (DATASUS – Morb 2003), o que significa prejuízo funcional e anos vividos ajustados à incapacidade. Em 2005, o total de internações do SUS considerando todos os Estados brasileiros correspondeu a 11.739.975, excluindo-se as internações decorrentes de partos e outras causas maternas (Data SUS/2005)1. O número de internações por acidentes vasculares cerebrais de todos os tipos somou 204.203, refletindo um percentual de 2,23% (fonte: SIA-SUS, 2005). 189 Um número não conhecido de pacientes com quadros mais leves são atendidos nos pronto-socorros e nas unidades clínicas, o que nos permite inferir que os registros hospitalares são dos casos moderados e graves e, portanto, com risco efetivo de seqüelas. Se 10% desses pacientes - conforme os dados do DATASUS- Mort - vão a óbito, é de se supor que tenhamos 20.000 novos casos por ano com necessidade de assistência reabilitacional, cuidados médicos, órteses e medicamentos. Na linha das doenças crônico-degenerativas, os acidentes vasculares cere- brais são os de maior prevalência (Royal College of Physicians, 2000). As deficiências dos jovens e adultos estão fortemente associadas às lesões incluídas dentro do Capítulo XIV da Classificação Internacional de Doenças - CID como causas externas. Neste item estão registradas as fraturas, traumas em geral, acidentes com veículos, atropelamentos, acidentes envolvendo arma de fogo e arma branca, agressões e lesões autoprovocadas. Desde 1980, observa-se uma mudança no perfil de internações e morta- lidade por causas externas. Em 1980, os acidentes de trânsito assumiam uma grande importância. Na década de 90, a obrigatoriedade do uso do cinto de segurança, a melhoria do sistema de atendimento pré e intra-hospitalar e a introdução em 1998 do novo Código de Trânsito Brasileiro foram decisivos para o declínio observado nessas ocorrências (Souza e col., 2007, p. 33-44). Entre os acidentes de trânsito, per- manecem as altas taxas de atropelamento e acidentes com moto. No capítulo das causas externas, chama atenção a tendência crescente das agressões e dos ferimentos por arma de fogo. Malta e colaboradores (2007, p. 45-55) registram o processo de implanta- ção da política de redução da morbimortalidade por acidentes e violência. No entanto, os números obtidos nos registros de internações do SUS ainda se apre- sentam como um desafio às políticas de saúde e segurança e um alerta para a Política Nacional de Reabilitação, que tem nesse jovem – preferencialmente do sexo masculino, vitimizado pela violência – o alvo de sua atenção. Nos mais de onze milhões de internações no Brasil, o SUS registra: 98.977 (1,08%) de pacientes com traumatismo crânio-encefálico 6.393 (0,07%) de amputações dos membros superiores 3.666 (0,04%) de amputações dos membros inferiores 3.476 (0,04%) de traumas raquimedulares Esses números não incluem as doenças que podem evoluir para lesões medulares, ou os distúrbios metabólicos e plurimetabólicos que podem evoluir para amputações de membros. 190 A avaliação circunstancial dos números registrados no DATA-SUS nos reme- te a uma situação desafiadora, que é providenciar a necessária infra-estrutura para mais de 300.000 novos pacientes a cada ano, sem considerar a freqüência dos agravos de infância que em decorrência da anoxia neonatal, das infecções do sistema nervoso central e das malformações congênitas exigem um atendimento de Reabilitação especializado e articulado com o sistema formal de educação. Os procedimentos ambulatoriais voltados à assistência da pessoa com defi- ciência física estão ainda muito aquém da necessidade – cerca de 2.000.000 atendimentos clínicos, para fazer frente a uma população já existente de 9.000.000 de pessoas com deficiência física e restrição da mobilidade, e que necessitam de algum tipo de cuidado e a estimativa de 300.000 casos novos por ano. A urgência na oferta de atendimento de qualidade às pessoas com defici- ência, exige políticas voltadas para a capacitação de recursos humanos, avalia- ção dos resultados referentes aos programas existentes, transparência na alocação de recursos voltados para as diversas etapas de assistência hospitalar, nos paci- entes sub-agudos e nos cuidados de manutenção da condição funcional e qua- lidade de vida. Garantir o atendimento de reabilitação com qualidade e resolutividade, é o caminho para a inclusão social das pessoas com deficiência. Notas 1 Agradecimentos a Profa. Maria Helena de Mello Jorge – Faculdade de Saúde Pública – USP, pelos dados referentes ao registro de internações do SUS. * Agradecimentos a Profa. Maria Helena de Mello Jorge – Faculdade de Saúde Pública – USP, pelos dados referentes ao registro de internações do SUS. Bibliografia CIF : Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde / Centro Colaborador da Organização Mundial da Saúde para a Família de Classificações Internacionais (org.: coordenação da tradução Cássia Maria Buchalla). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003. Didier JP. La plasticité de la function motrice. Collection de l’Academie Européenne de Médecine de Réadaptation. Paris: Springer Verlag; 2004. European Academy of Rehabilitation Medicine. European Federation of Physical and Rehabilitation Medicine, European Union of Medical Specialists (Physical and Rehabilitation Medicine Section): White Book on Physical and Rehabilitation Medicine. Universidad Complutense de Madrid: 1989. Malta DC, Lemos MAS, Silva MMA, Gazal-Carvalho C, Rodrigues EMS, Morais Neto OL, Iniciativas de vigilância e prevenção de acidentes no contexto do SUS. Epidemiologia e Serviços de Saúde, 2007. 191 Medical rehabilitation for people with physical and complex disabilities. Report of a working party”. London: Royal College of Physicians; 2000. Organised inpatient (stroke unit) care for stroke. Stroke Unit Trialists’ Collaboration (update in Cochrane Database of Systematic Reviews). Cochrane Database of Systematic Reviews: 2002. Pessoas portadoras de (d)Eficiência: legislação federal, estadual e municipal. Org. pelo Departamento de Documentação e Informação. São Paulo: IMESP, 2004. Souza MFM e col.. Análise descritiva e de tendência de acidentes de transporte terrestre para políticas sociais do Brasil. Epidemiologia e Serviços de Saúde, 2007. Stucki G, Exert T, Cieza A. Value and application of the ICF in rehabilitation medicine. Disability and Rehabilitation, 2002. Turner-Stokes L, Disler PB, Nair A, Wade DT. Multi-disciplinary rehabilitation for acquired brain injury in adults of working age. Cochrane Database of Systematic Reviews 2005. 192 SEÇÃO VI - BENEFÍCIO ASSISTENCIAL O BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA E A PREPONDERÂNCIA DOS CRITÉRIOS SUBJETIVOS NA ANÁLISE CONTEXTUAL Cláudio Drewes José de Siqueira Resumo: Abordagem da importância dos critérios subjetivos na análise do contexto individual e familiar da pessoa com deficiência, requerente do benefício de prestação continuada, com pinceladas na legislação vigente, deslocando o foco para melhor confecção dos laudos médicos e dos pareceres socioeconômicos, com vistas ao verdadeiro resgate da cidadania das pessoas com deficiência. Palavras Chave: Benefício de Prestação Continuada, LOAS, Pessoa com Deficiência, Critérios Subjetivos, Preponderância, Laudos Médicos e Pareceres Socioeconômicos, Importância, Resgate da Cidadania. Substract: Analysis of the importance of subjectives standarts in avaliation of individual and familiar context of person with disability who petitioner of assistencial benefit. Keywords: assitencial benefit, person with disability. 193 1. Introdução A noção básica de cidadania está atrelada à idéia de acesso, por qualquer ser humano, a uma ordem de valores e direitos fundamentais, que possibilite sua existência e a sua participação ativa na vida social e política e do governo de seu povo. Embora do contexto histórico pátrio note-se sensível evolução a este pre- conizado acesso, a realidade dura deixa ainda entrever que muitos segmentos quedam em posição de bastante inferioridade dentro do grupo social, não se podendo verdadeiramente certificar, portanto, e por enquanto, uma considerá- vel ampliação deste conceito. Isso porque a percepção dessa alteração no quadro de isolamento e de descaso, que sempre vivenciaram, mostra-se até então, tímida e lenta, con- quanto contínua – isso graças a perceptível mobilização de associações e órgãos representativos, ao significativo percentual de segmento populacional que pas- saram a representar, e da política intensa de sensibilização encampada. Notadamente são as pessoas com deficiência, em razão disso, que hoje podem verificar e constatar, no cotidiano e no ordenamento jurídico pátrio, relativas mudanças naquela moldura remota, principalmente quando se pode ver a palatável e freqüente preocupação do constituinte e do legislador em alterar tal panorama, com a edição de inúmeros direitos e garantias. Infelizmente, por mais das vezes, não apenas em razão da peculiar condi- ção especial destas pessoas, mas, também, pela desinformação e pela inexistência não só de meios que façam valer o direito ao acesso à informação, assim como de outros tantos recursos que possam propiciar acesso ao exercício da cidada- nia, tais direitos e garantias notavelmente aguardam ansiosos e inertes pelos inscientes titulares para o real gozo e exercício. E o que se percebe, com efeito, é que, curiosamente, a finalidade precípua de tais direitos é exatamente a de promover o resgate da cidadania das pessoas com deficiência e de tentar minimizar a distância entre elas e as outras, pavi- mentando modesto acesso a um mínimo para o exercício de alguns direitos inerentes a qualquer ser humano, não obstante alguns críticos apontarem para o eventual assistencialismo que daí decorra – como é o caso do direito ao benefí- cio de prestação continuada, que confere à pessoa com deficiência, ou ao idoso, o direito à percepção de um salário-mínimo quando em estado de miserabilidade. No dizer da Constituição Federal de 1988, o salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, é aquela contraprestação mínima paga ao trabalhador capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com mora- dia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previ- 194 dência social, com reajustes periódicos, que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim (Art. 7º, inciso IV). Com efeito, o atendimento das necessidades vitais básicas do trabalhador e às de sua família é o que supostamente deveria cobrir o valor do salário mínimo fixado em lei. Mas, o que se nota historicamente, muito aquém de atingir esse escopo, seus valores vêm sendo estabelecidos; não conseguindo seu quantitativo, en- tão, sequer fazer face ao atendimento individual de algumas parcelas preconi- zadas constitucionalmente – o que dirá de todas, e o de toda a família. Mesmo assim, a realidade vem sendo driblada com coragem e perseverança, com o partilhamento e extensão do precário orçamento familiar, pautado muitas ve- zes apenas no valor de um salário-mínimo vigente. Como é crível a difícil realidade para pessoas sem limitações, não é neces- sário nem repisar o que as pessoas com deficiência e a sua família têm que encarar para conseguir se manter com algum resquício de dignidade humana. Aqui, cada caso, um contexto diferente, uma peculiaridade; cada detalhe a mais, uma dificuldade acrescentada, uma despesa aumentada. E não é raro, nesse contexto, não estarem presentes muitos daqueles direitos sociais mínimos pre- ceituados que o salário-mínimo visa garantir e deve assegurar, excluindo-lhes, assim, antecipadamente, a titularidade de tais direitos, em completo menoscabo a sua condição de cidadão. Ora, quando antes de se alegar do possível assistencialismo que advenha da concessão de algum benefício de cunho assistencial, o que deve se verificar é que não há ainda políticas públicas sérias e consistentes que possam conduzir o indivíduo ao encontro de um meio de incluí-lo socialmente, para não se criar esta dependência do Estado Social; sabendo que o alijamento dessas pessoas com deficiência ultrapassa a esfera de mera superação de barreiras arquitetônicas. Ademais, o envolvimento da família para servir de suporte para lhes criar condições mínimas que sejam, não raro impõe a presença constante de algum membro para lhes prestar os cuidados habituais, excluindo este involuntária e obrigatoriamente de participar do mercado de trabalho e da percepção dos direitos decorrentes da relação de emprego e dos benefícios previdenciários destas provenientes. Em outra banda, a concessão do benefício que aqui se trata possibilita indiretamente ao indivíduo, mesmo que remota, a tranqüilidade de que, en- quanto estiver precisando, poderá fazer uso deste direito para buscar condições de se recuperar e aperfeiçoar, a fim de se situar no futuro, condigna e verdadei- ramente, no contexto social e econômico de seu País. Numa última instância, o fato é que, por si só, a existência do precitado benefício já traz a segurança e o 195 conforto interior à pessoa com deficiência de que ela não estará desamparada quando se encontrar em estado de penúria ou miserabilidade, nem quando sua família não puder provê-la, mesmo que não vá fazer uso deste direito. 2. O conceito de miserabilidade Este direito ao benefício de prestação continuada foi engendrado pela Constituição Federal de 1988, quando, em seu Art. 203, inciso V, garantiu à pessoa com deficiência e ao idoso que comprovarem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família o direito de perceber um salário-mínimo mensal, na forma disposta em lei. Sua regulamentação legal veio por meio dos Arts 20 e 21, da Lei nº 8.742, de 1993, conhecida Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), a saber: Art. 20. O benefício de prestação continuada é a garantia de 1 (um) salário mínimo mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso com 70 (setenta) anos ou mais e que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção e nem de tê-la provida por sua família. § 1º Para os efeitos do disposto no caput, entende-se como família o conjunto de pessoas elencadas no art. 16 da Lei n.º 8.213, de 24 de julho de 1991, desde que vivam sob o mesmo teto. (nova redação dada pela Lei n.º 9.720/98) § 2º Para efeito de concessão deste benefício, a pessoa portadora de deficiência é aquela incapacitada para a vida independente e para o trabalho. § 3º Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo. § 4º O benefício de que trata este artigo não pode ser acumulado pelo beneficiário com qualquer outro no âmbito da seguridade social ou de outro regime, salvo o da assistência média. § 5º A situação de internado não prejudica o direito do idoso ou do portador de deficiência ao benefício. § 6º A concessão do benefício ficará sujeita a exame médico pericial e laudos realizados pelos serviços de perícia médica do Instituto Nacional do Seguro Social - INSS. (nova redação dada pela Lei nº 9.720/98.) § 7º Na hipótese de não existirem serviços no município de residência do beneficiário, fica assegurado, na forma prevista em regulamento, o seu encaminhamento ao município mais próximo que contar com tal estrutura. (nova redação dada pela Lei nº 9.720/98.) § 8º A renda familiar mensal a que se refere o § 3º deverá ser declarada pelo requerente ou seu representante legal, sujeitando-se aos demais procedimentos previstos no regulamento para o deferimento do pedido.” (nova redação dada pela Lei nº 9.720/98.) 196 Art. 21. O benefício de prestação continuada deve ser revisto a cada 2 (dois) anos para avaliação da continuidade das condições que lhe deram origem. § 1º O pagamento do benefício cessa no momento em que forem superadas as condições referidas no “caput”, ou em caso de morte do beneficiário. § 2º O benefício será cancelado quando se constatar irregularidade na sua concessão ou utilização. Assim sendo, a lei em espeque fixou objetivamente em dois os requisitos para a concessão do mencionado benefício: a pessoa ser idosa e/ou com defici- ência e ser incapaz de prover a própria manutenção e nem de tê-la provida por sua família, presumindo essa incapacidade aquela família cuja renda mensal per capita seja inferior a ¼ (um quarto) do salário-mínimo. Não obstante, constatou-se que a adoção exclusiva de critérios objetivos para aferir a realidade de cada pleiteante, quando estão nos subjetivos os maio- res justificadores para a sua concessão ou não, proporciona ao final a iniqüidade e a exclusão de beneficiários legítimos, quando não a inclusão de ilegítimos, sem olvidar de que também esvaece e esvazia o conteúdo do Art. 203, inciso V, da Constituição Federal, restringindo ao final a sua eficácia. Por conta disso, houve questionamento por toda a parte acerca da constitucionalidade do dispositivo legal que criou e estabeleceu os parâmetros objetivos para aplicabilidade do mencionado direito constitucional, quer dizer, o § 3º do Art. 20, da Lei nº 8.742/93, sendo reconhecida finalmente pelo Supremo Tribunal Federal sua constitucionalidade (ADI 1.232-DF). Neste julgado, restou confirmado também que, tal qual dispõe a lei, a situ- ação de miserabilidade do requerente, que tem a renda per capita de sua família inferior a ¼ (um quarto) de salário-mínimo, quando de plano comprovada, ocorre seu enquadramento automático, por decorrer de uma presunção juris et de jure. No entanto, no teor do voto do relator vencido (que acabou por não ser nesse aspecto rebatido), valendo-se da técnica de não declarar a inconstitucionalidade do referido dispositivo legal vergastado e, emprestando- lhe interpretação conforme a Constituição, deixou entrever, que, além dessa presunção legal de miserabilidade, existe a possibilidade de serem comprova- dos por diferentes meios outros casos de efetiva falta de recursos, com os quais a pessoa com deficiência possa prover sua própria manutenção ou tê-la provida por sua família. Em suma, a lei criou uma presunção juris et de jure de miserabilidade, que, quando de pronto identificada, não necessita qualquer outra comprovação; mas, a par, a jurisprudência pátria acabou por se direcionar e se assentar no mesmo sentido eliciado do voto vencido, permitindo a utilização de outros 197 meios para se comprovar a situação de miserabilidade da família, daí se valendo de dados mais subjetivos na avaliação. A exemplificar, o seguinte e ilustrativo julgado: PREVIDENCIÁRIO. ASSISTÊNCIA SOCIAL. INCISO V DO ART. 203 DA CF/ 88. BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA. ART. 20 DA LEI 8.742/93. REQUISITOS ATENDIDOS. TERMO INICIAL. ATUALIZAÇÃO DAS PARCELAS DEVIDAS. HONORÁRIOS. 1. A atual Constituição Federal, em seu art. 203, inciso V, dispôs sobre a criação de uma verba de natureza assistencial para a manutenção das pessoas que não possuem condições de prover seu próprio sustento, em razão da idade ou por serem portadoras de invalidez, no valor de um salário mínimo. 2. A Lei Orgânica da Assistência Social, Lei 8.742, de 07.12.1993, dispõe que a assistência social “é direito do cidadão e dever do Estado, sendo política de Seguridade Social não contributiva, que prevê os mínimos sociais, realizada por um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade para garantir o atendimento às necessidades básicas”. 3. Em seu art. 20, caput, a Lei 8.742/93 dispõe que “o benefício de prestação continuada é a garantia de 1(um) salário mínimo mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso com 70 (setenta) anos ou mais e que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção e nem de tê-la provida por sua família”. 4. A jurisprudência desta Corte entende que para fins de obtenção do benefício de prestação continuada, é de caráter meramente objetivo a renda familiar de ¼ do salário mínimo, podendo o julgador, mediante a aferição de outros meios de prova, avaliar a impossibilidade financeira ou a condição de miserabilidade da família do necessitado. (REO 2001.01.99.033442-0/MG, Rel. Desembargadora Federal Assusete Magalhães, Rel. Conv. Juiz Federal Velasco Nascimento, Segunda Turma do TRF 1ª Região, DJ de 25/11/2002, p. 143). 5. Comprovada a deficiência da autora e a total impossibilidade de prover o próprio sustento, ou por meio de seus familiares, correta a sentença que lhe deferiu o benefício de prestação continuada. 6. Existindo requerimento administrativo, a data do benefício há de ser fixada a partir deste, segundo entendimento jurisprudencial desta Corte (AC 2002.01.99.041535-0/MG, Relator Desembargador Federal Antônio Sávio de Oliveira Chaves, Primeira Turma, DJ/II de 03/02/2002, p. 173, entre outros). 7. Os débitos relativos a benefício previdenciário, vencidos e cobrados em juízo após a vigência da Lei nº 6.899/81, devem ser corrigidos monetariamente na forma prevista nos termos das Súmulas 148 do STJ e 19 desta Corte, qual seja, a partir do vencimento de cada parcela. 8. Os juros de mora incidem, em sede de benefícios previdenciários, a partir da citação válida (Súmula 204 do STJ), no percentual de 1% ao mês, 198 tendo em vista a aplicação da orientação jurisprudencial do colendo Superior Tribunal de Justiça a respeito do assunto (REsp 370.615/AL, Rel. Min. Félix Fisher, DJ/I de 26.02.2002), seguida por esta Turma (AC 1999.01.00.048004-9/MG, Relator Convocado Juiz Federal Reynaldo Soares da Fonseca, Primeira Turma, DJ/II de /06/2002, p.36). 9. A singeleza da causa reclama honorários de advogado no percentual de 10% (dez por cento) sobre o valor das restações vencidas, até a prolação da sentença, de acordo com o art. 20 do CPC e Súmula 111 do STJ. Neste Tribunal, a orientação das 1ª e 2ª Turmas, a respeito do assunto, é a mesma (AC 2002.01.99.046104-2/MG, Rel. Desembargador Federal Luiz Gonzaga Barbosa Moreira, DJU/II de 09/08/2002 e AC 2001.01.99.026241- 6/MG, Rel. Desembargadora Federal Assusete Magalhães, DJU/II de 16/ 06/2002). Em que pese tal entendimento, ante a proibição reformatio in pejus, os honorários devem ser mantidos nos termos da sentença. 10. Apelação do INSS improvida. Remessa oficial, tida por interposta, parcialmente provida. Sentença reformada, em parte. (AC 200134000201594/ DF – TRF 1ª Região, 1ª Turma, DJ 15/09/2003). Essa posição, por felicidade, como deve ser digna de nota, de se poder aferir a condição de miserabilidade por critérios mais subjetivos, além dos obje- tivos delineados pela lei, pacificou-se de tal maneira, que, de lege ferenda, o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Projeto de Lei do Senado nº 6/2003), in fieri, consagrá-los-á obliquamente ao prever no Art. 56, § 2º: § 2º. Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência a família cuja renda mensal per capita seja inferior a ½ (meio) salário-mínimo, assim estabelecido como critério objetivo. E com a necessidade de se avaliar também por critérios subjetivos, parti- cularizando cada caso, a análise contextual pormenorizada das condições sócio- econômicas da família, especialmente constatadas pelo serviço de assistência social do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), assumiu daí grande relevo, para se buscar efetivamente uma compreensão mais ampla e justa da realidade da pessoa com deficiência e de sua família. No laudo sócio-econômico, a título de menção breve, são destacados gastos com moradia, com higiene, com alimentação, com medicamentos, com transpor- te; as condições e localização da moradia; a necessidade de cuidados diretos da- dos por outro membro da família; a qualidade do emprego e do trabalho dos integrantes da família, quer dizer, se tem caráter de continuidade, se é formal etc. Todavia, com pesar, é constante tais pareceres não refletirem verdadeira- mente aquela realidade que se quer alcançar e compreender. A uma, porque não é raro os integrantes da família e vizinhos inovarem artificialmente e fanta- siarem a própria imagem de penúria e miséria, mascarando o real contexto; a duas, de quando vez, encontra-se este desfigurado pela própria análise da assis- 199 tente social, ao se sensibilizar além do que deveria com as lamúrias nos depoi- mentos, criando a partir daí estados mentais de uma situação não encontrada; a três, por vezes, há também grande rigor por conta de alguns assistentes sociais em apreciar a situação concreta, excluindo assim legítimos pretendentes. A falta de uma melhor padronização e objetividade1 nesses pareceres socioeconômicos conduz a um enfraquecimento da presunção de veracidade que os mesmos devem portar, sem faltar serem feitos por integrantes do qua- dro do INSS, trazendo daí embutida em seu âmago, certa carga de parcialidade que a faz perder um pouco de sua legitimidade. Com isso, da forma como são feitos atualmente, e por contarem os juízes apenas com tais pareceres, estes fazem com que os julgadores, por vezes, avaliem fria e matematicamente, com lentes de desconfiança que distanciam mais a possibilidade de um legítimo necessitado ter seu direito ao benefício reconhecido. Alguns juízes, tentando visualizar mais ou menos o panorama sócio-eco- nômico da família, a partir dos dados colhidos (muitas vezes mal colhidos) pelo assistente social junto às famílias, realizam cálculos estimativos baseados em suposições irreais, deturpando todo contexto verdadeiro. Daí por que é de todo sugestivo, e até recomendável, em alguns casos – até sobrevenha uma padro- nização mais adequada de tais pareceres –, a indicação de um perito assistente social de confiança do julgador, ou pertencente ao quadro da Justiça Federal, para realizá-los. Evita-se, com isso, este rosário de vícios e equívocos, servindo inclusive como complemento ao parecer da assistência social do INSS, além de trazer mais credibilidade, segurança e precisão ao julgado, resguardando, por último, de serem proferidas decisões injustas ou ilegais. Ressai daí também maior legitimação ao colhido, posto que as partes poderão deduzir seus quesitos e definir os pontos controversos a serem aclarados. Se realizados na brevidade que se espera, e determinada pelo juiz, decer- to tal providência não afetará de modo algum o princípio da celeridade nos Juizados Especiais Federais. Seu uso mais comedido é recomendado, especial- mente para se valer quando em questão alguns casos em que há obscuridade, dúvida, contradição e omissão por parte do parecer do INSS. Quando se faz uma análise do valor dessa avaliação realizada, vê-se que ela ultrapassa a linha do mero enquadramento no dispositivo legal, ou da inten- ção de se perquirir acerca da apontada miserabilidade. O substrato desta avalia- ção permite, quanto maior for seu detalhamento e mais padronizado, um maior conhecimento da realidade micro e macro social daquele grupo, munindo o Estado-juiz em suas decisões e o Estado-administrador para se canalizar políticas públicas que trarão maior dignificação a tais pessoas. 200 Por oportuno, quando aqui se refere a cálculos matemáticos, não se quer rechaçá-los, apenas contestar quando são só usados como referência para aferir um contexto de necessidade – inclusive é de todo recomendável utilizá-los como um ponto de partida. Mas, partindo daí, deve-se somar outros elementos para conhecer melhor aquele real contexto individual e familiar e não ocasionar injustiça. É interessante que se usados exclusivamente os cálculos proporcionam não só desvantagens aos requerentes, mas também vantagens, supondo situa- ções talvez não enquadráveis. A exemplificar, há quem entenda que para se verificar o quantitativo da renda per capita, deve-se realizar a exclusão anteci- pada do valor de um salário-mínimo da renda bruta familiar, como um quantita- tivo constitucional reservado à pessoa com deficiência que a família teorica- mente deva prover, chegando a uma renda líquida familiar, que é tomada no cálculo como dividendo para se aferir aquele quociente de ¼ (um quarto) de salário mínimo per capita. Colocado em números tal entendimento, numa situação fictícia qualquer, seria o seguinte: a renda bruta de uma família é de R$ 800,00; excluindo o salário-mínimo devido à pessoa com deficiência, no valor de hoje de R$ 350,00, resta de renda líquida o valor de R$ 450,00, que deverá ser dividida pela quan- tidade de integrantes da família, a fim de se encontrar a renda per capita. Embora não prevista em lei, mas podendo dela teleologicamente extraí- la, essa regra traz enormes vantagens para os requerentes, especialmente se agregar gastos fixos que a família possui, reduzindo mais ainda aquela renda familiar líquida. Porém, causa um enorme prejuízo para a sociedade, porque elastece demais, senão afrouxa, o requisito para concessão do benefício, saben- do que a mesma regra será utilizada no caso do idoso. Fatalmente, o método interpretativo axioteleológico usado para compre- ender tal requisito, quiçá também o sistemático, leva a um resultado por demais inconveniente aos interesses sociais, gerando desestímulo não só a quem rece- be, quando evidentemente tem possibilidade de reingresso ao palco social, mas também a que paga a conta, sabendo que há tantos outros programas de bolsa assistencial paralelos ao benefício. Como é também cediço, o cobertor para acolher os necessitados é curto. E, conduzindo de tal maneira, o julgador propiciará injustiça a quem recolhe aos cofres públicos e aos que esperam também por algum amparo ainda não reco- nhecido legalmente, porquanto estarão incluídos no rol de beneficiados outras tantas pessoas que a lei efetivamente não quis acolher e não enfeixados na abertura já dada pela jurisprudência assentada nos Tribunais, estimulando o assistencialismo a quem não merece e retirando das costas da família a carga do dever de prestar a mútua assistência. 201 A solidariedade não pode ser confundida com assistencialismo. O auxílio a quem necessita deve estar preso a meios que propiciem seu posterior desliga- mento, que construam alicerces para que aquela pessoa tenha sua auto-estima resgatada e enaltecida, e que possibilitem sua reintegração ou inclusão no con- texto social; deve se verificar o que falta para que aquela pessoa que hoje pleiteia, se é possível dentre as limitações que lhe são impostas, possa, tão logo ou futuramente, participar das relações sociais, o pode ser muito bem constata- do no parecer do INSS. Nesse parecer, além das alterações necessárias para lhe imprimir maior objetividade e padronização, ao invés de apenas estarem dados sócio-econômi- cos do avaliado e de sua família, pode se inserir questionamentos que avaliem seu grau de instrução, atividades laborais que já tenha exercido, extraídas obri- gatoriamente da Carteira de Trabalho e Previdência Social, suas habilidades, propensões e pretensões para seguir numa carreira técnica qualquer e outros elementos que consigam traçar suas vocações. Esses dados colhidos servirão como informações tanto para avaliação da situação sócio-econômica do requerente, quanto para encaminhamento aos ór- gãos públicos e às associações representativas para redirecionarem-no a alguma atividade instrutiva ou de reabilitação para readequação laboral, conforme sua peculiar situação, sem faltar serem dados essenciais para formulação de estatís- tica para orientação e condução de políticas públicas. Analisemos: atualmente, o requisito é ¼ de salário mínimo, mas, de lege ferenda, com a vinda do tão festejado e também rebatido Estatuto da Pessoa com Deficiência2, esse quociente percentual de renda mínima per capita saltará ao patamar de ½ salário mínimo, ocasionando um inchaço desproporcional à capacidade estatal de custeio e pagamento de tais benefícios, de acordo com as receitas obtidas. Daí por que se reprova aqui uma avaliação cartesiana, quer para mais, quer para menos, sem considerar todo o contexto fático. A propósito, com a vinda do mencionado Estatuto, a leitura feita pela jurisprudência acerca da possibilidade de inclusão de critérios subjetivos no exa- me dos requisitos para concessão do benefício, será mantida, pois como poderá se verificar na norma logo acima colacionada, a renda per capita mensal passará a ser legalmente considerada como critério objetivo, deixando entrever aí, como corolário, a possibilidade de se utilizar critérios subjetivos. Finalmente, o assentamento desse entendimento em regra, mesmo que deduzido, enfraquece qualquer debate da existência de outras regras objetivas que propiciem elastecimento ou restrição, também fortalece a necessidade de que qualquer verificação acerca da miserabilidade tem que estar presa ao real e 202 ao verdadeiro, notadamente quando o conceito de deficiência, que é relativo e fluído, como veremos, está a depender da conjunção e da inter-relação de vários fatores, que variam necessariamente caso a caso. 3. O conceito de pessoa com deficiência O que vem ser a pessoa com deficiência para se fazer jus ao benefício? O § 2º, do Art. 20, acima citado, reputa ser pessoa com deficiência, para efeito de concessão deste benefício, aquela incapacitada para a vida indepen- dente e para o trabalho, atrelando, pois o conceito de deficiência a este especí- fico de incapacidade. Por sua vez, no Decreto nº 3.298, de 1999, em seu Art. 3º, considera defici- ência toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisioló- gica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, den- tro do padrão considerado normal para o ser humano, definindo logo a seguir o que é incapacidade: uma redução efetiva e acentuada da capacidade de integração social, com necessidade de equipamentos, adaptações, meios ou recursos especi- ais para que a pessoa portadora de deficiência (sic.) possa receber ou transmitir informações necessárias ao seu bem-estar pessoal e ao desempenho de função ou atividade a ser exercida, estando arroladas, exemplificativamente, em seu Art. 4º, algumas modalidades ou categorias de deficiência. Diante de conceitos aparentemente distintos, resta resolver a questão: qual deles deve ser o utilizado para considerar um indivíduo como pessoa com deficiência, a fim de se enquadrar na moldura legal para obtenção do benefício? É possível conciliá-los? Na verdade, a conciliação de diversos dispositivos legais é o que se reco- menda na interpretação, já que o sistema jurídico deve ser entendido como um todo harmônico. Todavia, a interpretação para auxiliar a lei atingir o fim social para o qual foi designada deve ser feita também em consonância com as nor- mas e definições técnicas específicas que tratam da matéria. Então, como subsí- dio interpretativo fundamental, deve ser trazida aqui a conceituação dada pela Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde – CIF. A CIF define deficiência como problemas nas funções fisiológicas dos sistemas orgânicos, incluindo as funções psicológicas, ou nas estruturas do cor- po, que são as partes anatômicas do corpo, tais como, órgãos, membros e seus componentes, não estando vinculado diretamente este conceito ao de incapa- cidade, pois que nem sempre o problema na função afetada trará incapacidade, ou quando trouxer, estará restrita a algumas situações. Segundo essa classificação, a funcionalidade e a incapacidade de uma pes- soa são concebidas como uma interação dinâmica entre os estados de saúde 203 (doenças, perturbações, lesões, traumas etc.) e os fatores contextuais, fatores estes que englobam os de ordem pessoal e ambiental (facilitador ou limitador das características do mundo físico, social e atitudinal), relacionando-se com a capaci- dade e o desempenho de certas atividades, conforme o seguinte esquema: Nesse modelo da Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde, a funcionalidade é usada no aspecto positivo e o aspecto negativo corresponde à incapacidade. Dessa maneira, a incapacidade é resultante da interação entre a disfunção apresentada pela pessoa, a limitação de suas atividades e a restrição na participação social, e dos fatores ambientais, como apresentado no esquema acima. Como é logo detectável, e que para alguns não parece óbvio, a incapaci- dade está intimamente relacionada à disfunção existente, afetando exclusiva- mente o desempenho das atividades que dependam da função atingida, não significando dizer que, com o uso de recursos contornáveis (fisioterapia, terapia ocupacional, ajudas técnicas etc.), não possam essas limitações muitas vezes ser superadas, e aquela pessoa possa ser considerada perfeitamente apta para o trabalho e, em condições plenas para a vida independente. Exemplificando: ter uma deficiência auditiva, que envolve a incapacidade de ouvir, em menor ou maior grau, não significa existir a incapacidade de raci- ocinar, compreender e de se comunicar, nem sequer a impossibilidade de rea- lização de atividades que não necessitem da audição, ou até mesmo daquelas que desta função dependam, desde que haja meios para sobrepujar os obstácu- los da disfunção, ou da não função. 204 Com isso, entende-se como incapacidade, para efeito de concessão do be- nefício de prestação continuada, aquela verdadeira situação de comprometimen- to para praticar atos da vida cotidiana ou para trabalhar, mesmo que não perma- nente e passível de reversão; não se olvidando também, que, havendo a possibi- lidade relativa de se exercer imediatamente alguma atividade laboral, ela deve ser considerada como não preenchedora do conteúdo semântico da norma. Quer dizer, a pessoa que não tiver condições de praticar atos da vida inde- pendente3, pois que dependente constantemente de outra pessoa para auxiliá-lo em suas atividades mínimas diárias, e tiver formação educacional e cultural para obter um emprego, por exemplo, na área de computação, ou seja, capacitada para o trabalho, não poderá ser considerada como tal para pleitear o benefício? Ora, acreditamos que deverá sim ser considerada como pessoa que pre- enche o mencionado requisito para obtenção do benefício. Conquanto sua inca- pacidade para o trabalho seja parcial e não definitiva, a concessão e a manuten- ção do benefício têm a ver com a sua subsistência e o atendimento de suas necessidades vitais diárias, até que o beneficiário consiga um emprego segundo sua formação na área capacitada para promover seu próprio sustento4, impon- do o encaminhamento do caso ao órgão público competente para verificar a disponibilidade de vagas. Outro caso é o daquela pessoa que ficou paraplégica, em razão de uma lesão medular decorrente de um acidente, e que nunca teve instrução ou se teve, a formação educacional foi ínfima. Embora tenha condições de praticar atos da vida independente, teoricamente está incapacitada para o trabalho. Po- derá ser considerada como tal para pleitear o benefício? A resposta é afirmativa, porquanto, como visto, a incapacidade deve ser apreciada num aspecto mais amplo, e a limitação decorrente da sua má ou nenhuma formação educacional, impõe-lhe restrições severas para que seja incluído em alguma atividade laboral com ela compatível, merecendo o mesmo encaminhamento para algum órgão público para condicioná-lo em atividade técnico-acadêmica. O conceito de pessoa com deficiência, tal qual colocado como requisito para concessão do referido benefício, deve ser considerado atendido quando ocorrer qualquer uma das limitações que a lei expôs, ou seja, quer exista a incapacidade para a vida independente, quer para o trabalho; não podendo deixar de ter em mente que, para os fins do Art. 20, da Lei Orgânica de Assistên- cia Social, essa incapacidade é sempre resultante da interação entre a disfunção apresentada pela pessoa, a limitação de suas atividades e a restrição na partici- pação social, e os fatores ambientais. 205 Com o intuito de reforçar o entendimento, é interessante o seguinte julgado: Trata-se de pedido de uniformização de jurisprudência no qual o Instituto Nacional do Seguro Social aponta a divergência jurisprudencial relativa à demonstração do requisito legal de incapacidade laborativa e para a vida independente. Observo, na espécie, que esta Turma Nacional já se manifestou acerca do tema por ocasião do julgamento do incidente de uniformização nº 2004.30.00.702129-0, de minha relatoria, em que restou assentado, verbis: “PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. COMPROVAÇÃO DE INCAPACIDADE. CONCEITO DE VIDA INDEPENDENTE. LEI Nº 8.742/93. 1. O conceito de vida independente da Lei nº 8.742/93 não se confunde com o de vida vegetativa, ou, ainda, com o de vida dependente do auxílio de terceiros para a realização de atos próprios do cotidiano. 2. O conceito de incapacidade para a vida independente, portanto, deve considerar todas as condições peculiares do indivíduo, sejam elas de natureza cultural, psíquica, etária – em face da reinserção no mercado do trabalho – e todas aquelas que venham a demonstrar, in concreto, que o pretendente ao benefício efetivamente tenha comprometida sua capacidade lato sensu produtiva. 3. A interpretação não pode ser restritiva a ponto de limitar o conceito dessa incapacidade à impossibilidade de desenvolvimento das atividades cotidianas. 4. Incidente de uniformização improvido.” Face ao exposto, diante do precedente jurispudencial acima citado, NÃO ADMITO o incidente de uniformização. (JEF - PEDIDO DE UNIFORMIZAÇÃO DE INTERPRETAÇÃO DE LEI FEDERAL, Processo 2004.71.95.00.38438, Turma Nacional de Uniformização, DJU 6/7/2005, Relator Juiz Federal Wilson Zauhy Filho). Com efeito, a deficiência apontada no pleito não deve ser necessariamen- te aquela arrolada no Art. 4º, do Decreto nº 3.298, de 1999, posto que este artigo apenas agrupa exemplificativamente determinadas categorias de defici- ência, representando, de certa maneira, um conceito de deficiência stricto sensu, deixando em aberto a inserção de outras categorias que se enquadrem nos conceitos de incapacidade dados pelo Art. 3º, do mesmo Decreto, e pelo Art. 20, da Lei nº 8.742, de 1993. Consoante esse entendimento, não se restringe indevidamente o alcance da lei que criou o mencionado benefício, sabendo que esta visa exata e precipuamente garantir o respeito à dignidade da pessoa e o atendimento às suas necessidades básicas, e rende homenagens a seus princípios, objetivos e diretrizes, evitando quedarem excluídos, de antemão, injustamente, outros tan- tos e inúmeros casos de um vasto universo da medicina, e não compreendidos explicitamente pelo legislador. 206 A exemplificar, tem-se o caso de uma pessoa soropositiva em estágio avançado da doença, que não tenha mais condições físicas de ter vida indepen- dente ou de trabalhar, que nunca trabalhara no mercado de trabalho formal, e que necessita constantemente de maiores cuidados diários, para continuar sen- do mantida e ter um mínimo para sua subsistência, pois que ela enquadra-se no conceito supracitado. Nessa esteira de raciocínio, tal entendimento deve ser o mesmo a ser compartilhado para se compreender o alcance da conformidade dos Arts. 55 e 56 com o Art. 2º 5, do futuro Estatuto das Pessoas com Deficiência (Projeto de Lei do Senado nº 06/2003), visto que, neste próprio Art. 55, determina-se que a assistência social à pessoa com deficiência seja prestada com base nos princípi- os e diretrizes da Lei Orgânica da Assistência Social. Por último, é mister tratar de uma peculiaridade que a abertura do concei- to propicia: a criança e o adolescente gozam per se da presunção legal de não ter a capacidade para a vida independente ou trabalho, inclusive há vedação constitucional quanto a qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos (Art.8º, XXXIII, Constituição). Como resolver tal paradoxo? Para início de interpretação, poderia se valer da combinação do Art. 3º, do Decreto nº 3.298, de 1999, com o Art. 20, da Lei Orgânica de Assistência Social, desde que não advenha interpretação restritiva desautorizada, ou seja, aquela que fira a mens legis, que é a de propiciar o resgate de um segmento da sociedade carente de acesso às políticas públicas, fadado que são desde o nas- cimento ao esquecimento e ao isolamento social. Certamente o núcleo essencial da norma restará atendido, se o espírito do intérprete estiver imbuído do conceito conglobante de incapacidade como apre- sentado, qual seja aquele resultante da interação entre a disfunção apresentada pela pessoa, a limitação de suas atividades, a restrição na participação social, e os fatores ambientais condicionantes. 4. Conclusão Pode-se verificar o quanto é importante e deve ser particularizada a análise das condições da pessoa que requer o benefício de prestação continuada, visto que está nos detalhes a verdadeira caracterização, tanto da situação de miserabilidade apontada, quanto da incapacidade para a prática de atos da vida independente e para o trabalho, bosquejando o papel importante da perícia médica e do assisten- te social nesse contexto para não conduzir a injustiças de nenhum lado. A razão disso se encontra na própria opção que passou a preponderar ao se averiguar os critérios para concessão de benefícios, pois se deu primazia na 207 análise aos critérios subjetivos. E essa opção, querendo ou não, requer maior esmiuçamento e busca de minúcias para bem compreender o contexto e a real necessidade do pleiteante, deixando às claras o porquê de não aproveitá-los também para canalizar tais resultados em direção de algo que verdadeiramente possa tornar essa pessoa produtiva e útil, quando houver essa possibilidade. Poderão estar reconhecidos no laudo médico ou no relatório da assistente social, sendo que este último poderia ser resultado de uma comissão multidisciplinar (psicólogo, pedagogo, fisioterapeuta, terapeuta ocupacional, médico fisiatra e, é claro, assistente social), dados essenciais que podem traçar o perfil daquela pes- soa e suas carências (o próprio benefício, qualificação técnica, reabilitação etc.) e tudo o que possa ser útil ao reconhecimento daquela peculiar situação. Qualquer que seja o resultado dessa análise deve ter o condão de propi- ciar a participação do indivíduo como cidadão, e não apenas reduzi-lo a um eterno necessitado do braço estatal e do colo da sociedade; deve fazer com que ele reconheça seu indispensável papel para maior engrandecimento de todos e desta última. Daí, deverão ser inseridos dados maiores que permitirão traçar um quase perfeito perfil daquela pessoa, a fim de que se construam os sustentácu- los para sua contribuição nessa jornada evolutiva. Noutro plano, os órgãos públicos de qualquer esfera governamental de- verão firmar convênios para criar uma rede participativa que possibilite a consa- gração do verdadeiro espírito federativo de cooperação e colaboração. Nessa rede, a troca de informações e de encaminhamentos será de vital importância não só para essa política pública de assistência social, mas para tantas outras que não necessariamente de natureza assistencial. A conclusão que se alcançará é que se atenderá tanto mais os interesses da sociedade, dos que necessitam e das entidades governamentais e não-go- vernamentais, dando efetividade ao preconizado constitucionalmente, sem es- quecer que facilitará a aplicação da comentada Lei Orgânica de Assistencial Social, como de outros vários instrumentos legais, inclusive a proposta de futuro Estatuto da Pessoa com Deficiência, que em alguns aspectos inovará. Notas 1 A objetividade que aqui se refere é a ausência de subjetividade por parte do avaliador, para se extrair qualquer conteúdo emocional ou passional; está interligada à idéia de esvaziamento de sentimentos quando da avaliação, especialmente porque estarão em averiguação dados pessoais e familiares. 2 Art. 56. Às pessoas com deficiência que não possuam meios para prover sua subsistência, nem de tê-la provida por sua família, é assegurado o benefício mensal de 1 (um) salário – mínimo, nos termos da Lei Orgânica da Assistência 208 Social. § 1º O benefício assistencial já concedido a qualquer outro membro da família, seja pessoa com deficiência ou idosa, não será computado para os fins do cálculo da renda familiar per capita a que se refere a Lei Orgânica da Assistência Social. § 2º Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência a família cuja renda mensal per capita seja inferior a ½ (meio) salário- mínimo, assim estabelecido como critério objetivo. § 3º A cessação do benefício de prestação continuada concedido à pessoa com deficiência, inclusive em razão de seu ingresso no mercado de trabalho, não impede seu restabelecimento, desde que atendidos os demais requisitos estabelecidos. 3 A propósito, a Turma Nacional de Uniformização chegou a editar o seguinte enunciado: Sumula nº 29 - Para os efeitos do art. 20, § 2º, da Lei n. 8742, de 1993, incapacidade para a vida independente não é só aquela que impede as atividades mais elementares da pessoa, mas também a impossibilita de prover ao próprio sustento. 4 O parágrafo 3º, do Art. 56, do futuro Estatuto das Pessoas com Deficiência, possibilita o restabelecimento do benefício de prestação continuada cessado em virtude de ingresso no mercado de trabalho, desde que preenchidos os demais requisitos. g) lazer; e V – Surdo - cegueira: compreende a perda concomitante da audição e da visão, cuja combinação causa dificuldades severas de comunicação e compreensão das informações, prejudicando as atividades educacionais, vocacionais, sociais e de lazer, necessitando de atendimentos específicos, distintos de iniciativas organizadas para pessoas com surdez ou cegueira. VI - Autismo: comprometimento global do desenvolvimento, que se manifesta tipicamente antes dos três anos, causando dificuldades significativas de comunicação, interação social e de comportamento, caracterizando-se freqüentemente por movimentos estereotipados, atividades repetitivas, respostas, mecânicas, resistência a mudanças nas rotinas diárias ou no ambiente e a experiências sensoriais. VII - Condutas Típicas: comprometimento psicosocial, com características específicas ou combinadas, de síndromes e quadros psicológicos, neurológicos e/ou psiquiátricos, que causam atrasos no desenvolvimento e prejuízos no relacionamento social, em grau que requeira atenção e cuidados especificas VIII - Lesão Cerebral Traumática: compreende uma lesão adquirida, causada por força física externa, resultando em deficiência funcional total ou parcial ou deficiência psicomotora, ou ambas, e que comprometem o desenvolvimento e/ o desempenho social da pessoa. IX - Deficiência Múltipla: compreende a associação de duas ou mais deficiências, cuja combinação acarreta comprometimentos no desenvolvimento global e desempenho funcional da pessoa e que não podem ser atendidas em uma só área de deficiência. § 1º Para efeitos da presente lei equipara-se a pessoa superdotada à pessoa com deficiência, sendo superdotada a pessoa que apresenta notável desempenho e elevada habilidade de natureza intelectual, física, social e de liderança em uma ou mais áreas da atividade humana. § 2º Entende-se como deficiência permanente aquela que ocorreu ou se estabilizou durante um período de tempo suficiente para não permitir recuperação ou ter probabilidade de que se altere, apesar de novos tratamentos. 5 Art. 2º Considera-se deficiência toda restrição física, mental ou sensorial, de natureza permanente ou transitória, que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades essenciais da vida diária e/ou atividade remunerada, estando enquadrada em uma das seguintes categorias: I - Deficiência Física - alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando 209 limitação da função física, apresentando-se sob a forma de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, ostomia, amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral, nanismo, membros ou face com deformidade congênita ou adquirida; II - Deficiência Auditiva - perda bilateral, parcial ou total média de 41 dB (quarenta e um decibéis) ou mais, aferida por audiograma nas freqüências de 500HZ, 1.000HZ, 2.000Hz e 3.000Hz; III - Deficiência Visual - compreende a cegueira, na qual a acuidade visual é igual ou menor que 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; a baixa visão, que significa acuidade visual entre 0,5 e 0,05 no melhor olho e com a melhor correção óptica; os casos nos quais a somatória da medida do campo visual em ambos os olhos for igual ou menor que 60º; ou a ocorrência simultânea de qualquer uma das condições anteriores; IV - Deficiência Mental - funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação no período de desenvolvimento humano e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como: a) comunicação; b) cuidado pessoal; c) habilidades sociais; d) utilização dos recursos da comunidade; e) saúde e segurança; f) habilidades acadêmicas. 210 SEÇÃO VII - CONCURSO PÚBLICO E TRABALHO DIREITO CONSTITUCIONAL DE TER RESERVA DE CARGOS E EMPREGOS PÚBLICOS EM CONCURSOS PÚBLICOS1 Maria Aparecida Gugel Resumo: A reserva de cargos e empregos públicos é medida de ação afirmativa para se atingir a igualdade de oportunidades das pessoas com deficiência. A ação afirmativa prevista na Constituição brasileira também é prevista nas Convenções da OEA e ONU sobre direitos das pessoas com deficiência. Para dar efetividade à ação afirmativa é necessário que o administrador público descreva no edital de concurso público as atividades dos cargos e empregos públicos; indique o número de cargos e empregos públicos e o percentual da reserva; garanta a inscrição do candidato com deficiência, às provas adaptadas, aos locais de prova e ao curso de formação; elabore listas de classificação geral e especial; garanta a nomeação e o estágio probatório orientado por equipe multiprofissional. Palavras chave: pessoa com deficiência, concurso público, reserva de cargos e empregos públicos, ação afirmativa, convenções internacionais. Abstract: The system of quotas in public positions and jobs is a measure of affirmative action to attain equality of opportunities for persons with disabilities. The affirmative action, as listed in Brazilian Constitution, is also part of both the Organization of American States and the United Nations conventions on the rights of the people with deficiency. To ensure effectiveness of the affirmative action it becomes necessary that public contractors provide, in announcements of public competition, a full description of the pretended activities and duties of the positions and jobs; the number of positions and jobs available and percentage of reservation; a guarantee of enlistment for candidates with disability, of access to examinations adequately adapted and to the sites of tests and job training programs; the issuance of lists of approved candidates general and special classification; guarantee of nomination and availability of a period of training during a probatory period under the guidance of a multiprofessional team. Keywords: person with disability, public examinations, quotas for public offices and jobs, affirmative action, international conventions. 211 1. Ordem Constitucional. Concepção Mundial sobre Ação Afirmativa A ordem constitucional de proteção à pessoa com deficiência direciona-se com intensidade ao estabelecer o concurso dos poderes, com competên- cia comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para legislar sobre os cuidados da saúde e assistência pública, da proteção e garantias das pessoas portadoras de deficiência (Arts. 23, II; 24, XIV; 30, II). É claro o objetivo da regra constitucional: promover a inclusão da pessoa com deficiência por meio da ação comum de vários entes políticos e, com isso, rapidamente fornecer-lhes os meios que contrabalancem as desvantagens en- contradas no contexto social de natureza educacional, de saúde, de trabalho, de acessibilidade urbana e em edifícios coletivos e transporte púbicos, de lazer, de esporte, de moradia, e outros de ordem social. O Art. 37, da Constituição da República, dispõe que os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei (inciso I), sendo que a investidura nos mesmos depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração (inciso II). Mais adiante determina que a lei reservará percentual de cargos e empregos públicos para as pessoas por- tadoras de deficiência e definirá os critérios de admissão (inciso VIII). Esse comando de reserva de cargos e empregos públicos esclarece e exemplifica o princípio basilar, locado na Constituição da República no caput, do Art. 5º, do direito à igualdade. Tal comando visa alcançar, por meio da lei, as desigualdades de fato. Com isso, permite ao legislador que identifique os ele- mentos discriminadores, quem são as pessoas, os fatos e as situações a justifica- rem discriminações positivas para que a equiparação seja alcançada. A discriminação positiva, por meio da ação afirmativa, exige do Estado e da sociedade a construção de um ordenamento jurídico que mostre os fins sociais, a proteção dos valores da justiça social e do bem comum, de forma a implementar os comandos programáticos constitucionais do Art. 3º, III - erradicar [...] e reduzir as desigualdades sociais [...]; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos [...] e quaisquer formas de discriminação; Art. 170, VII – redução [...] das desigualdades regionais e sociais. A sociedade mundial preocupada com o direito à igualdade das pessoas com deficiência, admite a existência da desigualdade e reflete a possibilidade da ação afirmativa, reflexos das atuais Convenções sobre direitos das pessoas 212 com deficiência da Organização dos Estados Americanos – OEA e da Organiza- ção das Nações Unidas – ONU. A Convenção da Guatemala2 esclarece sobre a possibilidade de o Estado adotar medidas3 de discriminação positiva que considera necessária para alcan- çar a igualdade de oportunidades: Artigo I – 2. b) Não constitui discriminação a diferenciação ou preferência adotada pelo Estado Parte para promover a integração social ou o desenvolvimento pessoal dos portadores de deficiência, desde que a diferenciação ou preferência não limite em si mesma o direito à igualdade dessas pessoas e que elas não sejam obrigadas a aceitar tal diferenciação ou preferência. Nos casos em que a legislação interna preveja a declaração e interdição, quando for necessária e apropriada para o seu bem-estar, esta não constituirá discriminação. Vê-se reforçada a possibilidade de ação afirmativa pelo Estado no Artigo III, em perfeita consonância com o direito à igualdade e com o atual movimen- to de inclusão social, comprometendo os Estados Parte a tomar medidas de caráter legislativo, social, educacional, trabalhista, ou de qualquer outra nature- za, necessárias a eliminar a discriminação contra as pessoas com deficiência e proporcionar a sua plena integração à sociedade, sob a forma de: Artigo III - 1. a) medidas das autoridades governamentais e/ou entidades privadas para eliminar progressivamente a discriminação e promover a integração na prestação ou fornecimento de bens, serviços, instalações, programas e atividades, tais como o emprego, o transporte, as comunicações, a habitação, o lazer, a educação, o esporte, o acesso à justiça e aos serviços policiais e as atividades políticas e de administração; b) medidas para que os edifícios, os veículos e as instalações que venham a ser construídos ou fabricados em seus respectivos territórios facilitem o transporte, a comunicação e o acesso das pessoas portadoras de deficiência; c) medidas para eliminar, na medida do possível, os obstáculos arquitetônicos, de transporte e comunicações que existam, com a finalidade de facilitar o acesso e uso por parte das pessoas portadoras de deficiência A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, da Organiza- ção das Nações Unidas – ONU4, define as pessoas com deficiência como sendo aquelas: Artigo 1 Persons with disabilities include those who have long-term physical, mental, intelectual or sensory impairments which in interaction with various barriers may hinder their full and effective participation in society on an equal basis with others.5 Um dos princípios gerais que sustenta a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência é a igualdade de oportunidades (Art. 3), admitindo 213 que esta pode ser efetivada por meio de ação afirmativa. É o que se constata no Art. 5, item 4: Artigo 5 Igualdade e não-discriminação 1. Os Estados Partes reconhecem que todas as pessoas são iguais perante e sob a lei e que fazem jus, sem qualquer discriminação, a igual proteção e igual benefício da lei. 2. Os Estados Partes deverão proibir qualquer discriminação por motivo de deficiência e garantir às pessoas com deficiência igual e efetiva proteção legal contra a discriminação por qualquer motivo. 3. A fim de promover a igualdade e eliminar a discriminação, os Estados Partes deverão adotar todos os passos necessários para assegurar que a adaptação razoável seja provida. 4. Nos termos da presente Convenção, as medidas específicas que forem necessárias para acelerar ou alcançar a efetiva igualdade das pessoas com deficiência não deverão ser consideradas discriminatórias. Ao tratar do trabalho e emprego a Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU reconhece o direito à igualdade de oportunidades para um trabalho de sua livre escolha, em ambiente inclusivo e acessível, proi- bindo a discriminação baseada na deficiência quanto à admissão e remuneração e, instando o Estado a empregá-las no setor público (Art. 27). 2. Concurso Público Concurso público é um processo de seleção pública em que se busca o melhor candidato, gerando, portanto, disputa e competição. Por isso, as regras devem estar claramente formuladas, conhecendo-se de antemão quais os ór- gãos que estão obrigados ao concurso público; quais os cargos ou empregos públicos oferecidos e suas respectivas atribuições; que obrigações têm os candi- datos, devendo cumpri-las, de forma a acessar o concurso público e, qual o percentual de reserva de cargos e empregos públicos que tem como destinatá- rio a pessoa com deficiência. Estão obrigadas6 ao concurso público para provimento de seus cargos e empregos públicos aquelas entidades enumeradas no artigo 4º do Decreto-lei no 200, com a redação da Lei no 7.596/87. Essa mesma composição acabou sendo incorporada pela administração dos Estados e Municípios, ou seja: I - Administração direta, que se constitui dos serviços integrados na estrutura administrativa da Presidência da República e dos Ministérios; II - Administração indireta, que compreende as seguintes categorias de entidades, dotadas de personalidade jurídica própria: a) autarquias; b) 214 empresas públicas; c) sociedades de economia mista; d) fundações públicas. A administração pública direta classificada como entidade estatal é com- posta por pessoas jurídicas que integram a estrutura constitucional do Estado: a União, os Estados-membros, o Distrito Federal e os Municípios, com funções públicas especificadas em lei. A administração pública indireta por sua vez é composta por pessoas jurídicas (ou entidades) de direito público – autarquia, fundação, empresa públi- ca e sociedade de economia mista –, criadas por lei, com autonomia política, administrativa e financeira, para a realização de atividades, obras ou serviços. 3. Reserva de Cargos Públicos A Constituição da República assegura a reserva de cargos e empregos pú- blicos para as pessoas com deficiência7, condicionando à lei a definição de critéri- os para a admissão (Art. 37,VIII). Trata-se de comando constitucional a exigir regramento próprio para a sua plena execução, posto que de natureza contida. A Lei no 7.853, editada em 1989, resultado da ação do movimento de pessoas com deficiência da década de 80, veio tratar da política nacional para a integração da pessoa portadora de deficiência com a edificação de direitos con- dicionados à sua capacidade de integração. Não trouxe, no entanto, a necessária eficácia imediata e integral a permitir a sua plena execução, relativamente à reserva de percentual de vagas em cargos e empregos públicos. Manteve-se no patamar de norma declaratória do pleno exercício dos direitos individuais e sociais das pessoas com deficiência, determinando a adoção de legislação espe- cífica que discipline a reserva de mercado de trabalho na administração pública e no setor privado e, por regulamento a organização de oficinas e congêneres integradas ao mercado de trabalho (Art. 2º, III, d). Para o setor privado, dois anos após, editou-se a Lei no 8.213/91 que trata da reserva de postos de trabalho para os beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiências habilitadas em proporções claras de 2% a 5% em empresas com cem ou mais empregados até 1.001, respectivamente, cumprin- do o mandamento do anteriormente citado Art. 2º, da Lei no 7.853/89. A Lei no 8.112/90 disciplina parte do comando constitucional determinan- do que às pessoas com deficiência é assegurado o direito de se inscrever em concurso público para provimento de cargo, em igualdade de condições com os demais candidatos, para provimento de cargo cujas atribuições sejam com- patíveis com a deficiência de que é portador, sendo-lhes reservadas até 20% (vinte por cento) das “vagas oferecidas no concurso” (Art. 5º, § 2º). Não fixou o percentual de reserva sobre o número total dos cargos e empregos públicos 215 existentes em cada órgão, a “reserva real”, de forma que em cada concurso público pudesse o mesmo vir a ser preenchido e, com isso, cumprir a discrimi- nação positiva do Art. 37, VIII da Constituição. A “reserva real” é facilmente obtida aplicando-se um percentual determi- nado, sobre o número efetivo de cargos existentes em cada órgão8. A fixação de reserva até 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas em concurso, conforme dispõe a Lei no 8.112/90, é um parâmetro que deve existir a cada certame público na administração pública direta e indireta. O critério de cálculo de vagas reservadas às pessoas portadoras de defici- ência deve sempre se orientar pela máxima efetividade da norma constitucio- nal, o que somente será atingido se, qualquer que seja o resultado da divisão entre o total de vagas oferecidas e o percentual reservado que resulte em número fracionado for elevado até o primeiro número inteiro subseqüente9, garantindo-se as vagas das pessoas com deficiência10. O edital do concurso público deverá conter cláusula específica e clara a respeito da distribuição das vagas. O percentual que varia de 5% a 20% deve incidir sobre o total das vagas oferecidas, não podendo o administrador indicar quais são os cargos que disponibilizará para pessoas com deficiência alegando, como é muito comum e absolutamente equivocado, a compatibilidade da fun- ção à deficiência ou cargos que exijam aptidão plena. Se o quadro de carreira para o qual está sendo levado o concurso público for estruturado em especialidades, a distribuição das vagas reservadas será feita proporcionalmente ao número de vagas em cada especialidade, de forma que para todos os cargos ou empregos haja previsão explícita de reserva de vagas para pessoa com deficiência. Se, por outro lado, a administração pública vier a disponibilizar uma só vaga, deve antes aferir se já detém em seus quadros um número significativo de servidores com deficiência – se já está cumprindo a reserva, ou não a está cumprindo. Não tendo servidores ou empregados com deficiência em parâmetros razoáveis, deverá destinar esta única vaga para a reserva à pessoa com deficiência, atendendo com isso ao comando constitucional (Art. 37, I, II e VIII) e à Lei no 7.853/89 que determina aos órgãos e entidades da administração pública direta e indireta dispensarem tratamento prioritário e adequado às pes- soas com deficiência (parágrafo único, Art. 2º). Esclareça-se que o administrador não poderá escolher a localidade para destinar as vagas (ou a vaga) reservadas para pessoas com deficiência. A reser- va ocorre sobre o total de vagas ofertadas, incide sobre o quadro de carreira, estando, ou não, estruturado em especialidades. Arredonda-se para o primeiro 216 número inteiro subseqüente se o percentual resultar em fração. O concurso público tem a abrangência peculiar de cada órgão da administração pública direta e indireta: nacional ou federal; estadual; municipal. Estipular o local da destinação da reserva, sob qualquer argumento, é discriminar a pessoa com deficiência pois, em todas as localidades pode existir candidato com deficiência potencialmente apto e interessado em prestar o concurso público. A administração pública ao realizar concurso público deve ainda observar a “reserva mínima de 5% das vagas oferecidas”, em face à classificação obtida pelo candidato com deficiência. A “reserva mínima” destina-se àqueles candidatos clas- sificados e tem como objetivo garantir as suas nomeações. O balizamento a ser utilizado para a nomeação será obviamente a ordem de classificação, observando- se que a convocação obedecerá a alternância e a proporcionalidade entre a lista geral e a lista especial em relação ao número de vagas a serem preenchidas. 4. Reserva de Empregos Públicos As sociedades de economia mista e as empresas públicas, ou generica- mente designadas de empresas estatais, que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços devem ori- entar-se nas regras previstas no Art. 173, §1º, da Constituição da República que [...] “apenas fixa o regime tributário de tais entidades e o regime jurídico de seu pessoal, não excepcionando a regra geral do Art. 37, inc. II”11. Para a discussão em tela interessa especialmente afirmar que sobre as sociedades de economia mista e empresas públicas incidem os comandos cons- titucionais de preenchimento de empregos públicos por meio de concurso público, sendo que a nomeação do empregado público formaliza-se via contra- to de trabalho e, efetiva-se com a aplicação da legislação trabalhista ou seja, com a anotação da Carteira de Trabalho e Previdência Social. A questão fundamental porém, é concluir, a partir desse duplo enfoque e regência de regras da administração pública e privada, qual reserva de empre- gos públicos destinar às pessoas com deficiência. Os empregados públicos vin- culam-se à Administração Pública Indireta por meio do regime da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, sendo-lhes aplicados os princípios que regem os contratos de trabalho. A Lei no 8.213/91, que define o Plano de Benefícios da Previdência Social, conceitua como empresa (Art. 14) a firma individual ou sociedade que assume o risco de atividade econômica urbana ou rural, com fins lucrativos ou não, bem como os órgãos e entidades da administração pública direta, indireta ou fundacional, sendo que o empregado e segurado obrigatório da Previdência Social é aquele que presta serviço de natureza urbana ou rural à empresa, em 217 caráter não eventual, sob sua subordinação e mediante remuneração, inclusive como diretor empregado (Art. 11). Portanto, aplica-se às empresas públicas e sociedades de economia mis- ta a reserva real, obtida segundo a regra da reserva de postos de trabalho na conhecida fórmula do Art. 93, da Lei no 8.213/91. A aferição dessa reserva “real” se dá no total do quadro de pessoal da empresa, observadas todas as carreiras existentes. Quanto às reserva de vagas em cada concurso público, reserva de percentual mínimo de 5% das vagas oferecidas e meta percentual em cada certame, as regras a serem seguidas pela administração pública indireta são as mesmas exigidas para a administração pública direta. A dispensa de trabalhador reabilitado ou pessoa com deficiência habilitada ao final de contrato por prazo determinado superior a noventa dias, e a dispen- sa imotivada, no contrato por prazo indeterminado, só poderá ocorrer após a contratação de substituto de condições semelhante. O empregador que no cur- so do contrato vier a dispensar trabalhador com deficiência deve obedecer ao parâmetro definido no artigo Art. 93, § 1º, da Lei no 8.213/91, de maneira a se considerar válida a dispensa. O novo empregado contratado deve guardar con- dições de semelhança com o empregado despedido ou seja, ser também porta- dor de deficiência, conforme definição contida no Art. 5º, § 1º, I, a-e, do Decreto no 5.296/04. O critério da lei, além instituir ação afirmativa por meio da reserva postos de trabalho para o trabalhador com deficiência ou trabalhador reabilitado, é fixar um mecanismo de preservação dessa reserva, estabelecendo como condição para a dispensa desses empregados a contratação de substituto de condição semelhante. Isto significa dizer que se está diante de uma forma peculiar de garantia de emprego. Esta garantia de emprego, no entanto, não é dirigida a um indivíduo com deficiência mas, a uma situação em particular – a condição da deficiência -, na qual o interesse a ser resguardado diz respeito à coletividade de pessoas com deficiência ou reabilitados da Previdência Social. Se a dispensa do empregado público com deficiência implicar em redu- ção do percentual de reserva, significa que o administrador público não poderá rescindir o contrato firmado enquanto não tiver condições de nomear outro candidato com deficiência. Se ainda assim o administrador rescindir o contrato, sem proceder nova contratação de empregado em condições semelhantes, a dispensa será considerada nula, nos termos do Art. 9º, da CLT, a exigir a reinte- gração do demitido no emprego com a percepção de salários e vantagens12. 218 5. Atribuições Compatíveis com a Deficiência. Aptidão Plena do Candidato com Deficiência Opõe-se ao direito à igualdade duas equivocadas e estreitas concepções que dizem respeito à reserva dos cargos e empregos públicos para pessoas com deficiência. A primeira delas, inserida na Lei nº 8.112/91, e repetida no Decreto nº 3.298/99, determina que será assegurado o direito de a pessoa com deficiência se inscrever em concurso público para provimento de cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que é portador13 e, a segun- da, a inaplicabilidade da reserva mínima de 5% em face da classificação obtida quando se tratar de cargo ou emprego público integrante de carreira que exija aptidão plena do candidato. Observado o princípio da razoabilidade, o administrador público ao esti- pular condições e requisitos de acesso aos cargos e empregos públicos (§ 3°, Art. 39), limita-se ao estabelecimento de pressupostos e exigências em relação às peculiaridades das funções e tarefas inerentes aos cargos e empregos públi- co como, por exemplo, exigir a qualificação profissional por meio de diplomação específica. Não se trata em hipótese alguma de se excepcionar pessoas ou cargos e ocupações. Observe-se mais, na ressalva constitucional (Art. 39, § 3º) está claro que se aplica ao servidor ocupante de cargo público o disposto no Art. 7º, sendo que dentre os vários incisos que o compõe está o XXXI, que proíbe qualquer discri- minação no tocante a salário e critério de admissão da pessoa com deficiência. A não previsão de reserva de vagas para pessoas com deficiência em concurso para cargos e empregos públicos que exijam aptidão plena do candi- dato, ou impedi-lo de se inscrever, em vista da prévia definição pela administra- ção pública de que o cargo ou emprego público não é compatível com a defi- ciência, viola um dos objetivos fundamentais da República que é a promoção do bem de todos, livre de qualquer preconceito (Art. 3º, IV); viola princípio fundamental do direito à igualdade (Art. 5º, caput); choca-se com os princípios da acessibilidade (Art. 37, I) e de concurso publico (Art. 37, II) e, o direito de não discriminação no tocante a critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência (Art. 7º, XXXI). Não poderá o administrador inserir como critério para o cargo ou empre- go público a exigência de aptidão plena, impedindo que o candidato com defi- ciência participe do certame ou, logrando êxito, seja nomeado. Isto porque, é o conteúdo das provas e exames, eventualmente de desempenho físico ou sen- sorial que determinarão a classificação do candidato já que lhe é exigido alcan- çar a nota mínima. 219 Observe-se que uma das exigências do conteúdo dos editais de concurso público é a descrição das atribuições e tarefas do cargo ou emprego público. Referida exigência tem um efeito direto para todos os candidatos em potencial, pessoa com ou sem deficiência, quanto à decisão de prestar o concurso. Enten- dendo-se habilitado, optará por seguir as regras estabelecidas para o concurso e, obtendo êxito na classificação e sendo nomeado, às formalidades inerentes ao exercício das funções. 6. Igualdade de Condições. Inscrição de Candidatos com Deficiência A igualdade de condições com os demais candidatos, referência do Art. 37, do Decreto nº 3.298/99, implica ao candidato com deficiência à submissão aos mesmos conteúdos das provas e exames; aos critérios de aferição e avalia- ção; ao horário e local de aplicação das provas e exames; e à nota mínima exigida para todos os demais candidatos. Não haverá privilégios em relação a candidatos com deficiência. Visando a alcançar a igualdade de condições, o candidato com deficiência que dele necessitar poderá requerer tratamento diferenciado para a realização das provas e exames, indicando quais são as condições diferenciadas. O prazo para o pedido deve estar fixado no edital. Se necessitar de tempo adicional para realizar as provas poderá assim requerer, apresentando a justificativa no prazo previsto também no edital. Essa justificativa deverá, necessariamente, estar acom- panhada de parecer emitido por especialista da área de sua deficiência. É no ato da inscrição que se estabelece o liame entre o candidato com deficiência e o órgão responsável pelo concurso público. Por isso, deve constar do edital o número de vagas, reserva destinada à pessoa com deficiência, atri- buições e tarefas essenciais do cargo, previsão de adaptação das provas, curso de formação e estágio probatório e o laudo médico atestando a deficiência. No ato da inscrição será exigido do candidato com deficiência que apre- sente o laudo médico, atestando a espécie e o grau da deficiência, com expres- sa referência ao código correspondente da Classificação Internacional de Doen- ça – CID, bem como a provável causa da deficiência. A comprovação da deficiência justifica-se pois o candidato concorrerá, se for sua livre opção, às vagas reservadas destinadas exclusivamente às pessoas com deficiência. A exigência do atestado contendo a conceituação e o grau de deficiência merece consideração também pelo candidato pois tem desdobramentos impor- tantes para as providências que deverão ser tomadas pelo órgão responsável 220 pelo concurso quanto à adaptação das provas, ao local de realização das mes- mas e a adaptação do curso de formação e do período de estágio probatório. Para proceder às adaptações a administração pública deve estar atenta às necessidades decorrentes da deficiência do candidato e lançar mão dos apoios especiais e ajudas técnicas, quando o for caso, de forma a propiciar o amplo acesso de candidatos com deficiência ao concurso público. Adaptar as provas para o candidato com deficiência, é tornar o seu con- teúdo - que é o mesmo para todos os candidatos – acessível, de forma que possa apropriar-se do inteiro teor das questões formuladas e, ao mesmo tempo, ter condições segundo a adaptação de sua deficiência (sensorial – visual ou auditiva – física - mental) de proceder a resposta à formulação. A adaptação das provas obriga o administrador a criar mecanismos próprios que permitam recuperar com segurança, e de maneira fidedigna, o conteúdo das questões e as respostas às questões formuladas. A certeza e eficácia do referido mecanismo possibilita ao candidato meio adequado de dirigir eventual recurso à banca examinadora, seja por inconformismo em relação à critérios de correção, dubiedade ou equívoco da questão formulada. Trata-se de uma providência obri- gatória que decorre do comando constitucional do amplo acesso de todos ao concurso público (Art. 37, I), de forma que os candidatos com deficiência, de acordo com o requerimento dirigido à comissão em prazo previsto no edital, possam solucionar as questões segundo sua proficiência. Essa providência à qual está obrigada a administração pública, dirige-se ao candidato com deficiência pro- piciando-lhe atingir a igualdade de condições com os demais candidatos. Portanto, por razões intrínsecas à deficiência declarada no ato da inscrição, o candidato tem o direito de requerer, no prazo fixado no edital, tratamento diferenciado para a realização das provas, indicando explicitamente quais são as adaptações necessárias para prestá-las. Se necessário, deverá requerer tempo adicional para a realização das referidas provas. Nesse caso, alerta-se que a justificativa para o requerimento deverá estar acompanhada de parecer emitido por especialista da área da deficiência declarada. 7. Local de realização das provas Todos os locais de prova devem estar adaptados e organizados segundo as normas técnicas da ABNT14 relativas à acessibilidade da pessoa com deficiên- cia, cabendo ao administrador público ou organizador do concurso obedecer aos padrões e critérios nelas estabelecidos, estando os locais aptos para receber o candidato com deficiência de forma digna. Para as eventuais adaptações que se devam proceder nos locais de provas, deverão ser levados em conta os apoios 221 especiais e as ajudas técnicas específicas para a deficiência do candidato, o que significa dizer que se houver necessidade deverão ser colocados à disposição dos candidatos com deficiência os apoios a exemplo do intérprete de sinais, ledor, terceiro para apoiar na condução, dentre outros. 8. Curso de Formação dos Candidatos Nessa etapa do concurso público, via de regra eliminatória, prepara-se o candidato, capacitando-o para as futuras atribuições funcionais. Portanto, o lau- do médico atestando a espécie e o grau da deficiência com o correspondente CID e a causa provável da deficiência, apresentado no ato da inscrição, servirá de base, e deverá ser considerado pela equipe multiprofissional, para as neces- sárias e obrigatórias adaptações do curso de formação. Não se esqueça de que deverão ser colocados à disposição do candidato com deficiência todos os apoi- os e ajudas necessários à boa consecução do curso. 9. Nomeação. Listas Geral e de Candidatos com Deficiência (Especial) A primeira justificativa para a elaboração de duas listas (geral e especial) é disciplinar o resultado de duas distintas competições: uma entre os candidatos com deficiência para as vagas que lhes são reservadas, já que pode ocorrer a aprovação de número superior de pessoas com deficiência à reserva; outra entre os candidatos sem deficiência. O órgão responsável pela realização do concurso procederá número necessário de convocações para nomeação (cargo público) ou contratação (empregado público), durante a validade do concurso, segundo a ordem de classificação, até o limite das vagas autorizadas no edital. No momento da nomeação ou da contratação, os candidatos “sem” e “com” deficiência deve- rão ser chamados de forma alternada e proporcional, obedecida à ordem de classificação das listas geral e de pessoas com deficiência, que o regulamento designa como especial. As listas geral e de candidatos com deficiência devem ser geradas ao final do concurso público. No caso de uma etapa do certame público ter sido conclu- ída, composta ou não de fases, a publicação do resultado deverá necessaria- mente ocorrer de forma a propiciar o chamamento dos candidatos para a se- gunda etapa, ou para o curso de formação. Para tanto, basta que se conheça a relação de candidatos que alcançaram a nota mínima. Importante destacar que em cada fase do concurso poderá ser exigida nota mínima diferenciada. Porém, na classificação final dos candidatos deverá ser observada a nota mínima fixada para aprovação no concurso, lembrando-se 222 que a colocação de cada candidato na classificação final dependerá do nível alcançado pelo conjunto de candidatos, traduzida pela a nota de corte. A segunda justificativa para a elaboração das duas listas com as respecti- vas classificações é a de atender a ordem de convocação para a nomeação. Deixar de convocar de forma alternada e proporcional as duas listas existentes, obsta o acesso de candidato com deficiência ao cargo ou emprego público, conduta tipificada como crime (Art. 8º, II, Lei nº 7.853/89), e com claro ânimo de prática de discriminação. De forma a dar efetividade ao comando constitucional da reserva de car- gos e empregos públicos, a convocação dos candidatos de forma alternada e proporcional deve se iniciar com os candidatos da lista geral, passando-se ao primeiro da lista de candidatos com deficiência já no primeiro bloco de convo- cados15, seja qual for o número de candidatos chamados, aplicando-se sempre a regra do percentual mínimo de 5% e se tendo em conta o percentual de vagas reservadas para o concurso público. Tenha-se claro que se houver candidato com deficiência aprovado em primeiro lugar na classificação geral, este não será computado para a reserva a ser cumprida naquele concurso, pois a reserva mínima está relacionada à classi- ficação obtida e só se manterá a alternância e proporcionalidade se forem ob- servadas as duas listas. Portanto, para este exemplo, o próximo candidato a ser convocado será aquele com deficiência constante do rol da lista de candidatos com deficiência. Ao nomear o candidato com deficiência, o administrador público deve de antemão considerar a adaptação do local de lotação ou da contratação, de forma a cumprir as regras de acessibilidade e, bem receber o novo servidor ou empre- gado público. O que não pode ocorrer é o administrador público, com a motiva- ção de que somente determinada unidade é adaptada, preferir ali proceder a lotação do novo servidor ou empregado público ou, ao contrário, não proceder a lotação em determinada unidade porque não é adaptada. A acessibilidade é um direito garantido constitucionalmente (Arts. 227, §2º e 244) portanto, o ad- ministrador público está obrigado ao cumprimento das regras de acessibilidade e/ou adaptações. 10. Estágio Probatório O estágio probatório, observado o cumprimento de procedimentos pró- prios, no período de três anos, implicará na efetivação, ou não, do servidor em cargo de provimento efetivo da administração pública direta, autárquica e fundacional. 223 Ao empregado público da administração pública indireta (empresas públi- cas e sociedades de economia mista) o estágio probatório é de três meses, coin- cidente ao período de experiência, previsto na Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, em vista da aplicação do Art. 173, §1º, da Constituição da República. Como regra geral que é, destina-se a todos. Portanto, é no “estágio probatório”, durante o pleno exercício das funções, que o candidato com defici- ência será avaliado quanto à sua aptidão e capacidade para o desempenho do cargo ou emprego público, observados os pressupostos legais de assiduidade, disciplina, capacidade de iniciativa, produtividade e responsabilidade (Art. 20, Lei n º 8.112/1990). Para o servidor ou empregado público com deficiência em estágio probatório, além da aptidão e capacidade típicas do cargo ou emprego público, soma-se na avaliação uma outra exigência: a “compatibilidade das atribuições do cargo com a deficiência”. Essa impropriedade da norma regulamentar (o Decreto nº 3.298/99) goza da mesma ilegalidade atribuída à concepção de se excluírem da reserva determinados cargos e empregos públicos, em vista da equivocada premissa de que exigem aptidão plena ou são incompatíveis com a deficiência. A equipe multiprofissional será o apoio especial durante o estágio, com o objetivo de encontrar a solução para a adaptação das tarefas inerentes ao cargo ou emprego público, tarefas estas que necessitam ser cumpridas pelo estagiando com eficiência, gerando a desejada produtividade, conforme exige o Art. 20 da Lei 8.112/90. A conduta da equipe multiprofissional deverá ser de orientação e supervisão do período de adaptação. O objetivo a ser atingido, nesse caso, é o de auxiliar o administrador com elementos e instrumentos próprios para pro- porcionar a adaptação das funções às eventuais limitações ocasionadas pela deficiência, de forma que a pessoa com deficiência possa demonstrar no exer- cício de suas funções ser possível cumprir os requisitos exigidos no já citado Art. 20 da Lei n º 8.112/90. Se necessário, os modos e as rotinas para o desempenho das atribuições do cargo deverão ser adaptados, observados os estritos termos das eventuais limitações ocasionadas pela deficiência da pessoa. Questão que pode surgir no curso do estágio probatório, é o questionamento sobre a possibilidade de exoneração/demissão do servidor/empregado público. O ato da exoneração/demissão somente terá validade se houver motivação, ba- seada na avaliação de desempenho de que trata o § 4º, do Art. 41 da Constituição da República. Do contrário, o ato é imotivado e arbitrário, chocando-se com o princípio da motivação dos atos administrativos. Os princípios constitucionais que fundamentam a exigibilidade e acessibilidade ao concurso público para o ingresso 224 na administração pública direta e indireta têm simetria com o princípio constituci- onal da legalidade em procedimentos de exoneração e demissão do servidor/ empregado público concursado. Portanto, o funcionário em estágio probatório não pode ser exonerado nem demitido sem inquérito ou sem as formalidades legais de apuração de sua capacidade (Súmula 21/STF). 11. Equipe Multiprofissional. Efetividade das Atribuições A equipe multiprofissional é composta de três profissionais capacitados e atuantes nas áreas de deficiências, sendo um deles médico, e três profissionais integrantes da carreira almejada pelo candidato. Portanto, seis profissionais para prestar assistência integral ao administrador público durante as diferentes eta- pas do concurso público e durante o período de estágio probatório. A concepção da equipe multiprofissional, com atribuições definidas nas diferentes fases do concurso e do estágio probatório, reflete a preocupação do Poder Público no âmbito da administração pública com as condições em que se realizarão as provas, o curso de formação (Art. 43, IV) e o exercício das funções durante o estágio probatório. Ao determinar que da equipe conste profissionais capacitados e atuantes nas áreas das deficiências (psicólogo, assistente social, fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional), dentre eles um médico, direciona sua preocupação para com a pessoa com deficiência, vista sob diferentes ângulos relacionados à sua saúde e bem estar integral, permitindo avaliar toda a sua funcionalidade na execução das tarefas (Art. 43, III). Incluir três profissionais integrantes da carreira almejada pelo candidato democratiza com o corpo de servidores ou empregados públicos do órgão a responsabilidade de bem aferir a natureza das atribuições e tarefas de forma a, se necessário, compatibilizá-las às eventuais limitações causadas pela deficiência. O objetivo dessa construção, é permitir que a equipe multiprofissional a partir da capacidade, do conheci- mento e experiências acumuladas de todos possam emitir parecer seguro ao final do período do estágio probatório sobre o candidato com deficiência. O Decreto nº 3.298/99 ao instituir a equipe multiprofissional tem tam- bém outro propósito: evitar que uma só pessoa, via de regra o médico, condicione o resultado da avaliação prévia da deficiência em um parecer eli- minatório do candidato. A equipe multiprofissional poderá aferir as informações apresentadas no ato da inscrição por meio de laudo médico e, com isso, impedir a fraude com a declaração de candidatos não deficientes às vagas de pessoa com deficiência. Assim, o administrador público deverá designá-la tão logo tenha conhecimento da existência de candidatos ao concurso público e/ou de candidatos aprovados, a depender de nomeação. 225 Nos três anos de estágio probatório é que a compatibilidade das atribuições do cargo ou emprego público e a deficiência deverão ser avaliadas. A pessoa com deficiência nomeada terá à sua disposição todos os instrumentos necessários para bem desempenhar suas tarefas, de modo que se forem necessárias adaptações nas funções estas sejam procedidas. Ressalte-se que o modo e os mecanismos para a consecução das funções inerentes ao cargo ou emprego público é que deverão necessariamente sofrer as devidas adaptações, de tal forma que a pessoa com deficiência demonstre sua capacidade integral de desempenho. A equipe multiprofissional deve ser considerada como forma de apoio especial, instrumento que a administração pública deve se utilizar para incluir de forma digna a pessoa com deficiência em seu ambiente de trabalho. Com isso, a própria equipe poderá ficar responsável pela orientação e supervisão do servidor ou empregado em estágio probatório de maneira que possa superar as limitações do ambiente onde desenvolve suas funções, sobretudo em relação à comunicação e ao acesso às informações, já que estas são indispensáveis para a compreensão de comandos para a realização de tarefas. Deverá estar atenta para as eventuais necessidades de ajudas para a adaptação do ambiente físico de toda ordem (rampas, banheiros adaptados, sinalização, mobiliário adaptado), visando facilitar o acesso e contribuir para melhorar a capacidade funcional e a autonomia pessoal da pessoa com deficiência em estágio probatório. Outra adaptação de ordem obrigatória e fundamental que deverá estar presente na avaliação da equipe multiprofissional, diz respeito aos instrumentos, equipa- mentos, maquinários e utensílios que o servidor ou empregado público deverá se utilizar para a realização de suas tarefas. Cabe ainda è equipe multiprofisisonal concluir pela necessidade de ado- ção de procedimentos especiais, considerado o grau da deficiência do estagiando servidor ou empregado público. Referidos procedimentos dizem respeito, por exemplo, à possibilidade de jornada diária de trabalho variável, com o cum- primento de horários flexíveis de forma a alcançar a produtividade exigida pela administração, lembrando que os servidores cumprirão jornada de trabalho fixa- da em razão das atribuições pertinentes aos respectivos cargos, respeitada a duração máxima do trabalho semanal de quarenta horas e observados os limites mínimo e máximo de seis horas e oito horas diárias, respectivamente. 12. Inspeção Médica. Necessária mas, limitada ao Exame Admissional Não está proibida a avaliação médica prévia pela administração pública de candidato com deficiência nomeado pois, visa constatar as suas condições de saúde. Essa avaliação só será possível se tiver feição de exame admissional. Na 226 hipótese, a equipe de saúde, que não é a mesma equipe multiprofissional do concurso público, com atribuições específicas de avaliação emitirá laudo ates- tando a saúde atual do servidor/empregado público com e sem deficiência. O exame admissional tem o caráter preventivo de rastreamento e de diagnóstico precoce de agravos à saúde relacionados ao trabalho do servidor/ empregado público, inclusive aqueles de natureza subclínica, assemelhando-se ao Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional – PCMSO, previsto na Portaria n º 3.214/78 do Ministério do Trabalho e Emprego, e a conhecida NR-7. O exame médico admissional, é obrigatório e compreende a avaliação clínica, abrangendo anamnese ocupacional e exame físico e mental, bem como exa- mes complementares e, deve ser realizado antes que o trabalhador assuma as suas atividades. Com isso, pode-se constatar a pré-existência de alguma doença que possa justificar um pedido de aposentadoria, ficando aquela pessoa impe- dida de pleitear o benefício dela decorrente. Notas 1 Tópicos resumidos extraídos do livro Pessoas com Deficiência e o Direito ao Concurso Público: Reserva de Cargos e Empregos Públicos, Administração Pública Direta e Indireta. Goiânia : Ed. da UCG, 2006. 2 Decreto nº 3.956, de 8/10/2001, promulga a CONVENÇAO INTERAMERICANA PARA A ELIMINAÇAO DE TODAS AS FORMAS DE DISCRIMINAÇAO CONTRA AS PESSOAS PORTADORAS DE DEFICIÊNCIA. 3 Outras Convenções Internacionais ratificadas pelo Brasil prevêem a discriminação positiva: DISCRIMINAÇÃO EM MATÉRIA DE EMPREGO E PROFISSÃO, promulgada pelo Decreto nº 62.150, de 19/1/68; ELIMINAÇÃO DE TODAS AS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO RACIAL, promulgada pelo Decreto nº 65.810, de 8/12/69; ELIMINAÇÃO DE TODAS AS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO CONTRA A MULHER, promulgada pelo Decreto nº 4.377, de 13/9/2002 que revogou o Decreto nº 89.460, de 20/3/84 4 A Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência assinada pelo Brasil em 30/3/2007, traduzida por Romeu Sassaki http:// www.mj.gov.br/sedh/ct/corde/dpdh/sicorde. A versão em inglês está no endereço da ONU http://www.un.org/disabilities/convention. 5 Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de natureza física, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas (tradução de Romeu Sassaki). Pessoas com incapacidades incluem aquelas com deficiências físicas, mentais, intelectuais ou sensoriais duradouras que, na interação com diversas barreiras podem ter limitadas suas plena e efetiva participações na sociedade, em igualdade de condições aos demais (tradução livre da autora por entender ser mais abrangente e fidedigna ao propósito da Convenção, além de atender ao atual movimento de pessoas com deficiência que propõe um novo modelo para valorizar a pessoa). 6 Ver o MS nºs 21.322-1 DF, de 3/12/92, Relator Ministro Paulo Brossard, DJ 22 de outubro de 1993. 227 7 São consideradas pessoas com deficiência aquelas elencadas no Art. 5º, do Decreto nº 5.296, de 2/12/2004, sem prejuízo no âmbito dos Estados e Municípios a previsão mais abrangente. 8 Foi o que fez o Distrito Federal ao editar a Lei nº 160, de 02/09/91 que dispõe sobre reserva de percentual de cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência. É o que está sendo proposto no atual Projeto de Lei nº 7.699/06 que trata Estatuto da Pessoa com Deficiência, em curso no Congresso Nacional: Art. 65. Os órgãos da Administração Pública Direta e Indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, em todos os níveis, estão obrigados a preencher no mínimo 5% (cinco por cento) de seus cargos e empregos públicos com pessoas com deficiência, proporcionalmente distribuídos em todos os quadros de carreira e especialidades. Para melhorar a previsão da reserva, propõe-se excluir as locuções “em todos os níveis” e “no mínimo”, pois guardará simetria com o comando na esfera privada, na qual empresas de grande porte devem ter o mínimo de 5% de cargos reservados. Deve ser ficar claro no texto que referido percentual será distribuído em todos os quadros de carreira e especialidades, para evitar que o Administrador Público escolha quais as funções destinadas às pessoas com deficiência e, até o final cumprimento da reserva. 9 Art. 37, § 2º do Decreto nº 3.298/99. 10 Supremo Tribunal Federal. RE 227.299-1 MG, Relator Ministro Ilmar Galvão, 14/06/ 2000. 11 MS nº 21.322-1 DF, de 3/12/92, Relator Ministro Paulo Brossard, DJ 22 de outubro de 1993. 12 TST – Proc. RR- 646.255/2000 – 2ª Região, 3ª Turma, Rel. Min. Carlos Alberto Reis de Paula, julgado em 12/03/2003, DJ de 04/04/2003. 13 Art. 5º, § 2º, Lei nº 8.112/91; 37, caput, Decreto nº 3.298/99. 14 NBR 9050 - Acessibilidade a Edificações Mobiliário, Espaços e Equipamentos Urbanos; NBR 13994 – Elevadores de Passageiros – Elevadores para Transportes de Pessoa Portadora de Deficiência. 15 Ver o AC 248783, TRF-4ª Região, 3ª Turma, DJ 18/10/2000. 228 SEÇÃO VII - CONCURSO PÚBLICO E TRABALHO CONSTITUIÇÃO e PESSOA COM DEFICIÊNCIA Manoel Jorge e Silva Neto Resumo: Estudo sobre normas e princípios constitucionais voltados para a garantia de direitos da pessoa com deficiência. Palavras-chaves: normas constitucionais, pessoa com deficiência. Abstract: A study on provisions of the Constitution and constitucional principles regarding observance of rights of persons with disabilities. Keywords: constitutional provisions, person with disbility. 229 1. Introdução E m sistema jurídico marcado pela tentativa de redução das desigualdades, como é a Constituição de 1988, seria autêntico paradoxo não se presenciar a preocupação constituinte relativamente à pessoa com deficiência. Embora seja verdade que o princípio da isonomia desenvolve conseqüên- cias nos mais variados domínios do sistema constitucional, como se sucede na igualdade no campo das relações tributárias, trabalhistas, administrativas, etc, é irrecusável reconhecer a importância da tutela constitucional reservada à pes- soa com deficiência. De nossa parte, a elaboração deste artigo se recobre de dupla satisfação : em primeiro lugar, em virtude de se tratar de tema que nos é particularmente caro; em segundo lugar, mas não menos importante, trata-se de autêntico “con- vite-intimação” que recebi da estimada Colega e Amiga Maria Aparecida Gugel para trazer um pouco da nossa experiência no trato das graves questões que circundam a proteção constitucional à pessoa com deficiência, de modo especí- fico no que atina à nossa atividade no âmbito do Ministério Público do Trabalho. Portanto, também é duplo o propósito do artigo: homenagear a tantos que, com denodo e afinco, lutam por uma sociedade brasileira menos preconceituosa e mais inclusiva e contribuir, ainda que a nosso modesto modo, para a consolidação de tutela coletiva dirigida às pessoas com deficiência com extração direta da Constituição de 1988. 2. Os Princípios Fundamentais e a Pessoa com Deficiência. A Dignidade da Pessoa Humana Vimos nos últimos anos implementando verdadeira cruzada em torno da certificação a respeito da importância dos princípios constitucionais e, dentre eles, dos princípios fundamentais. Ronald Dworkin chegou mesmo a afirmar que a década de 90 foi a déca- da dos princípios. Logo, mostra-se indeclinável o exame da principiologia constitucional, notadamente porque, após o desenvolvimento irreversível do Neoconstitucionalismo, foi aberto considerável campo para a concretização de direitos fundamentais pelo Poder Judiciário. Temos, conseqüentemente, de acordo com a teoria abraçada por Dworkin e amplamente divulgada pelo sistema da ciência do direito, a conhecida divisão das normas constitucionais em regras e princípios. As regras constitucionais, ou simplesmente normas-regra, são aquelas que se submetem a procedimento de aplicação preso ao sistema do “tudo-ou-nada”, isto é, ou a norma é válida, subsumindo-se à situação fática e se aplica absoluta- 230 mente em face das demais ou não se subsume e não é aplicada. Portanto, no caso das normas-regra, diz-se que o seu sistema de aplicação é do tipo “tudo- ou-nada” porque não incide qualquer juízo de equilíbrio ou ponderação entre as normas constitucionais que estejam em oposição. Diferentemente, os princípios constitucionais, também denominados de normas-princípio, estão sempre submetidos a juízo de ponderação, desde que é certa a impossibilidade de prevalência absoluta de um deles diante dos demais. Além disso, Robert Alexy é incisivo ao defender que as normas-princípio se convertem em mandados de otimização, ou seja, ao promover a sua interpreta- ção, o aplicador do direito constitucional está vinculado a extratar proposição por meio da qual se obtenha a máxima efetividade do comando constitucional. Com essa referência inicial à doutrina sobre as regras e os princípios cons- titucionais pretendemos deixar claro que a proteção constitucional à pessoa com deficiência se desdobra em inúmeros preceitos constitucionais que, por sua vez, configuram normas-princípio. No altiplano dos princípios fundamentais, visualizamos o disposto no Art. 1º, III, da Constituição, que estabelece como um dos fundamentos do Estado brasileiro a dignidade da pessoa humana. Não seria realizável estudo sobre a Constituição e a pessoa com deficiên- cia sem aludir àquele dispositivo constitucional que é, segundo o magistério do saudoso Professor Miguel Reale, “o valor-fonte do sistema normativo”, vale di- zer, é o valor a partir do qual todo o sistema da Constituição de 1988 vai buscar fundamento para a sua própria operatividade e legitimidade. Historicamente, a dignidade da pessoa humana encontra-se ligada ao Cris- tianismo. Sua fundamentação está amparada no fato de que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. O Cristianismo antigo adotou a idéia da liber- dade do ser humano como apanágio da sua condição racional e em virtude de ser dotado de livre arbítrio, mesmo que não chegassem a ser reconhecidos na Antigüidade os direitos fundamentais tal como se incorporaram aos textos legislativos atualmente (Benda, 1999, p. 118). A dignidade da pessoa humana é o fim supremo de todo o direito; logo, expande os seus efeitos nos mais distintos domínios normativos para fundamen- tar toda e qualquer interpretação. É o fundamento maior do Estado brasileiro. Miguel Reale (1998, p.101) explica que [...] o fato de poder e dever cada homem se realizar de conformidade com o seu ser pessoal, na condicionalidade de sua natureza e do meio histórico a que pertence, não exclui, mas antes exige o reconhecimento de ser ele partícipe de uma tarefa ou empenho comum a toda a espécie humana, ou, por outras palavras, de que os seus atos transcendem o 231 círculo de seus interesses, ou dos grupos em que mais imediatamente se inserem, por serem, pura e simplesmente, atos humanos, suscetíveis de uma qualificação deontológica de alcance universal. Donde resulta a emergência de uma multiplicidade de ideologias, em função das quais cada um de nós situa e legitima as suas inclinações e esperanças. Todavia, [...] a dignidade da pessoa humana não é uma criação constitucional, pois ela é um desses conceitos a priori, um dado preexistente a toda experiência especulativa, tal como a própria pessoa humana. A Constituição, reconhecendo a sua existência e a sua iminência, transforma-a num valor supremo da ordem jurídica, quando a declara como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil constituída em Estado Democrático de Direito”. Mas firmar como fundamento do Estado brasileiro a dignidade da pessoa humana deixa à mostra a obrigatoriedade de pôr no núcleo central das atenções o indivíduo, quer seja para torná-lo efetivamente destinatário dos direitos de cunho prestacional, quer ainda para demarcar, com precisão, a idéia de que o mais elevado e sublime propósito cometido à sociedade política é o enaltecimento da dignidade das pessoas que a compõem. Quando o elemento constituinte originário põe sob destaque a pessoa humana, consagrando a sua dignidade, tem em mira pugnar pela humanização do sistema constitucional. Com efeito. Se a Constituição é o estatuto jurídico dentro do qual foram disciplinadas questões da mais alta importância para a organização do Estado brasileiro, como a previsão de eleições, duração dos mandatos, competências das unidades federativas, organização das funções estatais legislativa, executiva e judiciária, intervenção federal e tantas outras disposições da ordem, a referên- cia à dignidade da pessoa humana funciona como cláusula de advertência para a circunstância de que, não obstante seja a Constituição o texto que disciplinará as relações de poder, o que mais importa, em suma, é colocar a serviço do ser humano tudo o que é realizado pelo Estado. Não fosse assim, se imaginássemos uma organização estatal fleumática, soberba e indiferente às demandas dos indi- víduos, teríamos de aceitar passivamente a tese de que o Estado é um fim em sim mesmo e não um meio para o atingimento de finalidades que, em último grau, contemplam a melhoria das condições de vida das pessoas. Atente-se, outrossim, que a dignidade é da pessoa humana. Excetuam-se da previsão constitucional, portanto, as pessoas jurídicas. Sindicatos, associa- ções, empresas, órgãos públicos não podem ser abrangidos pelo comando do Art. 1º, III, da Constituição1.. Sendo a dignidade da pessoa humana o valor fonte de todos os outros valores constitucionalmente postos, deve ser utilizada como balizamento para 232 eventual declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato do Poder Público, ou mesmo para conformar o comportamento de quem quer que esteja, no caso concreto, ofendendo o Princípio Fundamental em questão. É verdade, por outro lado, que se não conceitua dignidade da pessoa humana. Trata-se, como se refere no sistema da ciência do direito, de um topoi, ou seja, termo que não admite conceituação, muito embora sirva de ponto de partida para a solução do problema normativo ocorrente. É o mesmo que se opera com o termo “interesse público”. Não há a possibilidade de conceituá-lo, conquanto o magistrado e o membro do Ministério Público possam afirmar, no caso concreto, se a hipótese tratada é de “interesse público”. Dignidade da pessoa humana não é passível de conceituação, se bem que o juiz possa – ou melhor, deva – decidir se tal ou qual conduta ofende o referido princípio conformador do Estado brasileiro2. Pode-se, concretamente, buscar a operatividade da cláusula pertinente à dignidade da pessoa humana, mais ainda em se tratando de comportamentos que deixam, manifesto ou recôndito, qualquer espécie de discriminação que se possa exercitar contra as pessoas com deficiência. E é clara e evidente a importância da dignidade da pessoa humana para a proteção constitucional que se dirige às pessoas com deficiência: sendo certo que o legislador nunca terá, nem aqui no Brasil nem em qualquer outro lugar do mundo, a ansiada rapidez para juridicizar imediatamente os fatos reputados relevantes pela coletividade, seja pela pletora de processos legislativos em andamento no Congresso Nacional, seja pelas sempre detestáveis medidas pro- visórias, que continuam produzindo os seus frutos, secos e pecos, e desvirtuan- do insidiosamente o princípio democrático, seja, por fim, por mero e simples desinteresse ou falta de vontade política, tendo em vista que a proteção às pessoas com deficiência é política afirmativa que invariavelmente contraria in- teresses políticos e econômicos, o fato é que o Poder Judiciário, à luz da nova idéia de concretização constitucional urdida a partir e com fundamento nos pressupostos do referido Neoconstitucionalismo, pode, ou melhor deve se uti- lizar da dignidade da pessoa humana, tudo para viabilizar a incidência de tutela específica quando ainda não exista lei que discipline a questão. A dignidade da pessoa humana – dissemos – não é passível de conceituação, pois é um desses conceitos a priori; logo, será exatamente no domínio de caso concreto que o advogado ou o promotor do Ministério Público poderá formular a pretensão para o fim de adequar comportamentos públicos ou privados à determinação constitucional. 233 Ainda em sede de princípios fundamentais, impõe-se também a remissão ao fundamento previsto no Art. 1º, IV, da Constituição: os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. 3. Constituição, Pessoa com Deficiência e Relações de Trabalho Em maio de 1996, exatamente há 11 anos atrás, ingressamos com as primeiras ações civis públicas propostas no Brasil para a reserva de postos de trabalho para as pessoas com deficiência. De lá para cá mudaram as relações de trabalho no Brasil, e o direito do trabalho acompanhou a indigitada mudança. Atualmente, não faz o menor sen- tido dizer que o domínio de estudo do cientista do direito do trabalho se prende ao direito individual, fundamentalmente porque, após a disseminação da eficá- cia direta dos direitos fundamentais (segundo a qual a Constituição determina a expansão dos direitos fundamentais para as relações entre particulares), temas que antes eram pouco explorados pela jurisprudência e doutrina trabalhistas, tais como intimidade, vida privada, imagem, liberdade religiosa, etc, passaram a ser inseridos na ordem do dia não apenas na discussão implementada pelos teóricos, mas também – e sobretudo – no âmbito do direito do trabalho aplicado pelos Tribunais. E a tutela constitucional à pessoa com deficiência, aqui representada na proteção no âmbito das relações de trabalho, não foge à tendência de consoli- dação dos direitos fundamentais nas relações privadas. Todavia, quando propusemos as primeiras ações em 1996 a perplexida- de foi generalizada. Surpresa por parte de empresários, críticas partindo de onde menos espe- raríamos que partissem; nauseantes argüições de inconstitucionalidade nas ações civis públicas propostas; enfim, um quadro de total adversidade às pretensões do Ministério Público do Trabalho, que buscava, tão-só, a implementação por via judiciária de política afirmativa positivada no Art. 93 da Lei nº 8.213/91, até então comando completamente desconhecido de tantos quantos tratavam da tutela coletiva no Brasil. A experiência tem nos mostrado que ninguém no Brasil deliberadamente se declara preconceituoso com relação às pessoas com deficiência; e a malsinada idéia de democracia racial está aí para comprovar o quanto somos politicamen- te corretos: defendemos sociedade igualitária, não-preconceituosa, inclusiva, des- de que a consolidação do princípio da igualdade e da inclusão por meio de políticas afirmativas não atinja nossos interesses. Outro dia encontrei com um amigo e travamos o seguinte diálogo que bem expressa a hipocrisia nacional no particular: 234 - Oi, Manoel como vai você ? - Tudo bem amigo, e você ? - Estou muito chateado ultimamente. Você sabe, né, Manoel, eu nunca tive preconceito contra negros, mas veja o seguinte: minha filha “matou” 80% das provas no vestibular da UFBa e ficou de fora por causa dessas quotas ... A situação é emblemática da resistência, de fato, do brasileiro médio com relação às políticas afirmativas e evidencia a histórica ausência de solidariedade que caracteriza a sociedade brasileira. É dizer: “o problema do vizinho é proble- ma dele, eu não tenho nada com isso !” Ocorre que uma sociedade em vertiginosa transformação, como é a pós- moderna, aliada à existência de problemas gravíssimos de ofensa a interesses transindividuais, a atitude individualista, egoística e fisiológica não guarda qual- quer afinidade com a própria sobrevivência desta coletividade. E por quê ? Sim- plesmente em virtude de o pensamento individualista não atinar para a circuns- tância que as lesões massivas deixam à mostra que não existe mais apenas “o problema do vizinho”, mas convictamente o problema da vizinhança. Não exis- te mais, com a profusão que existia, o problema de um trabalhador individual- mente considerado, mas de trabalhadores coletivamente submetidos a determi- nações empresariais, gerando macrolesões nos domínios das relações de trabalho. E é dentro desse contexto e movido com tal espírito que nos pronuncia- mos em prol da concretização das normas constitucionais para a tutela da pes- soa com deficiência nas relações de trabalho. Propostas as ações e consolidados os entendimentos jurisprudenciais acerca da competência da Justiça do Trabalho, legitimidade do Ministério Público do Trabalho et caterva, alcançou-se a fase seguinte no que toca à proteção do trabalhador com deficiência. Tratou-se do momento em que as empresas passaram a se utilizar de reprováveis subterfúgios para cumprir as quotas fixadas pela Lei nº 8.213/91, como a contratação de pessoas com deficiência auditiva leve, tudo com amparo no Decreto nº 3.298/99, que permitia o escamoteamento da tutela perseguida pelo Ministério Público do Trabalho. Aduzimos à época a ilegalidade do Art. 4º, II, alíneas “a” e “b” do Decreto nº 3.298/99, em petição inicial de ação civil pública, vazada nos seguintes termos: Uma das primeiras lições aprendidas nos bancos acadêmicos em Teoria Geral do Direito concerne à definição do que vem a ser “lei em sentido formal”: norma jurídica editada pela autoridade competente e de acordo com o procedimento constitucionalmente fixado. Assim, distinguindo-a das leis em sentido material, a doutrina revela que por lei em sentido formal somente pode entender-se aquela espécie 235 normativa editada pelo Parlamento e desde que reverente às normas constitucionais disciplinadoras do processo legislativo. Não se trata, evidentemente, de distinção de color meramente acadêmico. Deveras, saber se a norma em questão é lei sentido material ou formal apresenta-se como circunstância decisiva ao próprio reconhecimento da legitimidade da restrição à liberdade individual. Com efeito, o Art. 5º, II, da Constituição de 1988, assegura que “ninguém poderá fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Será absolutamente indispensável saber a natureza ou amplitude da expressão “lei”, tal como grafada no dispositivo, a fim de desvendar-se o alcance do preceptivo constitucional. Ora, “lei”, no sentido que a quer empregar o Art. 5º, II, da Constituição, somente pode ser lei em sentido formal, pois, a entender-se de modo diverso, abrir-se-ia o insidioso precedente de constrição da liberdade individual por meio de espécies normativas completamente inaptas a tal mister, como seria o caso de edição de resoluções, portarias, instruções, ordens de serviço et caterva. Não é diferente o que se sucede com o decreto. Malgrado estabelecido como prerrogativa do Poder Executivo, nos termos do Art. 84, IV, da Constituição, o decreto não pode, sob pena de ser considerado ilegal, desbordar os limites fixados pela lei em sentido formal. Pontes de Miranda, no particular, adverte que “onde se estabelecem, alteram-se ou extinguem- se direitos, não há regulamento – há abuso do poder regulamentar, invasão da competência legislativa” ( Cf. Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda nº 1 de 1969, 2ª edição, t. III, p. 314 ). O eminente jurista alagoano bem sintetizou a necessidade de o decreto se jungir à mera explicitação do conteúdo da lei. Não foi, entretanto, o que se sucedeu na hipótese sob exame. O Art. 93 da Lei nº 8.213/91 determinou a contratação de empregados portadores de deficiência dentro dos percentuais nele fixados, mas, a qualquer tempo, promoveu a conceituação de portador de deficiência. Fê-lo o Art. 3º do Decreto nº 3.298/99, ao prescrever como deficiência “toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano”. Até aí nada a opor, máxime em virtude de a explicitação ser conatural à norma em questão. Insólito, sob todos os aspectos, foi o conteúdo do Art. 4º, II, alíneas “a” e “b” do referido Decreto : “É considerada pessoa portadora de deficiência a que se enquadra nas seguintes categorias : I – (...); II – deficiência auditiva – perda parcial ou total das possibilidades auditivas sonoras, variando de graus e níveis na forma seguinte : a) de 25 a 40 decibéis (db) – surdez leve; b) de 41 a 55 decibéis – surdez moderada; (...)”. Evidentemente, não se dirige nossa estranheza à parte do dispositivo do Decreto que reconhece como portador de deficiência aquele que perdeu completamente a audição ou ainda quem, para ouvir, necessita se valer 236 de aparelho auditivo. Não. O conteúdo estranho e absolutamente à margem do telos da Lei nº 8.213/91 e que, portanto, merece a veemente repulsa do Ministério Público do Trabalho, é o pertinente às alíneas “a” e “b”. Com convicção, se admitir-se por plausível a adequação de portadores de deficiência auditiva leve e moderada ao conceito legal, em verdade, atingiríamos a absurda circunstância em que todas as empresas privadas no Brasil poderiam recorrer à contratação de tais pessoas para escamotear a aplicação do Art. 93 da Lei nº 8.213/91, deixando sempre fora do mercado de trabalho os autênticos portadores de deficiência física, mental e sensorial, e, por conseguinte, atuaríamos na contramão do que pretendera o legislador ao buscar a inserção do empregado portador de necessidades especiais, instalando ambiente de diversidade e, portanto, de tolerância, no âmbito empresarial, o que, de resto, é materialização do proclamado Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput, da Constituição). As conclusões da Procuradora do Ministério Público do Trabalho, Cristiane Maria Sbalqueiro Lopes, são bastante elucidativas : “Perdas auditivas ocupacionais são muito comuns e na grande maioria dos casos não dão direito sequer ao afastamento temporário do trabalho, pelo que não seria lógico que caracterizassem deficiência auditiva, para os fins da proteção que estabelece a Lei nº 8.213/91 e toda a política de apoio à pessoa com deficiência”. E conclui adiante :”Assim, já que para ser considerado deficiente auditivo é necessário, pelo menos, a indicação de aparelho auditivo, e para o aparelho ser indicado é necessário a existência de uma perda razoável e comprometedora da comunicação, utilizar-se do critério da indicação de aparelho auditivo pode representar mais uma estratégia para barrar eventuais tentativas da empresa de indicar pessoas ‘normais’ como deficientes auditivos” (Cf. O MPT e a inserção da pessoa portadora de deficiência no mercado de trabalho : importância da fiscalização relativa às pessoas apresentadas como deficientes pela empresa – o caso de surdez”, in Revista do Ministério Público do Trabalho, nº 22, ano XI, setembro de 2001, pp. 60/70). Ora, Excelência, foi precisamente o que aconteceu na situação sobre a qual versa a lide: ávida por resolver, de logo, a questão da contratação de empregados portadores de deficiência, decidiu a Acionada contratar, de modo exclusivo, pessoas com disacusia leve ou moderada, ou incluir no percentual deficientes auditivos que já pertenciam aos quadros da unidade. Eis, por fim, Excelência, a razão por que tanto persegue o Autor a emissão de provimento judicial declaratório da ilegalidade do art. 4º, II, “a” e “b” do Decreto nº 3.298/99, firmada como está a absurda situação de contratos de trabalho celebrados com trabalhadores que estão longe de atender aos propósitos do art. 7º, XXXI, da Constituição Federal e do art. 93 da Lei nº 8.213/91. É certo que posteriormente o problema foi resolvido com a edição do Decreto nº 5.296/04, que afastou a possibilidade do engabelamento e da men- tira sedimentados sob o pálio do Art. 4o da norma regulamentar anterior. E o pior de tudo isso é constatar a prolação de algumas decisões da Justiça do Trabalho – felizmente em pequeno número –, que estiveram e estão na contra-mão da tutela da cidadania buscada pela Constituição de 1988. 237 Recordamo-nos de ação civil pública proposta na Justiça do Trabalho da 5ª Região e, distribuída à 8ª Vara do Trabalho de Salvador. Não comparecendo a empresa acionada para defender-se em juízo e ocorrida a revelia, a Juíza do Trabalho responsável pelo julgamento da ação julgou-a procedente em parte para, no ano de 2004, condenar a empresa ao pagamento de multa diária pelo descumprimento da obrigação à ordem de R$ 1,00. Isso mesmo, Caro Leitor, não erramos quando da colocação da vírgula, o valor foi um real mesmo de multa diária. Isso significa que, se a empresa “condenada” passasse dez anos sem cumprir a obrigação firmada na sentença, teria de desembolsar “expressi- vos” R$ 3.600,00 ... Felizmente o E. Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região, em acórdão de lavra da Desembargadora-Federal Nélia Neves, fez retornar a situação ao estado de normalidade e impôs multa diária compatível com a gravidade da ofensa consumada. Mas desse relato fica uma idéia que vale mais que tudo: a proteção à pessoa com deficiência no contexto das relações de trabalho é das mais difíceis, tanto em virtude da costumeira resistência empresarial como do generalizado entendimento de que as pessoas com deficiência – só e só por tal condição – devem merecer meramente o assistencialismo estatal, como de forma a impe- dir que venham a disputar conosco fatia do mercado de trabalho ... 4. Competências Federativas e a Pessoa com Deficiência Neste item pretende-se articular exame da tutela constitucional à pessoa com deficiência fundada nas competências atribuídas aos órgãos da Federação brasileira. O Art. 21, da Constituição descreve competências exclusivas à União. Tais competências se caracterizam pela impossibilidade de delegação. O Art. 21, XX, da Constituição, é norma que se reveste de grande impor- tância: Compete à União: [...]; XX. instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos. Tornando-se verdadeiramente indiscutível que as questões inerentes a de- senvolvimento urbano são de competência do Município em razão do disposto no Art. 30, I, da Constituição (legislar sobre assuntos de interesse local), a circuns- tância não deplora a viabilidade de exercício de competência legislativa sobre o mesmo tema pela União; distinguem-se, no entanto, as iniciativas de cada qual, porquanto a União, como visto, tem competência para instituir diretrizes de de- senvolvimento urbano, ao passo que a pessoa política municipal está constitucio- nalmente autorizada à implementação de leis que tornem fruíveis pela coletivida- de os avanços decorrentes da chamada gestão democrática da cidade. 238 Portanto, embora a União não tenha competência para dispor normativamente sobre assuntos arraigados ao interesse local, tais como discipli- na do trânsito nas vias urbanas, não é irrisória a competência fixada pelo Art. 21, XX, máxime porque, ao determinar a indicação de diretrizes para o desenvolvi- mento urbano, o comando desenvolve efeitos práticos de enorme significado, como a conformação das leis municipais de acordo com as diretrizes nacionais. Por conseguinte, no trato das questões atinentes a desenvolvimento urba- no, não raro, não raro mesmo, presenciamos a indiferença legislativa com rela- ção à pessoa com deficiência e o espaço urbano. Por exemplo, a Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001, o Estatuto da Cidade, conquanto elogiável ao positivar a gestão democrática da cidade, não foi explícito quanto à proteção das pessoas com deficiência relativamente à adequação do espaço urbano. Note-se que nas Diretrizes Gerais (Art. 2º), a Lei apenas remotamente deixa implícita a viabilidade de tutela da pessoa com deficiência, tanto que esclarece que a política urbana seguirá, dentre outras, a seguinte diretriz: oferta de equipamentos urbanos e comunitários, transporte e serviços públicos ade- quados aos interesses e necessidades da população e às características locais. Ora, são tantas e inúmeras as necessidades da população que chega a ser irritante o modo pelo qual o legislador ordinário resiste à expressa tutela que deva conferir-se à pessoa com deficiência. Por que a Lei nº 10.257/01 não indicou expressamente a adequação dos equipamentos urbanos à pessoa com deficiência como diretriz a ser incorpora- da às leis estaduais, distritais e municipais ? Somente se justifica a ausência com a atávica e preconceituosa forma como a sociedade brasileira tratou e trata as pessoas com deficiência. Mas, convictamente, não se poderá cogitar de desenvolvimento urbano ali onde se não presencia acatamento mínimo aos direitos das pessoas com deficiência, dentre os quais o pertinente à acessibilidade. Logo, do que foi explicitado aqui, podem ser extratadas algumas conclusões. A primeira delas é que a lei nacional que fixar diretrizes para desenvolvi- mento urbano (como é o Estatuto da Cidade) está obrigada à inclusão de nor- mas instituindo diretrizes para acessibilidade a logradouros públicos por pessoas com deficiência, sob pena de inconstitucionalidade da lei que se omitir quanto à providência. Segundo lugar: mesmo que não houvesse referência expressa na legisla- ção urbana federal, estadual ou local, os princípios constitucionais são objetiva- mente vinculantes para fazer com que o Poder Judiciário se pronuncie em favor 239 de contingente pedido de tutela judicial das pessoas com deficiência relativa- mente à questão da acessibilidade. Contudo, a acessibilidade como direito das pessoas com deficiência está garantido no Art. 2º, V, da Lei nº 7.853/89. E garantido apenas no plano formal ... Com efeito, basta que o leitor examine a própria cidade em que vive e chegará à mesma conclusão que a nossa ... Ausência de rampas de acesso, inexistência absoluta de semáforos sonoros, transporte coletivo urbano comple- tamente inadequado para o usuário com deficiência, o fato é que generalizadamente o Poder Público e a iniciativa privada no Brasil não acorda- ram para os números que revelam que cerca de 14% da nossa população é composta por pessoas com deficiência. E pior: parece que a hipótese é muito mais indicativa de insensibilidade do que propriamente de sonolência ... Mas algumas instituições têm tentado fazer a sua parte, como é o caso do Ministério Público. No Estado da Bahia, por exemplo, vimos presenciando uma série de iniciativas do Ministério Público estadual, por meio da combativa e diligente Promotora Silvana Almeida, que propôs e propõe diversas medidas judiciais para determinar o cumprimento, ainda que pela via judiciária, da lei de acessibilidade. Também nos parece que a inexistência de lei, ou mesmo a existência de norma sem o respectivo cumprimento, autorizará a pessoa com deficiência prejudicada a ingressar em juízo para obter uma reparação pelo dano material ou moral, podendo figurar no pólo passivo da ação tanto o Poder Público como as empresas concessionárias que não reverenciaram o programa constitucional referente à proteção à pessoa com deficiência. Competência que deve ser examinada é a de natureza administrativa, fixada no Art. 23, da Constituição. Art. 23 É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: I – zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público; II – cuidar da saúde3 e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência4; III – proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos55 Ver Decreto-lei nº 25/37 (Proteção do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). 240 ; IV – impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural; V – proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência; VI – proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas; VII – preservar as florestas, a fauna e a flora6; VIII – fomentar a produção agropecuária e organizar o abastecimento alimentar7; IX – promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico; X – combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos; XI – registrar, acompanhar e fiscalizar as concessões de direitos de pesquisa e exploração de recursos hídricos e minerais em seus territórios8; XII – estabelecer e implantar política de educação para a segurança do trânsito 9 . Parágrafo único. Lei complementar fixará normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional. As competências assinaladas nos incisos do Art. 23 se dirigem a todos os entes da Federação brasileira e têm característica que as distingue dos demais artigos que tratam da distribuição de competências na Constituição: possuem natureza administrativa. Com efeito, o exame do preceptivo demonstra que todas as pessoas políticas – União, Estados, Distrito Federal e Municípios – inte- grantes do nosso sistema federativo receberam atribuições, cumprindo registrar que todas elas são de compostura administrativa. Basta notar que cuidar da saúde e assistência pública (Art. 23, II); proteger os documentos, as obras, e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos (Art. 23, III); proteger o meio ambi- ente10 e combater a poluição em qualquer de suas formas (Art. 23, VI); fomen- tar a produção agropecuária e organizar o abastecimento alimentar (Art. 23, VIII), são, todas, competências de cunho administrativo, e que por isso se dife- renciam substancialmente daquelas anunciadas pelo Art. 24. Interessante é a redação do Parágrafo Único, do Art. 23, pois nele se consigna que lei complementar poderá estabelecer normas de cooperação en- tre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios. É a constatação eloqüente que o legislador constituinte originário decidiu-se, de modo claro e peremptório, pelo federalismo de natureza cooperativa. 241 Não há, entretanto, necessidade de ocorrência de atuação simultânea de todos os integrantes do pacto federativo no exercício das competências co- muns. Se bem que lei não possa demitir unilateralmente a pessoa política do dever imposto pela Constituição11. Compreendamos: o Art. 23 não denota mera faculdade para emissão do provimento administrativo; competências comuns descrevem autêntica obriga- ção comissiva dirigida a todos os entes da Federação. Não fosse tão evidente a teleologia do Art. 23, bastaria ao intérprete que se quisesse prender ao pedestre processo gramatical, reconhecer, de fato, que todos os incisos principiam com verbo e em significado de imposição: zelar, cuidar, proteger, impedir, preser- var, combater, etc. Norma que encerra grande importância é a do art. 23, II : É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios : (...); cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência. As pessoas com deficiência possuem especificidades no que concerne à proteção à saúde, tornando politicamente necessário e juridicamente exigível que o Poder Público lance mão de políticas públicas voltadas ao atendimento à saúde da pessoa com deficiência, implementando não apenas programas de restauração da saúde, mas também de prevenção de doenças. 5. O Direito Fundamental ao Mínimo Existencial e a Pessoa com Deficiência Consubstanciado no “direito às condições mínimas de existência humana digna que não pode ser objeto de intervenção do Estado e que ainda exige prestações estatais positivas” (Torres, 1999, p. 262), o direito fundamental ao mínimo existencial tem residência implícita na Constituição de 1988, principal- mente a partir da elevação a fundamento do Estado brasileiro do princípio da dignidade da pessoa humana (Art. 1º, III, Constituição). O direito fundamental ao mínimo existencial não deve ser confundido com os direitos sociais. Explica-se: embora ambos tenham por propósito estabelecer uma exi- gência para atuação comissiva estatal, ao direito ao mínimo existencial não se poderá opor o óbice da “reserva do possível”. Certamente, quanto aos direitos sociais, é singular a situação em que o Poder Judiciário é provocado para resolver um problema de descumprimento de política pública de compostura social prevista na Constituição de 1988, quando, na oportunidade, poderá o administrador articular que o referido desatendimento decorreu das denominadas “escolhas trágicas” e que o direito social a respeito 242 do qual se exige judicialmente a concretização não pode ser satisfeito de modo imediato, o que implicaria a solução de continuidade de outros programas soci- ais em virtude da insuficiência de recursos para atendimento a todos eles. No entanto, o direito fundamental ao mínimo existencial não se presta ao exercício de raciocínio do gênero, simplesmente porque se trata de um caso concreto, individual, que confere, por conseqüência, um direito público subjeti- vo ao indivíduo para exigir a pronta resposta do Estado quanto à satisfação de prestação para que continue viva a pessoa e possa viver em foros de condições mínimas de existência. Observe-se, por exemplo, o conteúdo programático do Art. 196, da Cons- tituição Federal: A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido medi- ante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Se, no caso, houver propositura de ação civil pública pelo Ministério Público a fim de promover o atendimento ao comando constitucional e adoção de pro- grama de atendimento pré-natal a todas as gestantes do Brasil, seria possível ao Poder Executivo, a depender efetivamente da hipótese, argumentar que a ado- ção de um tal programa repercutiria negativamente em relação a outros projetos vinculados à promoção da saúde e prevenção de doenças. Mas, na circunstância, o que nunca poderá ser argumentado pelo administrador é a impossibilidade de prestar o atendimento pré-natal a uma gestante carente cuja prenhez pode ser considerada de alto risco. Não há qualquer margem para a argüição da reserva do possível, mais ainda porque o descumprimento da norma constitucional programática no tocante à mulher grávida carente e com graves problemas na gravidez poderá, inclusive, desencadear até a sua morte12.. É nesse contexto que deve ser examinado o direito fundamental ao míni- mo existencial da pessoa com deficiência. Se houver descumprimento de norma constitucional programática, cujo comando, entretanto, esteja apto para viabilizar condições de existência dignas em nível mínimo para pessoas com deficiência, é objetivamente plausível e recomendável instar o Poder Judiciário a fim de que emita provimento judicial em favor do cidadão com deficiência, não sendo admissível, outrossim, a oposi- ção da tese da reserva do possível. 6. Conclusão Sabemos das resistências havidas em torno à proteção constitucional à pessoa com deficiência, que se converteu até num comportamento cultural da sociedade brasileira. 243 Mas ouvimos , certa feita, do Professor Cid Teixeira, ainda quando cursá- vamos a graduação do curso de Direito : “Cultura não é; cultura está sendo”. Conseqüentemente, o nosso desejo é que o Brasil possa contemplar, num futuro próximo, sociedade menos preconceituosa e mais inclusiva. Só que não se constrói futuro algum sem luta no presente. Notas 1 A dignidade da pessoa humana serve também para fundamentar o aparecimento dos direitos da personalidade (intimidade, privacidade, imagem, nome, incolumidade física). Atualmente, o Novo Código Civil promoveu a inclusão de tais direitos ao sistema positivo (Arts. 11 e seguintes). Se bem que se não possa outorgar às pessoas jurídicas qualquer tutela com base no fundamento da dignidade da pessoa humana, alguns direitos da personalidade podem lhes ser destinados, como é o caso da proteção jurídica ao nome e à imagem-atributo. A propósito, a admissibilidade de serem dedicados direitos da personalidade às pessoas jurídicas é prevista no Art. 52 do Código Civil. 2Não foi com lastro em outro Princípio Fundamental, mas no pertinente à dignidade da pessoa humana, que o STF, no julgamento do HC nº 70.389/SP, Rel. Min. Sydney Sanches, Rel. Acórdão Min. Celso de Mello, publicado no DJ de 10.08.2001, decidiu que “a simples referência normativa à tortura, constante da descrição típica consubstanciada no art. 233 do Estatuto da Criança e do Adolescente, exterioriza um universo conceitual impregnado de noções com que o senso comum e o sentimento de decência das pessoas identificam as condutas aviltantes que traduzem, na concreção de sua prática, o gesto ominoso de ofensa à dignidade da pessoa humana. A tortura constitui a negação arbitrária dos direitos humanos, pois reflete – como prática ilegítima, imoral e abusiva – um inaceitável ensaio de atuação estatal tendente a asfixiar e, até mesmo, a suprimir a dignidade, a autonomia e a liberdade com que o indivíduo foi dotado, de maneira indisponível, pelo ordenamento positivo”. 3 PROCESSUAL CIVIL, ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL – AGRAVO DE INSTRUMENTO – ANTECIPAÇÃO DE TUTELA – FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS DESTINADOS AO TRATAMENTO DA SIDA/AIDS A HIPOSSUFICIENTES – RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DA UNIÃO – PRECEDENTES DO EG. STF – 1. A verossimilhança do direito alegado encontra guarida no texto do art. 196 da Constituição Federal, que impõe ao Poder Público o dever de velar pela saúde de todos, uma vez que se constitui em bem jurídico tutelado incondicionalmente a toda a população, em especial àqueles portadores do vírus HIV. 2. O art. 23, inciso II, da mesma Carta Magna, consagra a competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios no cuidado com a saúde e assistência pública, bem como na proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência. 3. O eg. STF reconhece a solidariedade das diversas esferas institucionais do Poder Público no que se refere à prestação de saúde. 4. Agravo improvido” (TRF 2a R. – AG 2001.02.01.030682-1 – RJ – 4a T. – Rel. Juiz Benedito Gonçalves – DJU 19.07.2003 – p. 153). No mesmo sentido, atribuindo idêntica responsabilidade solidária aos diversos entes da Federação brasileira: “(...) 244 O decisum asseverou, ainda, que o próprio eg. Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do RE 280.642, DJU de 17.11.2000, tendo como relator o Exmo. Sr. Ministro Marco Aurélio de Mello, ao interpretar a exegese do art. 196 do texto constitucional, se posicionou no sentido de que a referência contida no preceito ‘Estado’ mostra-se abrangente, a alcançar a União Federal, os Estados propriamente ditos, o Distrito Federal e os Municípios” (TRF 2ª R. – EDAG 2001.02.01.031924-4 – RJ – 4ª T. – Rel. Juiz Benedito Gonçalves – DJU 26.11.2002– p. 100). 4 Ver Leis nºs. 7.853/89 (apoio às Pessoas Portadoras de Deficiência); 10.436/2002 (dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS) e o Decreto nº 3.298/99. 6 Ver Leis nºs. 4.771/65 (Código Florestal); 5.197/67 (Código de Caça); 6.938/81 (Política Nacional de Meio Ambiente) e 9.605/98 (Define os Crimes Ambientais). Ver também o Decreto nº 3.179/99 (Regulamentação da Lei sobre Crimes Ambientais) e Decreto-lei nº 221/67 (Código de Pesca). 7 Ver Lei nº 8.171/91 (Política Agrícola). 8 Ver Lei nº 9.443/97 (Política Nacional de Recursos Hidrícos). 9 Ver Lei nº 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro). 10 Merece, aqui, um registro: embora a edição de lei em sentido material e formal sobre direito do trabalho, como é o caso de meio ambiente do trabalho, seja de competência privativa da União (Art. 22, I), impõe-se a todos os entes da Federação brasileira a edição de atos administrativos (exercício da competência comum do Art. 23) para a proteção do meio ambiente, nesse caso evidentemente incluído o do trabalho. 11 Na ADIn nº 2.544-9/RS, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 08.11.2002, foi sufragada tal tese: Federação. Competência comum. Proteção do patrimônio comum, incluído o dos sítios de valor arqueológico (CF, arts. 23, III, e 216, V). Encargo que não comporta demissão unilateral. 1. Lei estadual que confere aos Municípios em que se localizam a proteção, a guarda e a responsabilidade pelos sítios arqueológicos e seus acervos, no Estado, o que vale por excluir, a propósito de tais bens do patrimônio cultural brasileiro (CF, art. 216, V), o dever de proteção e guarda e a conseqüente responsabilidade não apenas do Estado, mas também da própria União, incluídas na competência comum dos entes da Federação, a qual, substantivam incumbência de natureza qualificadamente irrenunciável. 2. A inclusão de determinada função administrativa no âmbito da competência comum não impõe que cada tarefa compreendida no seu domínio, por menos expressiva que seja, haja de ser objeto de ações simultâneas das três entidades federativas: donde, a previsão, no parágrafo único do art. 23 CF, de lei complementar que fixe normas de cooperação (v., sobre monumentos arqueológicos e pré-históricos, a Lei 3.924/61), cuja edição, porém, é da competência da União e, de qualquer modo, não abrange o poder de demitirem- se a União ou os Estados dos encargos constitucionais de proteção dos bens de valor arqueológico para descarregá-los ilimitadamente sobre os Municípios. 3. Plausibilidade da argüição de inconstitucionalidade da lei estadual questionada. Suspensão cautelar deferida. 12 A jurisprudência do STF, embora não cogite explicitamente de um “direito fundamental ao mínimo existencial”, consolida a proteção a direito público subjetivo com base em norma constitucional programática, de modo indicativo a constante do art. 196, da Constituição: “O direito público à saúde – além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas – representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. (...) O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política – que tem por destinatários todos os entes 245 políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do estado brasileiro – não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado” (STF, 2a T., AGRRE 271.286/RS, julg. 12/ 092000, DJ 24/11/2000, rel. Min. Celso de Mello). Colhe-se também a seguinte decisão prolatada nos autos da ADPF nº 45 : “Não obstante a formulação e a execução de políticas públicas dependam de opções políticas a cargo daqueles que, por delegação popular, receberam investidura em mandato eletivo, cumpre reconhecer que não se revela absoluta, nesse domínio, a liberdade de conformação do legislador, nem a de atuação do Poder Executivo. É que, se tais Poderes do Estado agirem de modo irrazoável ou procederem com a clara intenção de neutralizar, comprometendo-a, a eficácia dos direitos sociais, econômicos e culturais, afetando, como decorrência causal de uma injustificável inércia estatal ou de um abusivo comportamento governamental, aquele núcleo intangível consubstanciador de um conjunto irredutível de condições mínimas necessárias a uma existência digna e essenciais à própria sobrevivência do indivíduo, aí, então, justificar-se-á, como precedentemente já enfatizado - e até mesmo por razões fundadas em um imperativo ético-jurídico -, a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, em ordem a viabilizar, a todos, o acesso aos bens cuja fruição lhes haja sido injustamente recusada pelo Estado” (ADPF nº 45, rel. Min. Celso de Mello, DJ 04/05/2004). Bibliografia BENDA. Ernest, Dignidad humana y derechos de la personalidad, in : Manual de Derecho Constitucional, Madrid : Marcial Pons, 1999. REALE. Miguel, Estado Democrático de Direito e o Conflito de Ideologias, São Paulo : Saraiva, 1998. SILVA. José Afonso da, Poder Constituinte e Poder Popular, São Paulo : Malheiros Editores, 2000. TORRES. Ricardo Lobo, A Cidadania Multidimensional na Era dos Direitos, Rio de Janeiro : Renovar, 1999. 246 SEÇÃO VII - CONCURSO PÚBLICO E TRABALHO OS DIREITOS HUMANOS E A PESSOA COM DEFICIÊNCIA NO MERCADO DE TRABALHO Ricardo Tadeu Marques da Fonseca Resumo: Abordagem sobre a evolução dos direitos humanos e do direito das pessoas com deficiência ao trabalho a partir das convenções da Organização Internacional do Trabalho, da Constituição e das leis nacionais. Palavras chave: direitos humanos, direito ao trabalho, pessoa com deficiência. Abstract: This is article deals with an historical approach to the evolution of human rights and the right to work of person with disability under conventions of the International Labor Organization, Brazilian constitution and national laws. Keywords: human rights, rigth to work, person with disability. 247 1. Introdução. Da igualdade formal à igualdade real A atuação do Ministério Público do Trabalho demostrou a importância do esforço em prol da inserção das pessoas com deficiência no trabalho. A lei brasileira, por estímulo constitucional, estabelece ação afirmativa categórica nesse sentido, fixando cotas de reserva de vagas, tanto na esfera pública, quanto na privada. De outra parte, a condição de exclusão das pessoas com deficiência do convívio social é milenar e reveladora do quão distante estão estas pessoas de condições mínimas de cidadania erigidas desde o princípio da cultura ocidental. O direito de livre expressão, de ir e vir, de votar e ser votado, bem como os direitos sociais de educação, habitação, trabalho, saúde estão, até certo pon- to, conquistados, apesar das ameaças e insuficiências constantes em relação a todos do povo. O grupo das pessoas com deficiência, no entanto, deles não usufrui por causa da inadequação do Direito e das estruturas físicas nas cidades e nas empresas para lhes permitir a fruição dessas liberdades e conquistas. A par disso, assinale-se que os direitos sociais e as próprias liberdades individuais vêm sendo francamente agredidas, não só no terceiro mundo, como nos países do capitalismo central. A doutrina de segurança nacional, o Tribunal de Guantânamo, a polícia mundial norte-americana e a pretensa hegemonia ideológica da globalização econômica trazem riscos concretos à permanência dos direitos humanos, submetidos que podem ficar ao poder econômico e das armas. A compreensão da importância da História como instrumento de valida- ção da correlação de forças e da origem e destino da vida em sociedade impeliu à discussão que se trava nesse trabalho. Como se falar em emprego especial para pessoas com deficiência se o próprio emprego se encontra estruturalmen- te ameaçado? É justa esta preferência? São as questões que emergem ao se analisar as ações afirmativas de que se cuidam. A História fornece elementos suficientes para que se compreenda que as transformações que se travam no mundo do trabalho, em razão da tecnologia e da globalização econômica, incitam mudanças na forma da prestação de servi- ços, mas substancialmente não a alteram, pois, apesar das inovações expressas na terceirização, no teletrabalho e na prestação autônoma de serviço, dos quais vêm se servindo as empresas, a partir da política do downsizing e da reengenharia, que estiveram muito em voga nos anos 80 e 90, o Direito do Trabalho se mantém íntegro. Seus princípios oferecem respostas firmes pois, dizem respeito à dignidade da pessoa e ao fato de que ela, a dignidade, está fora do mercado. O naufrágio das políticas econômicas neoliberais que acenavam com a pujança dos “Tigres Asiáticos”, como argumento para justificar a precarização 248 do trabalho, evidenciou-se ante a constatação de que a perda de poder de consumo da classe trabalhadora acaba por impedir a própria evolução do mer- cado e de que as pessoas não se conformam com imposições econômicas sobre valores humanos que se lapidaram a partir da modernidade, veja-se, por exem- plo, a rejeição do povo francês à lei do primeiro emprego. A crise desses valores só encontra resposta neles mesmos, a partir da dinamização daquelas promessas do século XVIII e XIX para que assumam di- mensões coletivas amplas e se aperfeiçoem para abarcar a diversidade humana, esta diversidade que não é burguesa ou proletária, tão somente. Perpassa a luta de classes, sem desprezá-la, mas reafirma novos valores que vão sendo incorpo- rados pelo conhecimento acumulado e aprendido, inclusive, pela luta de classes. A afirmação das minorias fez a diferença depois da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Revolucionou o Direito Constitucional, reafir- mando-o a partir de princípios com força de norma, princípios que humanizaram o Direito, dirigido às pessoas, para sua dignidade. Dessa forma, o trabalho das pessoas com deficiência e as ações afirmativas que o garantem não são contrá- rios ao clamor de justiça universal, confirmam-no na medida em que este grupo traz a tona, com suas reivindicações, questões de inclusão social que aperfeiço- am os direito humanos, a partir da chamada igualdade real entre as pessoas; tão real que se reforça nas diferenças e delas emerge. A ignorância generalizada sobre as competências das pessoas com defici- ência impede-lhes o acesso às condições mínimas de cidadania, como se afir- mou. Sufoca-lhes o excesso de proteção assistencial e familiar. A despeito disso, rompem o véu milenar de opressão estética, cultural e comportamental e bran- dem bandeiras até então desconhecidas e que fortalecem as lutas de todas as minorias, fazendo com que o discurso economicista se coloque no seu lugar, eis que as condições humanas, que se evidenciam a partir das limitações ínsitas a toda a humanidade, também emprestam a alavanca que permite a superação de fronteiras físicas, sociais, políticas e tecnológicas. Cada vez que se cria um novo equipamento tecnológico ou se supera uma barreira cultural, as pessoas todas ganham espaço em sociedade e as pes- soas com deficiência, antes estigmatizadas, não mais se limitam, pois se verifica que a limitação não está nelas e sim na capacidade da humanidade em lhes propiciar oportunidades. Esta é a importância da idéia de sociedade inclusiva: a igualdade na incorporação da diferença. O Direito do Trabalho veio como o primeiro instrumento jurídico que tratou da igualdade substancial, visto que o confronto direto entre capital e trabalho evidenciou a insuficiência da mera afirmação formal de que todos são 249 iguais perante à lei. Suas bases axiológicas possibilitaram o lançamento dos alicerces das ações afirmativas que são as mesmas, na medida em que as confir- mam e reproduzem, voltadas agora para grupos menores, cuja projeção corta verticalmente as forças em conflito. Ele foi a ação afirmativa possível naquele momento pois, o processo de lapidação dos direitos humanos não permitia outra percepção. De qualquer modo, os instrumentos que forjaram o Direito do Trabalho são os mesmos que aqui se aplicam para defender as ações afirmativas em prol das pessoas com deficiência. Nesse trabalho analisa-se, portanto, a origem do Direito do Trabalho, sua inclusão nas constituições, o novo Direito Constitucional que valoriza a dignida- de da pessoa, justamente para se verificar as razões que, a partir dos anos 80, viabilizaram o Direito Internacional em prol das pessoas com deficiência, bem como as normas de ação afirmativa que vieram pelo Judiciário, nos países da Comonn Law, e pelas leis, nos países do direito codificado. A própria constru- ção do conceito de igualdade formal à igualdade substancial, a igualdade real acompanha a implementação de formas de combate à discriminação, discrimi- nando, inclusive, positivamente, determinados grupos que foram historicamen- te excluídos do acesso à cidadania. As mulheres, os negros e os índios, por exemplo, ocuparam seu espaço apenas a partir do final do século XIX e início do século XX, depois de muita violência que contra eles se perpetrou. A violên- cia contra as pessoas com deficiência era calada, caridosa, mas tão veemente quanto a escravidão dos negros, ou a espoliação da terra dos índios, ou a sub- missão que se impôs às mulheres. O Direito pode ser um instrumento de opressão ou libertação, dependen- do da forma que seja utilizado. É o que se vê com o novo Direito Civil que busca novas fronteiras que transcendem o patrimonialismo patriarcal que o ge- rou e que se dirigem à defesa da dignidade da pessoa, da sua personalidade. O Direito Civil passa a se nutrir de valores constitucionais, plurais, em prol da dignidade da pessoa, tal como fizera o Direito do Trabalho, desde de sua ori- gem. O novo Direito do Trabalho, por seu turno, colhe, do Direito Civil contem- porâneo, novos elementos que o revalidam. Enquanto se fala na privatização das relações laborais, todavia, defende-se a publicização das relações civis e de consumo. As regras que protegem as pessoas com deficiência, por sua vez, evidenciam a necessidade de ambos, o Direito do Trabalho e o Direito Civil, todos balizados em princípios constitucio- nais que estão acima do mercado. Esse é o impulso que mobilizou esse estudo, de vez que a vivência deste Membro do Ministério Público do Trabalho e cida- dão com deficiência propiciou elementos pessoais e profissionais que aqui se 250 fundem e oferecem recursos que atestam o que até aqui se disse e se procurará demonstrar doravante. 2. Convenções da Organização Internacional do Trabalho Convém, agora, expor-se o conteúdo da Convenção nº 111, de 1958, ratificada pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo nº 62.150, de 19/01/68, adotada na 42ª Conferência Geral da OIT, que fixa critérios gerais sobre discri- minação no trabalho. Em seu preâmbulo, a Convenção em apreço toma por referência axiológica a Declaração de Filadélfia1 para sublinhar que todos os seres humanos, sem distinção de raça, de crença ou de sexo, têm direito a perseguir seu bem-estar material e seu desenvolvimento espiritual em condições de liberdade e digni- dade, de segurança econômica e em igualdade de oportunidades. Regula, destarte, os critérios de combate à discriminação no trabalho em catorze artigos. Define o termo discriminação (Art. 1º), para fins de aplicação de seus dispositivos, da seguinte forma: a) qualquer distinção, exclusão ou preferência baseada em motivos de raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social que tenha por efeito anular ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento no emprego e na ocupação; b) qualquer outra distinção, exclusão ou preferência que tenha por efeito anular ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento no emprego ou ocupação que poderá ser especificada pelo Membro interessado mediante prévia consulta às organizações representativas de empregadores e trabalhadores, quando estas organizações existam, e a outros organismos apropriados. (OIT, p 1.037). Exclui da esfera da discriminação qualquer exigência concernente à qua- lificação profissional específica a determinados postos de trabalho. Exorta os membros signatários (Arts. 2º e 3º) a adotarem políticas públicas, em parceria com representantes de empregadores e trabalhadores, com o fito de proporci- onar igualdade de oportunidades para empregos e ocupações, eliminando, as- sim, qualquer forma de discriminação a esse respeito. Excluem do campo da discriminação (Arts. 4º e 5º) medidas adotadas em face de pessoas que exerçam atividades prejudiciais ao Estado, assim como medidas de proteção que se adotem em outras convenções ou recomendações da OIT, além de outras (medidas) decorrentes de consultas prévias a organiza- ções de empregados e empregadores em favor de pessoas, cuja situação acar- rete necessidade de compensação em face de discriminação notória, como o sexo, a deficiência, os encargos de família ou o nível social ou cultural. Estabe- lece critérios para a sua vigência (Arts. 6º a 10º), determinando, para tal, um lapso de tempo de doze meses após a ratificação por parte de, pelo menos, 251 dois membros e, em cada país, doze meses após o registro da respectiva ratifi- cação pelo Diretor-Geral da OIT, o qual deve sempre ser comunicado das rati- ficações e comunicar a todos os membros o universo das ratificações ocorridas, para que a Convenção se faça obrigatória em todo o território do país-membro. A denúncia da Convenção poderá ser feita após dez anos da sua entrada em vigor. Finalmente (Arts. 11 a 14), cuida dos procedimentos de revisão e de divulgação internacional de suas normas. A Convenção nº 159, de 1983, assume importância primordial, de vez que representa a posição mais atual do organismo internacional em comento e será, por isso, verificada. O seu princípio basilar esteia-se na garantia de um emprego adequado e da possibilidade de integração ou reintegração das pesso- as com deficiência nas sociedades. Em razão das condições práticas e das possibilidades nacionais, todo Esta- do que a ratificar deve formular e aplicar uma política nacional sobre readaptação profissional e emprego de pessoas com deficiência e garantir que as medidas, efetivamente, beneficiem as pessoas com deficiência de todas as categorias. Essa política deve basear-se no princípio da igualdade de oportunidades entre os trabalhadores com deficiência, de um ou de outro sexo, e os demais trabalha- dores (sem excluir a possibilidade de que se tomem medidas positivas especi- ais em favor daqueles). A Convenção dispõe sobre a obrigatoriedade da consulta às organizações representativas de empregadores e de trabalhadores, assim como as que repre- sentam as pessoas com deficiência, acerca da aplicação dessa mesma política. As pessoas com deficiência devem dispor de serviços de orientação, de forma- ção, de colocação, de emprego ou de outras finalidades, bem adaptados as suas necessidades. Tais serviços devem ser promovidos igualmente nas zonas rurais e nas comunidades apartadas. A Convenção dispõe, além disso, sobre medidas em favor do desenvolvimento da formação e da disponibilidade de assessores especializados. 3. A legislação brasileira atual e o trabalho da pessoa com deficiência A Constituição de 1988 é a primeira Carta Constitucional que enfatiza, sobremaneira, a tutela da pessoa com deficiência no trabalho. O Art. 1º elege como valores fundantes da República a dignidade da pes- soa humana, a cidadania, bem como o valor social do trabalho e da livre inicia- tiva. O Art. 3º, ao seu turno, obriga o Estado Brasileiro a adotar medidas para: construir uma sociedade livre, justa e solidária; (...); erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem 252 de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. O Art. 7º, inciso XXXI, preceitua: proibição de qualquer discriminação no tocante a salário ou critérios de admissão do trabalhador porta- dor de deficiência. Estes dispositivos são de vital importância, como se vê, pois a nação bra- sileira assume o compromisso de admitir pessoa com deficiência como trabalha- dor, desde que sua limitação física não seja incompatível com as atividades profissionais disponíveis. O Art. 37, inciso VIII, também da Constituição, determina que a lei reser- vará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão. Na esfera privada, também se institui a obrigatoriedade de reserva de postos a pessoas com deficiência. A Lei nº 8.213/91 fixa os seguintes percentuais: A empresa com 100 (cem) ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% (dois por cento) a 5% (cinco por cento) dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência, habilitadas, na seguinte proporção: até 200 empregados, 2%; de 201 a 500 empregados, 3%; de 501 a 1.000, 4%; e de 1001 em diante, 5%. A Lei nº 8.112, neste diapasão, impõe que a União reserve, em seus concursos, até 20% das vagas para pessoas com deficiências, havendo iniciati- vas semelhantes nos Estatutos Estaduais e Municipais, para o regime dos servi- dores públicos. O Art. 203, inciso IV, da Constituição, inclui entre os deveres da assistên- cia social a habilitação e reabilitação das pessoas com deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária. O inciso V, do mesmo artigo, dispõe que as pessoas com deficiência e idosos incapazes de se manter pelo próprio trabalho ou por auxílio da família, terão direito a um benefício equivalente a um salário-mínimo, mediante regula- mentação de norma específica, que veio pela Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993 (Art. 20). O Art. 208, inciso III, da Constituição, arrola entre os deveres do Estado, na órbita da atividade educacional, a oferta de escolas especializadas para pes- soas com deficiência, estabelecendo a preferência para que o ensino especi- alizado se dê na escola comum. O Art. 227, também da Constituição, grande monumento da doutrina da proteção integral da criança e do adolescente, no inciso II, fala na criação de programas de prevenção e atendimento especializado para as pessoas com deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do adoles- cente com deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, 253 e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de preconceitos e obstáculos arquitetônicos. Regulamentando o dispositivo acima, a Lei nº 7.853, de outubro de 1989, institucionaliza a CORDE (Coordenação Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência); estabelece mecanismo de tutela dos interesses difusos das pessoas com deficiência pelo Ministério Público; impõe a priorização das medidas de integração dos deficientes no trabalho e na sociedade; institui as Oficinas Protegidas de Trabalho e define como criminosa a conduta injustamen- te discriminatória de deficientes no trabalho e no ensino. Dispõe, ainda, em seu Art. 2º, inciso III, letra “d”, que cabe ao Poder Público e a seus órgãos assegurar às pessoas com deficiência o pleno exercício de seus direitos básicos, inclusive do direito ao trabalho, devendo ser dispensa- do tratamento adequado tendente a viabilizar a adoção de legislação específica, disciplinando a reserva de mercado de trabalho em favor dessas pessoas, nas entidades da Administração Pública e do setor privado, e regulamentando a organização de oficinas e congêneres integradas ao mercado de trabalho. Tanto a Constituição quanto a lei ordinária traçam enunciados, princípios, cuja aplicação vinha se fazendo de forma casuística, nos vários níveis da Federação. Proliferaram leis municipais, estaduais ou mesmo editais, adotando critéri- os profundamente díspares, os quais suscitaram dúvidas de aplicação, ou mes- mo inviabilizaram o direito contemplado nos instrumentos normativos retro- mencionados. O Decreto nº 3.298 regulamenta a Lei nº 7.853, implementando mecanis- mos para a concretização da reserva de vagas nos concursos públicos. Dedica à matéria os Arts. 37 a 44, traçando, a partir da experiência acumulada, novas diretrizes visando a superação de problemas enfrentados pelos candidatos com deficiência, que se confrontavam com regras que, à guisa de regulamentar a reserva de vagas, findavam por inviabilizar a sua aprovação. Garante-se a igualdade de condições das pessoas com deficiência aos demais candidatos quanto à inscrição, observando-se, outrossim, o percentual mínimo de 5% de vagas reservadas. Excetuam-se desta regra os cargos em comissão ou função de confiança, ou aqueles cujo exercício demande aptidão plena. Grande avanço se obteve, ao se fixar o percentual mínimo de 5%. A maioria das leis estaduais e municipais falava em até 5%, o que possibilitava a fixação de percentuais irrisórios. Disciplinam-se, ademais, as regras que deverão constar dos editais, pau- tando-as por critérios concernentes à cidadania do candidato com deficiência. Com o intuito de fixar condições de igualdade, o Decreto determina que a autoridade competente não pode obstar a inscrição do deficiente, que, por sua 254 vez, deve declarar e comprovar sua condição, indicando os instrumentos de adaptação que poderá necessitar durante a realização do concurso e do estágio probatório. Devem estar previstos, também, o número de vagas existentes e o total correspondente à reserva destinada às pessoas com deficiência, bem como as atribuições e tarefas essenciais dos cargos a serem ocupados. A pessoa com deficiência participará do concurso em igualdades de con- dições com os demais candidatos, no que se refere ao conteúdo e avaliação das provas, aos critérios de aprovação, ao horário e ao local de aplicação dos exa- mes, a nota mínima exigida para todos os demais candidatos e a publicação dos resultados finais. Assinale-se que o critério de avaliação deverá ser o mesmo utilizado para todos os candidatos, portadores ou não de deficiências. As regras anteriores ao Decreto normalmente atribuíam a uma comissão médica o dever de aferir, após a aprovação no concurso e antes do estágio probatório, se a deficiência apre- sentada pelo candidato seria compatível com a função a ser exercida, o que impunha duplo ônus às pessoas com deficiência. Deviam ser aprovadas no concurso e pela comissão médica e ter o aval dessa comissão para se submete- rem ao estágio probatório. Buscou-se afastar essa injustiça inserindo-se, na Comissão, membros da carreira a ser abraçada pelo candidato. Conferiu-se àquela comissão, ademais, o dever de avaliar os instrumentos que o candidato necessitará durante o concur- so, bem como, em caso de aprovação, o dever de acompanhá-lo durante o estágio probatório, assegurando-lhe os instrumentos e meios de apoio necessá- rios para a sua integração. Na esfera privada, o Decreto delineia a inserção competitiva, a inserção seletiva, as oficinas protegidas e o trabalho autônomo. Aponta a inserção competitiva como sendo aquela em que a pessoa com deficiência ingressa no mercado de trabalho em condições de quase abso- luta igualdade com qualquer outro trabalhador, no que concerne à execução do seu trabalho, necessitando, tão somente, de apoios instrumentais que supram suas restrições físicas ou sensoriais. A inserção seletiva dar-se-á quando forem necessários, além dos instru- mentos de apoio, procedimentos especiais, como horário diferenciado, adapta- ção do meio ambiente, atuação de orientadores ou acompanhantes. Nos dois casos, na inserção competitiva ou na inserção seletiva, serão garantidos todos os direitos trabalhistas e previdenciários. Admite a inserção seletiva por intermediação de entidades especializadas. O Decreto incentiva, outrossim, o trabalho independente, por meio das chamadas cooperativas sociais, reguladas pela Lei nº 9.867/99. Há que se aten- 255 tar, porém, para as possíveis fraudes, tão usualmente encontradas entre as coo- perativas de trabalho. As oficinas protegidas são aquelas que se encontram no interior de entida- des que desenvolvem trabalhos terapêuticos, visando à preparação da pessoa com deficiência para um futuro processo seletivo ou competitivo de trabalho. Tal procedimento é indispensável com relação a algumas deficiências mentais ou físicas, cujo grau de comprometimento afete seus processos de socialização. As oficinas protegidas podem ser de produção ou meramente terapêuti- cas. Tanto nas primeiras como nas segundas não haverá, em tese, vínculo de emprego, exceto nas de produção, desde que presentes os elementos legais caracterizadores da relação de emprego. Finalmente, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), no Art. 66, também obriga a que a sociedade brasileira atente para a proteção do trabalho do adolescente deficiente, o que faz com acerto, visto que duplas são as pecu- liaridades do adolescente com deficiência, as quais suscitam necessidade mais intensa de proteção, para que se lhe possibilite a integração adequada na soci- edade, afastando-o da política de caridade meramente assistencial, que o impe- lirá inexoravelmente à marginalidade. É com esta intenção que a Lei do Estágio amplia o estágio profissionalizante às escolas especiais de qualquer grau. O direito à profissionalização assume, aqui, papel imprescindível de socialização da pessoa com deficiência pois, suas limita- ções para o trabalho se constituem em barreiras tão somente instrumentais, mes- mo que tenha ela deficiência física, mental, ou sensorial. Todas elas são superá- veis, desde que sejam rompidos os preconceitos atávicos, herdados, talvez, das concepções antigas dos povos primitivos, de que a pessoa com deficiência é um pecador punido por Deus que deve ser segregado. A Lei nº 11.180/2005, possibilita também a formalização de contratos de aprendizagem com adolescentes com deficiência, a partir dos 14 anos, sem limite máximo de idade. Isto para estimular parceria entre empresas e ONG´s que militam com pessoas com deficiência. As últimas, têm acumulado conheci- mentos há décadas, acerca das necessidades técnicas e profissionalizantes das pessoas com deficiência e a soma de suas atividades com as empresas, poderá superar a notória precariedade educacional das pessoas com deficiência, em relação à população brasileira. Ademais, as empresas que devem preencher cotas de trabalhadores com deficiência, também deve tê-las preenchidas como aprendizes. Importante, porém, frisar que, uma pessoa com deficiência apren- diz somente ocupará a cota de aprendiz pois, tem finalidade específica e lida com contratos de prazo determinado, exatamente para formar trabalhadores. A 256 cota referente à pessoas com deficiência abarca realidade distinta, uma vez que concernente a contratos definitivos. 4. Conclusão 1. As ações afirmativas em prol das pessoas com deficiência no trabalho, implicam a interação dos direitos humanos, porque lhes asseguram direitos fun- damentais ancestrais até hoje negados. 2. A Constituição Brasileira respalda amplamente as leis que garantem o acesso ao trabalho e à educação profissional das pessoas com deficiência. 3. Cabe ao Direito do Trabalho despir-se dos preconceitos e buscar, cien- tificamente, a compreensão dos reais limites das pessoas com deficiência para, cumprindo seu papel histórico, garantir-lhes condições de igualdade plena aos demais trabalhadores. 4. A reserva de vagas na Administração Pública ou nas empresas privadas jamais poderá ser considerada como uma proteção paternalista. Trata-se, isto sim, da própria revelação da essência do Direito do Trabalho, o qual nasce da premissa básica de que a lei deve assegurar a igualdade real entre as pessoas, suprindo as desigualdades que se constituam em fatores de segregação. Nota 1 Em maio de 1944, a Conferência Internacional do Trabalho – a Assembléia-Geral da Organização – reunida em Filadélfia, nos Estados Unidos, aprovou uma declaração relativa aos fins e objetivos da OIT, conhecida pela Declaração de Filadélfia. Numa época do pós-guerra e da reconstrução, a Declaração reafirma os princípios orientadores da OIT, nos quais se deveria inspirar a política dos países-membros. São esses princípios os seguintes: o trabalho não é uma mercadoria; a liberdade de expressão e de associação é uma condição indispensável para um progresso constante; a pobreza, onde quer que exista, constitui um perigo para a prosperidade de todos; todos os seres humanos, qualquer que seja a sua raça, a sua crença ou o seu sexo, têm direito de efetuar o seu progresso material e o seu desenvolvimento espiritual em liberdade e com dignidade, com segurança econômica e com oportunidades iguais (Disponível em: Acesso em: 14 de setembro de 2004). Bibliografia FONSECA. Ricardo Tadeu Marques da. O Trabalho da Pessoa com Deficiência lapidação dos direitos humanos: o direito do trabalho, uma ação afirmativa, São Paulo : LTr, 2006. OIT – Organização Internacional do Trabalho. Convenios y recomendaciones internacionales del trabajo – 1919-1984 – adoptados por la Conferencia Internacional del Trabajo. 257 258 SEÇÃO VII - CONCURSO PÚBLICO E TRABALHO A INTERDIÇÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA EFEITOS DA CURATELA NO CONTRATO DE TRABALHO Maria Aparecida Gugel Resumo. O instituto da interdição é avaliado desde o seu fundamento no direito romano até a atual concepção sobre capacidade civil das pessoas com deficiência da Convenção sobre Direitos da Pessoa com Deficiência da ONU. A interdição não impede a pessoa com deficiência de trabalhar, cabendo ao Ministério Público zelar pela manutenção desse direito. Palavras-chaves: interdição da pessoa com deficiência, capacidade das pessoas com deficiência, direito ao trabalho, Ministério Público. Abstract. The system of incompetence declaration is evaluated from its fundaments in the Roman Law System to modern conception of civil capabilities of persons with disabilities as depicted in UN’s Convention on the Rights of Persons with Disabilities. The incompetence declaration does not hinder a person with disabilities to work, being an attribution of the Public Attorney to watch over for the enforcement of this right. Keywords: incompetence declaration of persons with disabilities, capabilities of persons with disabilities, right to work, Public Attorney. 259 1. Introdução. Curatela e Interdição. Evolução O texto internacional mais recente e já ratificado pelo Brasil, que trata da promoção dos direitos da pessoa com deficiência, a Convenção Interamericana para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência (promulgada pelo Decreto nº 3.956, de 8/ 10/2001), ou simplesmente CONVENÇÃO DA GUATEMALA, deixa evidente a possibilidade de o Estado adotar medidas de ação afirmativa em favor de pesso- as com deficiência para que possam alcançar a real igualdade de oportunidades. No Art. I, item 2 b, que dispõe sobre o conceito de discriminação, ressalva o instituto da interdição como forma de opção para o bem-estar das pessoas: Não constitui discriminação a diferenciação ou preferência adotada pelo Estado Parte para promover a integração social ou o desenvolvimento pessoal dos portadores de deficiência, desde que a diferenciação ou preferência não limite em si mesma o direito à igualdade dessas pessoas e que elas não sejam obrigadas a aceitar tal diferenciação ou preferência. Nos casos em que a legislação interna preveja a declaração e interdição, quando for necessária e apropriada para o seu bem-estar, esta não constituirá discriminação (Convenção da Guatemala). A origem do instituto da interdição está no Direito Romano. As XII Tábuas traziam normas relativas à incapacidade civil dos indivíduos com enfermidade mental, surdo-mudez, invalidez permanente e pródigos. À tutela se submetiam os incapazes naturais, em decorrência da idade e sexo – os impúberes e as mulheres -, cujo tutor administrava os bens dos tutelados como se fossem seus (negotium gerere). Já sob os efeitos da curatela estavam os incapazes por causa anormal, decorrentes de doenças mentais, deficiências e prodigalidade, confor- me se extrai das Institutas (1.23.4): Sed et mente captis et surdis et mutis et Qui morbo perpetuo laborant, quia rebus suis superesse non possunt, curatores dandisun (GIODANI, Lumens, p. 14)1. A gestão do patrimônio do interdito era efetuada pelo curador (agnados ou, na ausência destes, os gentis). O pensamento romano serviu de fundamento para os sistemas e ordenamentos jurídicos de muitos países acondicionando, até os dias de hoje no entanto, uma visão estigmatizadora da pessoa interditada – a de que nada, ou quase nada pode fazer. Daí porque, é necessário que o ramo do direito busque avançar, transformando a vetusta concepção, levando em conta o conhecimen- to de outras áreas sociais como a medicina, a assistência social e a psicologia, por exemplo, que melhor permitem ver o indivíduo (o interditando) no seu contexto social e de necessidades cotidianas. Dessa forma, poderão ser resguar- dados ao máximo seus direitos. A concepção atual sobre a capacidade legal das pessoas com deficiência está descrita na recente Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiên- 260 cia, da Organização das Nações Unidas – ONU, que ressalta a necessidade de os Países preverem medidas relativas ao exercício da capacidade legal, incluindo normas efetivas para garantir tal exercício, respeitando os direitos, a vontade e as preferências da pessoa, isentas de conflito de interesses e de influência indevida e que sejam proporcionais e apropriadas às circunstâncias da pessoa, aplicadas pelo período mais curto possível e submetidas à revisão regular por uma autoridade ou órgão judiciário competente, independente e imparcial. Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência – ONU2 Artigo 12 Reconhecimento igual perante a lei 1. Os Estados Partes reafirmam que as pessoas com deficiência têm o direito de serem reconhecidas em qualquer parte como pessoas perante a lei. 2. Os Estados Partes deverão reconhecer que as pessoas com deficiência têm capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida. 3. Os Estados Partes deverão tomar medidas apropriadas para prover o acesso de pessoas com deficiência ao apoio que necessitarem no exercício de sua capacidade legal. 4. Os Estados Partes deverão assegurar que todas as medidas relativas ao exercício da capacidade legal incluam salvaguardas apropriadas e efetivas para prevenir abusos, em conformidade com o direito internacional relativo aos direitos humanos. Estas salvaguardas deverão assegurar que as medidas relativas ao exercício da capacidade legal respeitem os direitos, a vontade e as preferências da pessoa, sejam isentas de conflito de interesses e de influência indevida, sejam proporcionais e apropriadas às circunstâncias da pessoa, se apliquem pelo período mais curto possível e sejam submetidas à revisão regular por uma autoridade ou órgão judiciário competente, independente e imparcial. As salvaguardas deverão ser proporcionais ao grau em que tais medidas afetarem os direitos e interesses da pessoa. 5. Os Estados Partes, sujeitos ao disposto neste Artigo, deverão tomar todas as medidas apropriadas e efetivas para assegurar às pessoas com deficiência o igual direito de possuir ou herdar bens, de controlar as próprias finanças e de ter igual acesso a empréstimos bancários, hipotecas e outras formas de crédito financeiro, e deverão assegurar que as pessoas com deficiência não sejam arbitrariamente destituídas de seus bens. Países europeus3 como a França e a Alemanha, consideram a curatela, ou interdição, como última possibilidade a ser executada pois, trata-se de solução drástica de restrição individual, sendo sempre desejável que se preserve a mai- or quantidade de direitos da pessoa. O sistema francês, a partir da reforma constante da Lei de 30/1/1968, traz três medidas de proteção ao incapaz: a sauvegarde de justice, destina-se a pessoa maior de idade, garantindo-lhe a manutenção das capacidades civis e políticas; a curatelle, àqueles que não têm 261 condições de agir por si mesmos, ensejando uma interdição parcial com relativo controle dos atos da vida civil; a tutelle, a mais rígida das interdições podendo restringir parcial ou totalmente os direitos civis e dos direitos cívicos e políticos. O direito civil alemão distingue claramente a capacidade da pessoa em exprimir a vontade e a capacidade de trabalhar, mantendo, sempre que possí- vel, o incapaz incluído na sociedade e exercendo parte dos atos da vida civil e, em especial, sua capacidade laborativa. No direito alemão está prevista a revi- são periódica da medida judicial de interdição do indivíduo, objetivando com isso a não perpetuação da situação restritiva. No Brasil, a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 traz o novo Código Civil com pequenas alterações no instituto da interdição (Título IV, trata da Tutela e da Curatela; Capítulo II Da Curatela, especificamente), mantendo-se quase que inalteradas as antigas bases do Código Civil de 1916, ou seja, estão sujeitos à curatela as pessoas absoluta e relativamente incapazes, ressalvada a incapacidade definida pela idade. Maria Helena Diniz, citando Carvalho Santos, Paulo de Lacerda e Débora Gozzo, entende que a interdição que visa à curatela É imprescindível para a proteção e amparo do interditando (suposto incapaz no procedimento de apuração de sua incapacidade), resguardando a segurança social ameaçada ou perturbada pelos seus atos. Trata-se de intervenção que atende aos imperativos de ordem social. Daí a relevância ético-jurídica da interdição, protetora dos bens e da pessoa maior considerada incapaz. É uma medida de proteção consistente em declarar, o poder judiciário, que em determinada pessoa não se verifica o pressuposto da plena capacidade para prover seus próprios negócios, falha que a inibe da prática de atos da vida civil. É, portanto, o procedimento especial de jurisdição voluntária, mediante o qual se apura a capacidade ou incapacidade de pessoas maior de 18 anos. Constatada a incapacidade, decretar-se-á a proibição, absoluta ou relativa, para que o interditado pratique, por si, ato jurídico, bem como ser-lhe-á nomeado curador, que deverá representá-la ou assisti-lo (DINIZ, p. 1354-1355). A interdição, sujeita à curatela, tal como disposta em nosso Código Civil é um direito das pessoas com deficiência, garantindo-lhes proteção especial. Embora desprovido de técnica, principalmente no que diz respeito à designa- ção da pessoa com deficiência mental e sensorial gerando confusão com “os excepcionais sem completo desenvolvimento mental”, termo este antigo e em desuso, pode-se afirmar que o atual Código Civil promoveu um avanço consi- derável para as pessoas com deficiência. O Art. 1.767 indica as pessoas passíveis de interdição: 262 · Aqueles que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para os atos da vida civil (inciso I); · Aqueles que, por outra causa duradoura, não puderem exprimir a sua vontade (inciso II); · Os deficientes mentais, os ébrios habituais e os viciados em tóxicos (inciso III); · Os excepcionais sem completo desenvolvimento mental (inciso IV); · Os pródigos (inciso V). O Código Civil poderia ter sido mais preciso e indicar quem são as pesso- as com deficiência mental, que por sua natureza ou grau de comprometimento, e as pessoas com deficiência sensorial ou múltipla, são passíveis de interdição total ou parcial, segundo os critérios dos incisos I e II ou seja, aqueles com falta de discernimento para os atos da vida civil e aqueles que não puderem expri- mir sua vontade. Daí a necessidade de melhor delimitar a concepção civilista, diante da realidade vivenciada pelas famílias e pessoas com deficiência. A interdição total ou parcial, sujeita à curatela conforme indica o Art. 1.767, decorre da capacidade da pessoa. Por isso os Arts. 3º e 4º, do Código Civil, que tratam da capacidade das pessoas, são os guias que definem a com- preensão do tema. O Art. 3º declara que são absolutamente incapazes de exercer pessoal- mente os atos da vida civil, os menores de dezesseis anos (inciso I); os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos (inciso II); os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade (inciso III). Os relativamente incapazes de exercer certos atos, ou à maneira de os exercer (Art. 4º) são os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos (inciso I); os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido (inciso II); os excepcionais, sem desenvolvi- mento mental completo (inciso III); os pródigos (inciso IV). Além da doença mental que não se confundem com a deficiência men- tal, o inciso I, do Art. 1.767, descreve a pessoa com deficiência mental, que se assume como sendo pessoas com deficiências mental grave, profunda e o autismo pois, geram a incapacidade total do indivíduo para a prática da vida civil, conforme revela o Art. 3º do Código Civil. Nesses casos é possível a decre- tação de interdição total. Para tanto, poderão ser consideradas as caracterizações de deficiência do Decreto nº 5.296/04 assim como, a indicação inserida na Portaria Interministerial MS/SEDH nº 2, de 21/11/2003, anexa à Lei nº 10.690, de 16/6/2003 (trata da isenção de imposto de produtos industrializados na aqui- 263 sição de automóveis para utilização de pessoas com deficiência) do DSM-IV – Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, associada à definição contida na Classificação Internacional de Doenças (CID-10) para pessoas com deficiência mental severa, profunda e autismo. Na CID, identificam-se os níveis severo/grave ou profundo da deficiência mental, observados os seguintes crité- rios: déficit significativo na comunicação, que pode ser manifestado através de palavras simples; atraso acentuado no desenvolvimento psicomotor; alteração acentuada no padrão de marcha (dispraxia); autocuidados simples sempre de- senvolvidos sob rigorosa supervisão e, déficit intelectual atendendo ao nível severo. No DSM-IV está o enquadramento do autismo. Aquelas pessoas que não puderem exprimir a sua vontade em vista de causas duradouras (Art. 1.767, II) é expressão ampla utilizada pelo legislador na qual é possível incluir as deficiências sensoriais (visual, auditiva) e múltiplas. Alerte- se que se tratam somente de pessoas que não possam validamente expressar sua vontade. Por exemplo: a cegueira associada à surdez somente nos casos em que a pessoa não detém conhecimento de qualquer forma de expressão ou, de pes- soas surdas que não tenham apreendido qualquer forma de comunicação (Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS, por exemplo), de maneira, repita-se, a validamente expressar sua vontade. Lembre-se que a previsão do atual inciso II substituiu a anterior expressão “surdo-mudo”, segue, portanto, o raciocínio de que o atual Código Civil visa atingir a deficiência sensorial e/ou associada a outras deficiênci- as. Nesses casos, a pessoa maior de 18 anos será declarada absolutamente inca- paz, devendo seu curador representá-la em todos os atos da vida civil. Se, no entanto, for considerada relativamente incapaz será assistida. Os incisos III e IV, do Art. 1.767, definem quem são as pessoas passíveis de interdição parcial, podendo ser decretada a incapacidade relativa, conforme o Art. 4º do Código Civil. O inciso III trata das pessoas com deficiência mental e, o IV dos excepcionais sem completo desenvolvimento mental, parecendo tra- tar da mesma categoria de pessoas, excluídas as deficiências mentais graves pois, inseridas no inciso I. Para estas pessoas, segundo o Decreto nº 5.296, de 2/ 12/04, considera-se o funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação anterior aos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como: comunicação; cuidado pessoal; habilidades sociais; utilização da comunidade; saúde e segurança; habi- lidades acadêmicas; lazer; e trabalho. Para as hipóteses de interdição parcial dos incisos III e IV o juiz assinará, segundo o estado ou o desenvolvimento mental do interdito (Art. 1.772), os limites da curatela que poderão ser aqueles do Art. 1.782, tais como: emprestar, 264 transigir, dar quitação, alienar, hipotecar, demandar ou ser demandado em juízo, e praticar, em geral, os atos que não sejam de mera administração. Além disso, a pessoa com deficiência interditada remanesce com o direito de “permanecer como dependente de seus pais, para fins de planos de saúde, bem como previdenciários, fazendo jus à pensão, em caso de morte; de ter um curador que o auxilie a gerir seus bens em seu proveito, com o dever de prestar contas em juízo” (FAVERO, 2004, p. 240). Saliente-se que a medida de proteção da curatela estendeu-se às pessoas com deficiência física sem capacidade de exprimir sua vontade e que fisica- mente são incapazes de gerir a própria vida – curatela administrativa especial, segundo o artigo 1.786 – sem a correspondente interdição. 1.2. Processo de Interdição O rito processual de interdição segue o Código de Processo Civil (Arts. 1.177-1.186), tendo como foro competente o domicílio do interditando, desta- cando-se as seguintes etapas: · petição inicial assinada por advogado particular ou defensor público, se a pessoa com deficiência ou sua família não puderem constituir advogado, observada a legitimidade de que trata o Art. 1.1774 do CPC. Ressalte-se que o legitimado “parente próximo” equivale a parente sucessível (descendente, ascendente em qualquer grau, e colaterais até o 4º grau – Arts. 1829, IV e 1839 do Código Civil). · audiência para ouvir o interditando (Art. 1.181, CPC); · apresentação de contestação do interditando no prazo de cinco dias (Art. 1.182, CPC); · a elaboração de laudo técnico (para subsidiar o convencimento do Juiz, Art. 1771), por especialista da área da deficiência em foco, apontando o grau de comprometimento da deficiência. É aconselhável que o laudo técnico tenha sido promovido por equipe multiprofissional que melhor poderá definir as questões socio-econômicas e ambientais que envolvem o interditando, não desprezadas as relações de proximidade e afetividade com eventual curador; · manifestação das partes interessadas sobre o laudo apresentado; · manifestação do Ministério Público; · sentença da interdição pelo Juiz, estabelecendo os limites da interdição com nomeação de curador que exercerá seu munus público. 2. As relações de trabalho A interdição total e a parcial de pessoas com deficiência não inibe sua capacidade laborativa, gerando conseqüências importantes nas relações indivi- duais de trabalho estabelecidas nos respectivos contratos de trabalho. 265 O direito de trabalhar da pessoa com deficiência, ainda que interditada total ou parcialmente, emana de valores que fundamentam o Estado democrático de direito, tais como a dignidade da pessoa humana (Art. 1º, III, Constituição) e, os valores sociais do trabalho (inciso IV), associados aos objetivos da República, prin- cipalmente o de promover a todos sem preconceitos ou discriminação (Art. 3º, IV, Constituição). Há comando constitucional expresso de proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência (Art. 7o, XXXI, Constituição) e, assegura com absoluta prioridade a proteção à criança e ao adolescente com deficiência, com a criação de programas de prevenção e atendimento especializado para os portadores de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do adolescente porta- dor de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de precon- ceitos e obstáculos arquitetônicos (Art. 227, II, Constituição). Observe-se que a igualdade está elevada à condição de direito (Art. 5º, caput, Constituição), e não mais a mera concepção de igualdade formal perante a lei, justificando medida de discriminação positiva ou ação afirmativa que atu- almente está sedimentada na reserva de cargos e empregos públicos para pes- soas com deficiência (Art. 37, VII, Constituição). Este comando constitucional que eleva a dignidade da pessoa com deficiência e sua condição de cidadão pelo exercício de uma atividade remunerada, encontra normatização específica nas Leis nº 8.112/90 que trata do regime jurídico dos servidores públicos e, na Lei nº 8.213/91 que dispõe no Art. 93 sobre a reserva de postos de trabalho para pessoa com deficiência em empresas com mais de cem empregados. A Lei nº 7.853/89, resultado do movimento de pessoas com deficiência na década de 80, tratando da política nacional para a integração da pessoa portado- ra de deficiência tem o caráter de norma declaratória do pleno exercício dos direitos individuais e sociais das pessoas com deficiência, determina que por regulamento serão organizadas as oficinas e congêneres integradas ao mercado de trabalho (Art. 2º, III, d). Referidas oficinas estão previstas no Decreto nº 3.298/99. A política insti- tuída no referido Decreto declara ser primordial o emprego e a inserção da pessoa com deficiência ao mercado de trabalho, bem como a sua incorporação ao sistema produtivo mediante regime especial de trabalho protegido (Art. 34), especificando as seguintes modalidades: · Nos casos de deficiência grave ou severa, poderá ser por meio do sistema cooperativado, conforme a Lei nº 9.867, de 10/11/99, sobre cooperativas sociais, observada a Lei nº 5.764/71 que contém regras de normatização para todas as sociedades cooperativas. 266 · Na forma de colocação competitiva, observado o processo de contratação regular, nos termos da legislação trabalhista e previdenciária. · Na forma de colocação seletiva, observado o processo de contratação regular, nos termos da legislação trabalhista e previdenciária mas que depende da adoção de procedimentos e apoios especiais para sua concretização. · Na forma de promoção do trabalho por conta própria, podendo ser por meio da ação de uma ou mais pessoas, mediante trabalho autônomo, cooperativado ou em regime de economia familiar, com vista à emancipação econômica e pessoal. Para estas duas últimas modalidades tem-se a participação de entidades beneficentes de assistência social (Art. 34, § 1o) que, por meio da intermediação, poderão contratar a pessoa com deficiência para a prestação de serviços em entidades pública ou privada; ou na comercialização de bens e serviços decorren- tes de programas de habilitação profissional de adolescente e adulto portador de deficiência em oficina protegida de produção ou terapêutica. As oficinas protegidas para pessoas com deficiência com sérios compro- metimentos de natureza física, mental ou sensorial funcionam no sistema de emprego apoiado que o Decreto nº 3.298/99 (Art. 34, §4oe 5o) conceitua como oficina protegida de produção e terapêutica: · Considera-se oficina protegida de produção a unidade que funciona em relação de dependência com entidade pública ou beneficente de assistência social e que tem por objetivo desenvolver programa de habilitação profissional para adolescente e adulto portador de deficiência, provendo-o com trabalho remunerado, com vista à emancipação econômica e pessoal relativa. · Considera-se oficina protegida terapêutica a unidade que funciona em relação de dependência com entidade pública ou beneficente de assistência soci- al, que tem por objetivo a integração social por meio de atividades de adaptação e capacitação para o trabalho de adolescente e adulto que devido ao seu grau de deficiência, transitória ou permanente, não possa desempenhar atividade laboral no mercado competitivo de trabalho ou em oficina protegida de produção. A lei da aprendizagem, nº 10.097, de 19/12/2000, recentemente alterada pela Lei nº 11.180/2005 (que dispõe sobre o projeto escola de fábrica, progra- ma universidade para todos – PROUNI e programa de educação tutorial – PET), elastece o limite de idade dos aprendizes para 24 anos (entre 14 e 24 anos). Condição relevante trazida pela lei foi a de prever a não aplicação aos aprendi- zes com deficiência da idade máxima de 24 anos, assim como a desnecessidade de comprovação da escolaridade de aprendiz com deficiência mental, deven- do, nesses casos serem consideradas as habilidades e competências relaciona- das com a profissionalização (Art. 428, § 5º e 6º, CLT). 267 Portanto, diante de tão sólidos fundamentos constitucional e legal, as pes- soas com deficiência mental, sensorial (auditiva, visual) ou múltipla, ainda que interditadas, mantêm o direito ao trabalho, desde que detenham habilidades e a qualificação profissional exigidas para as funções a serem exercidas. A qualifica- ção profissional, ressalte-se, pode ser promovida pelo próprio empregador no curso do contrato de trabalho, na modalidade de colocação seletiva, objetivando colaborar com a política de inserção com o trabalho protegido (Art. 35, II, § 1º, do Decreto nº 3.298/99). A manutenção da capacidade de trabalhar para as pessoas com deficiência interditadas é direito fundamental e propulsor da sua promoção para o desenvolvimento e independência. Para os discordantes, lembre-se que, na dicção de Maria Helena Diniz, a pessoa maior de 18 anos interditada “perde o seu direito de própria atuação na vida jurídica, visto que a interdição é a desconstituição, total ou parcial, da capa- cidade negocial” (DINIZ ; p.1354), gerando conseqüências diretas sobre seus bens que só poderão ser alienados em hasta pública. Ora, trabalho não é negó- cio, é direito social (Art. 6º, Constituição da República)! 2.1. Direitos do Interditado frente ao Contrato de Trabalho Uma vez estabelecida a relação contratual entre o empregador e o traba- lhador com deficiência interditado, este terá direito à assinatura da Carteira de Trabalho e Previdência Social e verbas decorrentes do contrato de trabalho (salário, repouso semanal remunerado, 13º salário, férias), assim como terá os ônus contributivo decorrente dos recolhimentos sociais (contribuição para o INSS, FGTS) e fiscais (descontos de imposto de renda). Relativamente aos atos que podem ser praticados pelo trabalhador inter- dito na vigência do contrato de trabalho, pode-se balizar nos mesmos poderes permitidos ao adolescente trabalhador (entre 14 e 18 anos – Art. 402, CLT), que a CLT trata como “menor” de 18 anos e, que o Código Civil identifica como relativamente incapaz. Para estes é concedida proteção jurídica por meio da representação ou assistência: os pais que detenham o poder familiar represen- tarão os filhos menores de 16 anos ou assistirão os maiores de 16 anos e meno- res de 18 anos (Arts. 1.634 e 1.690, CC); o menor que não esteja sob o poder familiar será representado ou assistido por tutor (Art. 1.747, I, CC). Considerada essa hipótese, é direito da pessoa com deficiência interditada parcialmente pois está, segundo a concepção do direito civil, no rol das pessoas relativamente incapaz (Art. 4º, CC): poder firmar recibo de pagamento de salá- rios e rescindir seu contrato de trabalho, sem a representação do curador. No entanto, comanda o Art. 439, CLT, não poderá dar quitação das verbas de resci- são do contrato de trabalho, quitação esta gerada pelo recebimento de indeni- 268 zações que lhe são devidas (aviso prévio, décimo terceiro salário, férias e ver- bas proporcionais). Verifica-se, neste aspecto, que o Art. 439, CLT tem resso- nância no atual Art. 1.782, CC quanto aos limites da curatela. A pessoa com deficiência interditada, se menor de 18 anos, deve obedecer à concepção da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, tal como prevista para o trabalhador adolescente: é-lhe proibida qualquer atividade em horário noturno (Art. 404, CLT), insalubre, perigosa, ou em serviços prejudiciais ao seu desenvol- vimento físico, psíquico, moral e social (parágrafo único, Art. 403, CLT). O que se quer preservar é o bom desenvolvimento da pessoa menor de 18 anos. A pessoa com deficiência, sob interdição total terá a regência de seu re- presentante ou curador para a prática dos atos decorrentes de toda a relação contratual: assinar recibo de pagamento de salários, rescindir o contrato de tra- balho e dar quitação das verbas decorrentes do contrato de trabalho. Tendo-se em conta que a interdição está diretamente atrelada à capacidade para a gerência da própria pessoa e para a administração de seus bens, pode-se afirmar que a pessoa com deficiência interditada maior de 18 anos devidamente habilitada para o trabalho, pode exercer qualquer tipo de função. Para tanto, o empregador observará os critérios gerais de saúde e segurança do trabalhador no ambiente de trabalho, bem como a obediência a critérios de prevenção para os ambientes insalubres e perigosos, retratados nas Normas Regulamentares da Por- taria nº 3.214/78, MTe, as de nºs 7, 9 e 17. Isto sem esquecer, em qualquer das hipóteses, que as regras de acessibilidade para pessoas com deficiência deverão ser implementadas nos ambientes de trabalho tais como, banheiros, rampas, si- nais sonoros, além de, eventualmente, lançar-se mão de procedimentos especiais (Art. 35, § 2º, Decreto nº 3.298/99) por meio de jornada variável, horário flexível, proporcionalidade de salário, ou apoios especiais (Art. 35, § 3º, Decreto nº 3.298/ 99) via a orientação, supervisão e ajudas técnicas. 3. Atribuição do Ministério Público no Processo de Curatela – Interdição Ao atuar, o Ministério Publico na condição de parte (Art. 1.769, CC), de defensor (Art. 1.770, CC) auxiliando o interditando na defesa de preservação de sua capacidade ou, de custos legis opinando pela decretação da interdição total ou parcial, nomeação de curador e fiscalização do exercício da curatela, deve atentar para que seja preservada a manutenção da capacidade laborativa do interditando. Defende-se que é dever do órgão ministerial, qualquer que seja a forma de atuação no processo, requerer ao juiz prolator da sentença que nela fique expressa a possibilidade de o interditado trabalhar5, evitando dúvidas de qualquer ordem. 269 4. Conclusão 1º A sentença que decreta a interdição deve ser periodicamente revista prevendo claramente a capacidade da pessoa para atos da vida cotidiana, prin- cipalmente a capacidade de trabalhar, permitindo ao interditado manter-se incluído na sociedade. 2º A interdição total ou parcial da pessoa com deficiência não a impede de trabalhar, ou exercer qualquer atividade laborativa, cabendo ao Ministério Público auxiliar na defesa da preservação desta capacidade. 3º Projeto de lei em discussão no Congresso Nacional, que trata do Estatu- to da Pessoa com Deficiência, prevendo que a interdição parcial ou total da pessoa com deficiência não impede o exercício do direito ao trabalho, segue o pensamento mundial da atual Convenção sobre os Direitos da Pessoa com De- ficiência, da ONU. Notas 1 Mas deve-se dar curadores aos mentecaptos, aos surdos, aos mudos e aos perpetuamente inválidos porque não podem estar à frente de seus negócios (GIODANI : Lumens, p. 14). 2 A Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência assinada pelo Brasil em 30/3/2007, traduzida por Romeu Sassaki http://www.mj.gov.br/sedh/ct/corde/ dpdh/sicorde. A versão em inglês está disponível no endereço da ONU http:// www.un.org/disabilities/convention, acesso em 9/4/2007. 3 Códigos Civil na íntegra são encontrados no endereço http://www.codigo-civil.net e http://www.legifrance.gouv.fr 4 Art. 1.177. A interdição pode ser promovida: I - pelo pai, mãe ou tutor; II- pelo cônjuge ou algum parente próximo; III- pelo órgão do Ministério Público. Art. 1.178. O órgão do Ministério Público só requererá a interdição: I - no caso de anomalia psíquica; II - se não existir, ou não promover a interdição alguma das pessoas designadas no artigo antecedente, incisos I e II; III - se, existir, forem menores ou incapazes. 5 Vinga a sugestão encaminhada ao Relator do Projeto no Senado Federal, Flavio Arns, e inserida no Projeto de Lei nº 7.699/06 que trata do Estatuto da Pessoa com Deficiência, de que os efeitos da interdição não devem interferir no direito do interditado, a pessoa com deficiência, ao trabalho, desde que esteja habilitado para o exercício das funções. No projeto de lei em discussão o tema está tratado no Art. 226: Art. 226. A interdição parcial ou total da pessoa com deficiência não impede o exercício do direito ao trabalho e o exercício do direito ao voto. Bibliografia CAMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei nº 7.699/06 Estatuto da Pessoa com Deficiência. http://www2.camara.gov.br. 270 DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado, 9a ed, São Paulo: Editora Saraiva, 2003. ENNECERUS, Ludwig; Theodor KIPP e Martin Wolff. Tratado de Derecho Civil. Parte General. 2ª ed. Barcelona : Bosch, 1953. FAVERO, Eugenia Augusta Gonzaga. Direitos das Pessoas com Deficiência: Garantia de Igualdade na Diversidade – Rio de Janeiro: WVA Ed., 2004. GIODANI, Mário Curtis. O Código Civil à luz do Direito Romano. Rio de Janeiro: Lumens, 1996. MACHADO, Francisco Roberto. Da Curatela dos Interditos no Novo Código Civil, Revista Dialética de Direito Processual, n.12, março 2004. ONU, Organização das Nações Unidas. Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência,http://www.mj.gov.br/sedh/ct/corde/dpdh/sicorde e http:// www.un.org/disabilities/convention. 271 272 SEÇÃO VIII – ACESSIBILIDADE A ACESSIBILIDADE COMO CONDIÇÃO DE CIDADANIA Rebecca Monte Nunes Bezerra Resumo: O Direito à acessibilidade é um meio de garantia dos direitos fundamentais como educação, saúde, trabalho, lazer, entre outros. Os titulares do direito constitucional de acessibilidade plena ao ambiente urbano e aos meios de transportes são todos os membros da coletividade. A legislação brasileira sobre direitos das pessoas com deficiência é uma das mais avançadas do mundo mas, exige implementação por meio de políticas públicas adequadas e conscientização da sociedade. Palavras Chave: Acessibilidade, Pessoa com deficiência, Decreto n. 5.296/04 Abstract: The right to accessibility is a way to guarantee the basic rights to education, health, work, leisure, among others. All the members of the community are entitled to the constitutional law of full accessibility to the urban environment and means of transportation. Brazilian legislation on rights of persons with disability is among the most advanced in the world although still demanding implementation by means of adequate public policies and society awareness. Keywords: Accessibility, Person with disabilities, Decree n. 5.296/04 273 1. Introdução A Constituição de 1988 elege, como fundamentos da República, a cidadania e a dignidade da pessoa humana (Art. 1º, incisos I e III, respectivamente) e, como um dos seus objetivos fundamentais, a promoção do bem de todos, sem preconceito de origem de raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (Art. 3º, inciso IV). Dispõe, também, no Art. 5º, caput, que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, e, no inciso XV, que é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz. Assim, está inserido na própria Constituição o tratamento igualitário que deve ser dispensado a todos – o qual só assume relevo enquanto princípio de igualdade de oportunidades – e o livre direito de ir e vir dos cidadãos em tempo de paz. Também se pode encontrar a garantia à livre locomoção na Declaração dos Direitos Humanos da ONU, assinada pelo Brasil em 10.12.1948, que estabelece: Artigo XIII – 1. Toda pessoa tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado. Mister destacar, ainda, que a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiên- cia ou Convenção de Guatemala, ratificada no Brasil pelo Decreto nº 3.956/01, reafirma que as pessoas com deficiência têm os mesmos direitos humanos e liberdades fundamentais que as outras pessoas e que estes direitos, inclusive o direito de não ser submetidas a discriminação com base na deficiência, emanam da dignidade e da igualdade que são inerentes a todo o ser humano. Como ensina Flávia Piovesan (2006, p. 327): O valor da dignidade humana impõe-se como núcleo básico e informador do ordenamento jurídico brasileiro, como critério e parâmetros de valoração a interpretação e compreensão do sistema constitucional instaurado em 1988. A dignidade humana e os direitos e garantias fundamentais vêm a constituir os princípios constitucionais que incorporam as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico ao sistema jurídico brasileiro [...]. A respeito, cabem algumas reflexões: Será que, mesmo nos dias atuais, todos estão tendo o direito de ir e vir livremente pelas calçadas, praças, edificações públicas e de uso coletivo? Como está a acessibilidade em nossa cidade? Está sendo respeitada a dignidade das pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida ao se construir edificações públicas ou de uso coletivo e ao se oferecer transporte coletivo urbano apenas para pessoas sem qualquer restri- ção de mobilidade? 274 No tocante à legislação pátria, em matéria de acessibilidade, está inserida na própria Carta de 1988, no Art. 227, § 2º, que a lei disporá sobre normas de construção dos logradouros e dos edifícios de uso público e de fabricação de veículos de transporte coletivo, a fim de garantir acesso adequado às pessoas com deficiência, e, no Art. 244, que tal fato também deverá ocorrer em relação à adaptação dos logradouros, dos edifícios de uso público e dos veículos de transporte coletivo atualmente existentes. A Lei nº 7.853/89, que dispõe sobre o apoio às pessoas com deficiência, entre outros assuntos, já estabelecia que os órgãos e entidades da Administração direta e indireta devem dispensar tratamento prioritário e adequado às pessoas com deficiência, determinando, na área de edificações, a adoção e a efetiva execução de normas que garantam a funcionalidade das edificações e vias pú- blicas, que evitem ou removam os óbices às pessoas com deficiência, permitin- do o acesso destas a edifícios, logradouros e meios de transportes. O Decreto nº 3.298/99, que regulamentou a Lei nº 7.853/89, também traz como um dos objetivos da Política Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência o acesso, o ingresso e a permanência delas em todos os serviços oferecidos à comunidade, dispensando um capítulo à acessibilidade na Adminis- tração Pública Federal, revogados seus artigos pelo Decreto nº 5.296/04. A questão da acessibilidade foi, novamente, tratada pelas Leis nºs. 10.048/ 00 e 10.098/00, que estabeleceram normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida, entre outros assuntos, as quais foram regulamentadas pelo já citado Decreto nº 5.296/04. A Lei nº 10.048/00 trata do atendimento prioritário às pessoas com defici- ência, aos idosos, às gestantes, às lactantes e às pessoas acompanhadas por crianças de colo e, também, da acessibilidade nos meios de transportes. A Lei nº 10.098/00, por sua vez, estabelece normas gerais e critérios bási- cos para a promoção da acessibilidade das pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida, trazendo definições do que sejam acessibilidade, barreiras, elementos de urbanização, mobiliário urbano, ajuda técnica e, de forma simplificada, quem seria considerada pessoa com deficiência ou com mobilida- de reduzida. Ao estabelecer as exigências em matéria de acessibilidade, a lei sob comento assim o fez em relação ao desenho e localização do mobiliário urbano, aos edifícios públicos ou de uso coletivo, aos edifícios de uso privado, aos veículos de transportes coletivos, aos sistemas de comunicação e sinaliza- ção, além de dispor sobre ajudas técnicas e instituir as medidas de fomento à eliminação de barreiras. 275 Destaque-se o poder constitucional conferido aos Municípios de legislar sobre assuntos de interesse local (Art. 30, inciso I, da Constituição Federal de 1988) e de suplementar a legislação federal e a estadual no que couber (Art. 30, inciso II), além de promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano (Art. 30, inciso VIII). Assim, antes mesmo da legislação federal mencionada, alguns Municípios já haviam legislado sobre a matéria, valendo registrar o Município de Natal, no Rio Grande do Norte, que sancionou a Lei Municipal nº 4.090, de 03 de junho de 1992, a primeira no Brasil a dispor sobre a eliminação das barreiras arquitetônicas existentes nos locais de fluxo de pedestre e do uso público, desde então já remetendo à observância das normas oriundas da Associação Brasileira de Normas Técnicas - ABNT, estabelecendo no Art. 1º., caput, que: Art. 1º. É obrigatória a adaptação dos edifícios e logradouros de uso público para acesso, circulação e utilização das pessoas portadoras de deficiência, de conformidade com as normas oriundas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Em 2001, foi aprovado o Estatuto da Cidade, Lei nº 10.257, que regulamenta os Arts. 182 e 183 da Constituição Federal e estabelece diretri- zes gerais da política urbana, determinando, entre outras exigências, o esta- belecimento, em cada Município, da função social da cidade e da proprieda- de urbana, respeitando sua individualidade, vocação, defendendo os ele- mentos necessários para o equilíbrio entre os interesses públicos e privados de seu território. Posteriormente, o Estatuto do Idoso - Lei nº 10.741/03 - trouxe um capí- tulo específico acerca do Direito à Liberdade, ao Respeito e à Dignidade, onde consta ser obrigação do Estado e da Sociedade assegurar ao idoso a liberdade, o respeito e a dignidade, como pessoa humana e sujeito de direitos civis, políti- cos, individuais e sociais, garantidos na Constituição e nas leis (Art. 10, caput), compreendendo o direito à liberdade, entre outros aspectos, a faculdade de ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários, ressalvadas as res- trições legais (Art. 10, §1º, inciso I). Estatuiu, ainda, a eliminação de barreiras arquitetônicas e urbanísticas nos programas habitacionais públicos ou subsidia- dos com recursos públicos, para garantia da acessibilidade ao idoso (Art. 38, inciso III), entre outras determinações. Recentemente foi assinada pelo Brasil (em 30 de março de 2007, na solenidade de abertura da adesão dos Estados Membros, juntamente com o Protocolo facultativo de monitoramento), a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, a 276 qual traz como um dos seus princípios a acessibilidade (Artigo 3º, f), determi- nando aos Estados-Partes o compromisso de, entre outras ações: Realizar ou promover a pesquisa e o desenvolvimento de produtos, serviços, equipamentos e instalações com desenho universal, conforme definidos no Artigo 2º. da presente Convenção, que exijam o mínimo possível de adaptação e cujo custo seja o mínimo possível, destinados a atender às necessidades específicas de pessoas com deficiência, a promover sua disponibilidade e seu uso e a promover o desenho universal quando da elaboração de normas e diretrizes. (Artigo 4º, 1, f). Dispensa a citada Convenção um artigo específico para a acessibilida- de, estabelecendo a obrigação dos Estados-Partes de tomarem as medidas apropriadas, entre tantas outras, para assegurar às pessoas com deficiência o acesso, em igualdade de oportunidade com as demais pessoas, ao meio físico, ao transporte, à informação e comunicação, inclusive aos sistemas e tecnologias da informação e comunicação, bem como outros serviços e ins- talações abertos ou propiciados ao público, tanto na zona urbana como na rural. Igualmente deverão envidar esforços para dotar os edifícios e outras instalações abertas ao público, de sinalização em Braille e em formatos de fácil leitura e compreensão, para promover o acesso de pessoas com defici- ência a novos sistemas e tecnologias da informação e comunicação, inclusi- ve à Internet, além de promover o desenho, o desenvolvimento, a produ- ção e a disseminação de sistemas e tecnologias de informação e comunica- ção em fase inicial, a fim de que estes sistemas e tecnologias se tornem acessíveis a um custo mínimo. O que se pode observar é que a Convenção mencionada constitui-se em mais um instrumento para a implementação da acessibilidade, reafirmando di- reitos já estabelecidos por nossa legislação pátria, esperando-se que venha aquela a ser ratificada pelo Brasil, incorporando-se ao nosso ordenamento jurídico. Pode-se afirmar, também, que a legislação brasileira, em matéria de direi- tos das pessoas com deficiência, é uma das mais avançadas do mundo, com práticas de ações afirmativas ainda não adotadas por outros países. Entretanto, urge implementá-la. 2. O que é Acessibilidade. A Lei nº 10.098/00 define acessibilidade como sendo a possibilidade e condição de alcance para utilização, com segurança e autonomia, dos espaços, mobiliários e equipamentos urbanos, das edificações, dos transportes e dos sis- temas e meios de comunicação por pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida (Art. 2º, inciso I). Nesse mesmo sentido é a disposição contida na NBR 9050:2004, que conceitua a acessibilidade como sendo a possibilidade e condi- 277 ção de alcance, percepção e entendimento para utilização, com segurança e autonomia de edificações, espaço, mobiliário e equipamento urbano. Realmente, no que tange à acessibilidade, é fundamental que as pessoas possam utilizar os ambientes e serviços com autonomia e segurança, ainda se apresentarem alguma mobilidade reduzida, sem serem condenadas à segrega- ção social, podendo trabalhar, estudar, cuidar de sua saúde, ter acesso ao lazer, visitar parentes ou amigos que residam em edifícios, independente do auxílio de outra pessoa. E tal conceito foi ampliado para qualificar, além das edificações, espaços ou ambientes físicos, também os meios de comunicações e o sistema de transportes. Não se pode falar que o direito à acessibilidade está sendo respeitado se, por exemplo, em uma conferência, ou até mesmo em uma sala de aula, uma pessoa surda não tiver condição de acesso à informação que está sendo transmi- tida por faltar a presença de um intérprete da Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS. Adriana de Almeida Prado (2003, p. 22) coloca que “o objetivo da aces- sibilidade é proporcionar a todos um ganho de autonomia e mobilidade, princi- palmente àquelas pessoas que tem sua mobilidade reduzida ou dificuldade de comunicação, para que possam usufruir dos espaços e das relações com mais segurança, confiança e comodidade”. Para que uma edificação ou espaço seja considerado acessível é necessá- rio que ele tenha sido projetado e executado em conformidade com as exigên- cias legais e de acordo com o estabelecido nas Normas Brasileiras (NBRs) da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Assim, não podem ser considerados como acessíveis locais em que as exigências legais referentes à acessibilidade foram observados de modo parcial. Não existe a meia-acessibilidade. Um espaço é ou não acessível. 3. Barreiras arquitetônicas Barreiras arquitetônicas são aquelas existentes nas edificações, vias ou espaços públicos, constituindo um obstáculo que impeça ou dificulte o acesso ou utilização por determinada pessoa. A Lei nº 10.098/00 define barreira como sendo qualquer entrave ou obs- táculo que limite ou impeça o acesso, a liberdade de movimento e a circulação, com segurança das pessoas, classificando-a em: · barreiras arquitetônicas urbanísticas - as existentes nas vias públicas e nos espaços de uso público; · barreiras arquitetônicas na edificação - as existentes no interior dos edifícios públicos e privados; 278 · barreiras nas comunicações - qualquer entrave ou obstáculo que dificulte ou impossibilite a expressão ou o recebimento de mensagens por intermédio dos meios ou sistemas de comunicação, sejam ou não de massa. Para evitar o surgimento de barreiras, um espaço tem que ser concebido e executado de modo a ser utilizado com segurança e autonomia por todos os seus destinatários. Em uma edificação de uso público, por exemplo, tem que ser verificada a acessibilidade desde a calçada que circunda o lote do terreno, passando pelo estacionamento, portas, banheiros, locais de refeições e demais ambientes. 4. Barreiras atitudinais O próprio desinteresse pela eliminação das barreiras arquitetônicas ou pelas soluções ambientais que podem ser encontradas para cada caso arquitetônico onde a acessibilidade não está garantida, muitas vezes por indife- rença, pode ser considerado uma barreira atitudinal. Afinal, por que projetar e construir apenas para alguns? É importante regis- trar que não é sequer razoável se admitir nos tempos atuais a falta de conheci- mento de que a humanidade é desigual; e assim, também, as suas necessidades. Como afirma Laura Subies (2005, p. 203), “Algunas personas opinan que uma ciudad poco o nada accesible es el rasgo de uma sociedad discriminatória. Em realidad, sostenemos aquí que la sociedad toda más que pecar de discriminación, peca de indiferencia”. Para Eugênia Augusta Gonzaga Fávero (2004, p. 182), a barreira de atitude é Aquela que faz com que as pessoas com deficiência não sejam vistas como titulares dos mesmos direitos de qualquer pessoa. A que faz com que os programas de acessibilidade sejam destinados apenas a locais que outros considerem bons para quem tem deficiência, mas esquecendo-se que esses cidadãos também querem ir a boates, motéis, praticar esportes, entre outros. A barreira que determina que apenas alguns programas de rádio, televisão, sítios eletrônicos (normalmente sobre seus direitos) estejam adaptados para pessoas com deficiência sensorial, esquecendo-se de que elas querem e têm direito de acesso a qualquer tipo de programação. A desigualdade de oportunidades, portanto, também pode ser entendida como uma barreira atitudinal, ao se desconsiderar, inclusive, o potencial de uma pessoa a ser desenvolvido, tenha ela ou não alguma deficiência. 5. A quem prejudica a existência de barreiras arquitetônicas Seguramente pode-se dizer que a existência de barreiras arquitetônicas prejudica a TODOS, ainda que uns sejam prejudicados em maior proporção que outros, dependendo da mobilidade da pessoa e do obstáculo a ser vencido. 279 6. Normas técnicas Normas técnicas são especificações técnicas aprovadas pela Organiza- ção Internacional de Normas – ISO. Baseiam-se em resultados conjuntos da ciência, da tecnologia e da experiência humana. As normas técnicas são elaboradas por especialistas nos assuntos a que se destinam, com reuniões abertas ao público interessado, e contêm as configu- rações técnicas e conceituais necessárias para a obtenção de espaços acessíveis (NBR 9050:2004, por exemplo), nelas constando soluções de adoção obrigató- ria, e outras de cunho recomendatório. Tal aspecto é relevante quando se vai cobrar a garantia da acessibilidade nas edificações e nos espaços urbanos, pois é preciso se levar em consideração o que é “exigido” e o que é “sugerido” pela norma. O que se pode interpretar do texto normativo é que há um mínimo de acessibilidade sem o qual não se pode considerar como preenchidos os requisitos para que um ambiente possa ser acessado e utilizado com segurança por pessoas com mobilidade reduzida, o que não impede que o projetista leve em consideração as recomendações ali conti- das, de forma a projetar ambientes os mais confortáveis e seguros possíveis. 7. O que deve ser levado em consideração na promoção da acessibilidade em um Município Além das Leis nº 10.048/00; nº 10.098/00; nº 10.257/01 (Estatuto da Cidade), entre outras de âmbito federal, o Art. 14 do Decreto nº 5.296/04 esta- belece que, na promoção da acessibilidade, deverão ser observadas as regras gerais previstas no Decreto, as normas técnicas de acessibilidade da ABNT e as disposições contidas nas legislações dos Estados, Municípios e do Distrito Fede- ral. No que tange à legislação municipal, podem-se destacar o Plano Diretor Municipal, o Plano Diretor de Transporte ou de Mobilidade, o Código de Obras, o Código de Postura e o Código das Calçadas. O Plano Diretor da Cidade é o instrumento básico para a implantação de uma política urbana em um Município. Nele podem ser encontradas as exigên- cias fundamentais de ordenação da cidade, assegurando o atendimento das ne- cessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desen- volvimento das atividades econômicas (Art. 39, da Lei nº 10.257/01). É obriga- tório para as cidades com mais de vinte mil habitantes, ou em outros casos previstos no Art. 41 do Estatuto da Cidade, como nos Municípios situados em regiões metropolitanas ou aglomerações urbanas, em áreas de interesse político ou sob influência de empreendimentos de grande impacto ambiental. O Plano Diretor faz parte do planejamento municipal, devendo a programação orça- 280 mentária (por intermédio do Plano Plurianual, da Lei de Diretrizes Orçamentári- as e a Lei Orçamentária Anual) refletir as diretrizes e prioridades nele contidas. O Plano Diretor de Transporte ou Plano Diretor de Mobilidade é obriga- tório para as cidades com mais de 500 mil habitantes, conforme o disposto no Art. 41, §2º, da Lei nº 10.257/01, devendo ser compatível com o plano diretor ou nele encontrando-se inserido, devendo também tratar, entre outros assuntos, da reorientação do desenho urbano e como deve se dar a circulação em uma cidade. Tal plano consiste em mais um instrumento para a construção de cida- des “mais eficientes, com mais qualidade de vida, ambientalmente sustentáveis, socialmente includentes e democraticamente geridas” (Ministério das Cidades, caderno 3, p. 23). O Código de Obras e Edificações trata-se de uma lei municipal que tem a função de definir normas técnicas para a construção de edificações diversas, devendo garantir o acesso e a utilização das edificações e espaços urbanos para as pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida, entre outros aspectos. O Código de Postura é a lei municipal que, entre outros assuntos, discipli- na o uso dos espaços públicos e de uso coletivo. O Código das Calçadas é a Lei ou o Decreto Municipal que dita as regras para o projeto, a construção, a manutenção e a conservação das calçadas em um município, inclusive no tocante a sua utilização, material empregado, rebai- xamento das guias, faixa de pedestres, e demais assuntos relacionados ao tema. 8. Inovações do Decreto nº 5296/04, o Decreto da Acessibilidade 8.1. Noções Gerais O Decreto nº 5.296/04, que regulamentou as Leis nº 10.048/00 e nº 10.098/ 00, viabiliza, de forma efetiva, a cobrança de projetos, construções e fabricações de veículos automotores coletivos acessíveis, como será visto adiante. Estabelece, ainda, normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida nas edificações públicas ou privadas de uso coletivo ou multifamiliar, no espaço pú- blico, logradouros e seu mobiliário, nas comunicações e sinalizações, entre outros. Determina que o planejamento e a urbanização das vias públicas, dos parques e dos demais espaços de uso público devem ser concebidos e execu- tados de forma a torná-los acessíveis às pessoas com deficiência ou com mobi- lidade reduzida (Art. 3o). Segundo o disposto no Art. 2º, caput e incisos, ficam sujeitos ao cumpri- mento de suas disposições: 281 a) a aprovação de projeto de natureza arquitetônica e urbanística, de comunicação e informação, de transporte coletivo, bem como a execução de qualquer tipo de obra pública ou de uso coletivo; b) a outorga de concessão, permissão, autorização ou habilitação de qualquer natureza, o que deve ocorrer, por exemplo, no que tange à concessão ou permissão do transporte coletivo urbano; c) a aprovação de financiamento de projetos que se utilizem de recursos públicos, isto por meio de qualquer instrumento como convênio, acordo, ajuste, contrato ou similar; d) a concessão de aval da União na obtenção de empréstimos e financiamentos internacionais por entes públicos ou privados. Com tais medidas espera-se que não sejam mais utilizados recursos pú- blicos em obras inacessíveis, nem que sejam prestados serviços públicos, por intermédio de concessão ou permissão, por pessoa jurídica que não obedeça aos requisitos de acessibilidades exigidos pelo Decreto nº 5.296/04 em suas edificações, instalações e demais bens. Outro importante passo para a obtenção da acessibilidade é a obrigatoriedade de observância dos critérios de acessibili- dade por ocasião do pedido de alvará de construção ou reforma de edificações, havendo previsão de igual necessidade, também, quando da concessão do “ha- bite-se”, oportunidade em que será verificada, entre outras questões, se o pro- jeto de acessibilidade foi executado da forma como foi projetado e previamen- te aprovado pelo Poder Público Municipal. Merece ser destacado que o Decreto nº 5.296/04, no Art. 10, ao estabe- lecer que a concepção e a implementação dos projetos arquitetônicos e urba- nísticos devem atender aos princípios do desenho universal1, tendo como refe- rências básicas as normas técnicas de acessibilidade da ABNT, a legislação espe- cífica e as regras nele contidas, certamente não quis dar aos elementos normativos citados o caráter de facultatividade, mas, sim, de obrigatoriedade, uma vez que devem “se basear” no que está estabelecido em matéria de acessibilidade. Ou- tra interpretação não pode ser dada, até mesmo diante do caráter impositivo que é estabelecido pela redação dos citados dispositivos. O Decreto nº 5.296/04 dispõe, ainda, que as características do desenho e a instalação do mobiliário e equipamento urbanos devem atender às condições estabelecidas nas normas técnicas de acessibilidade da ABNT, inclusive no to- cante a marquises, toldos, elementos de sinalização luminosos, cabines telefôni- cas e terminais de auto-atendimento de produtos e serviços, telefones públicos sem cabine, uso do solo para posteamento, espécies vegetais com projeção sobre a faixa de circulação de pedestre, entre outros, tudo de forma a não dificultar ou impedir a circulação. 282 Estabelece, também, o prazo de trinta meses, a contar da sua publicação (até 02.06.2007), para que as edificações de uso público já existentes venham garantir a acessibilidade às pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzi- da (Art. 19, §1º). Para as edificações de uso coletivo já existentes, como teatros, cinemas, auditórios, estádios, ginásios de esporte, casa de espetáculos e salas de conferências, o prazo conferido para que fossem cumpridas as exigências pre- vistas nos caput e parágrafos do Art. 23 foi de quarenta e oito meses (até 02.12.2008). A construção, reforma ou ampliação de edificações de uso público ou coletivo, ou suas mudanças de destinação, deverão ser executadas de modo que sejam ou se tornem acessíveis (Art. 11, caput). Cumpre ressaltar que a eliminação, redução ou superação de barreiras nos bens culturais imóveis devem estar de acordo com a Instrução Normativa nº 01/03 do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, nos termos do Art. 30 do Decreto sob comento. 8.2. O atendimento prioritário e a acessibilidade O Decreto nº 5.296/04, regulamentador da Lei nº 10.048/00, especifica, no Art. 6º, que o atendimento prioritário dispensado às pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida, aos idosos, gestantes, lactantes e pessoas com crian- ça de colo, compreende o tratamento diferenciado e o atendimento imediato. Inclui-se, na concepção de tratamento diferenciado, a oferta de assentos de uso preferencial sinalizados, espaços e instalações acessíveis; mobiliário de recepção e atendimento em conformidade com as normas técnicas de acessibi- lidade da ABNT; disponibilidade de área especial para embarque e desembar- que de pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida; sinalização ambiental (e em se tratando de edificação pública ou de uso coletivo, inclusive as institui- ções financeiras, para serem consideradas acessíveis a sinalização inclui as op- ções táteis previstas na NBR9050:2004); admissão de entrada e permanência de cão-guia ou cão-guia de acompanhamento junto de pessoa com deficiência ou de treinador, mediante apresentação da carteira de vacinação atualizada do animal; a disponibilidade de pelo menos 01 (um) telefone de atendimento adaptado para comunicação com e por pessoas com deficiência auditiva nos órgãos da administração pública direta, indireta e fundacional, nas empresas prestadoras de serviços públicos e nas instituições financeiras (Art. 6º, § 4º, do Decreto nº 5.296/04); a existência de local de atendimento específico para as pessoas beneficiárias do atendimento prioritário, neste caso, é claro, exigindo- se que tal local esteja em conformidade com as exigências legais e contidas nas normas técnicas de acessibilidade da ABNT, entre outros fatores indispensáveis para o oferecimento do serviço. 283 Como atendimento prioritário, entende-se aquele a ser prestado à pessoa beneficiária antes de qualquer outra, depois de concluído o que estiver em andamento (Art. 6º, §2º, do Decreto nº 5.296/04). 8.3. Obrigatoriedade de ambientes de uso internos também acessíveis Merece atenção a obrigatoriedade de serem construídas ou de se torna- rem acessíveis as edificações de uso coletivo, na interligação de todas as par- tes de uso comum ou abertas ao público (Art. 18, caput, do Decreto nº 5.296/ 04). Tem-se, portanto, que observar a necessidade de serem propiciados ambientes de uso internos também acessíveis nos casos de empresas que contem com mais de 100 (cem) trabalhadores, diante da obrigatoriedade de se empregar pessoas com deficiência por imposição da Lei nº 8.213/91, pois, caso não observado, restaria inviável a contratação de pessoas com deficiên- cia física, por exemplo. 8.4. Unidades Sanitárias (banheiros) acessíveis, com entrada independente Uma grande inovação do Decreto nº 5.296/04 é a obrigatoriedade da existência de unidades sanitárias com entradas independentes das demais, o que, em uma primeira análise, poderia ser interpretada como algo que segue na contramão da inclusão social da pessoa com deficiência, por ser estabelecido um ambiente segregado. Todavia, justifica-se a exigência quando se verifica, muitas vezes, a necessidade de utilização de banheiros por pessoas com defici- ência ou com mobilidade reduzida impossibilitadas de fazê-lo de maneira autô- noma e que estão acompanhados de pessoas de sexos diferentes. Entretanto, não há nenhum óbice (e até deve ser assim planejado) que as demais unidades sanitárias acessíveis sejam edificadas nos mesmos espaços das outras, observando-se também as peculiaridades previstas nas normas téc- nicas, tais como: dimensões mínimas para o ambiente, para a abertura livre de porta, com giro para fora e com puxador horizontal associado à maçaneta tipo alavanca; instalação de dispositivo de sinalização de emergência ao lado da bacia e do box do chuveiro para acionamento em caso de queda; instalação de barras de apoio; altura apropriada para porta-objetos, cabide, saboneteira e toa- lheiro, entre outras igualmente previstas na NBR9050:2004 para o lavatório, mictório, acessórios e boxes. Em síntese, no que tange à instalação de unidades sanitárias acessíveis e com entrada independente, exige o Decreto nº 5.296/04 que: a) as edificações de uso público a serem construídas devem prever sani- tários destinados ao uso por pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzi- da distribuídos na razão de, no mínimo, 01(uma) cabine para cada sexo, em 284 cada pavimento da edificação, com entrada independente dos sanitários coleti- vos, obedecendo às normas técnicas de acessibilidade da ABNT; b) as edificações de uso público já existentes terão o prazo de 30 (trinta) meses a contar da publicação do Decreto (portanto até o dia 02.06.07) para garantir, pelo menos, 01 (um) banheiro acessível por pavimento, com entrada independente, distribuindo-se seus equipamentos e acessórios de modo que possam ser utilizados por pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida; c) nas edificações de uso coletivo a serem construídas, ampliadas ou re- formadas, onde devem existir banheiros de uso público, os sanitários destinados ao uso por pessoa com deficiência deverão ter entrada independente dos de- mais e obedecer às normas da ABNT; d) nas edificações de uso coletivo já existentes, onde haja banheiros destina- dos ao uso público, os sanitários para o uso por pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida deverão estar localizados nos pavimentos acessíveis, ter entra- da independente dos demais sanitários, se houver, e obedecer às normas da ABNT. 8.5. Edificações de uso privado multifamiliares A construção de edificações de uso privado multifamiliares, assim como a construção, reforma ou ampliação de edificações de uso coletivo devem aten- der aos preceitos de acessibilidade na interligação de todas as partes de uso comum ou abertas ao público, nos termos do Art. 18, caput, do Decreto nº 5.296/04, entre elas os acessos, piscinas, andares de recreação, salão de festas e reuniões, saunas e banheiros, quadras esportivas, portarias, estacionamentos e garagens, entre outras partes das áreas internas e externas, devendo ser incluí- da, inclusive, a calçada, a cabine do elevador, o bar e balcões destinados ao apoio em recepções, a cozinha do salão de festas etc. O Decreto é omisso no que tange à exigência de tornar as áreas de uso comum acessíveis por ocasião de reforma ou ampliação, como o fez em relação às demais espécies de edificações, devendo ser observado se tal exigibilidade está inserida na legislação estadual ou municipal, o que em muito contribuirá para que as edificações multifamiliares já construídas também se tornem acessíveis. 8.6. Edificações escolares acessíveis Os estabelecimentos de ensino de qualquer nível, etapa ou modalidade, público ou privado, deverão proporcionar condições de acesso e utilização de todos os seus ambientes ou compartimentos para pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida, inclusive salas de aulas, bibliotecas, auditórios, ginási- os e instalações desportivas, laboratórios, áreas de lazer e sanitários (Art. 24, caput, do Decreto nº 5.296/04). 285 Em se tratando de estabelecimento de ensino público, a data limite esta- belecido pelo já citado diploma legal para que as edificações estejam livres de obstáculos arquitetônicos é 02.06.07 (trinta meses após a sua publicação). Quanto aos privados, o prazo referido extinguir-se-á em 02.12.08 (quarenta e oito me- ses após a sua publicação). Tal exigência coaduna-se com o disposto no Art. 205 da Constituição Federal, que tem a educação como sendo um direito de TODOS e um dever do Estado e da família, sendo promovida e incentivada com a colaboração da soci- edade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exer- cício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Já o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), no Art. 55, determina que os pais ou responsáveis têm a obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino, assegurando à criança e ao adolescente, no Art. 53, caput e incisos, igualdade de condições para o acesso e permanên- cia na escola, o direito de serem respeitados por seus educadores, de contesta- rem critérios de avaliação, de se organizarem e participarem de atividades estu- dantis, além de terem acesso à escola pública mais próxima às suas residências. É indispensável, pois, que a totalidade dos estabelecimentos de ensino se tornem acessíveis a todos os alunos, tenham ou não alguma deficiência ou mobilidade reduzida, não se admitindo como justificativa, em hipótese alguma, à recusa de matrícula à pessoa com deficiência, o fato da escola não oferecer acessibilidade em todos os seus ambientes, constituindo-se em uma escola ape- nas para ALGUNS. Portanto, para atender aos alunos com deficiência, é necessá- rio que os estabelecimentos de ensino estejam livres de barreiras arquitetônicas, pedagógicas e de comunicação. Conforme afirmou Giordana Calado (2006, p. 34): Especificamente no que se refere ao ambiente escolar, para receber de maneira adequada todo e qualquer aluno, oferecendo condições propícias para o aprendizado, troca e interação das crianças, é fundamental que o ambiente seja projetado de maneira a permitir a inclusão, viabilizando a recepção e o acolhimento dos alunos, independente de suas diferenças física, de expressão, de comunicação, de aprendizado. Enfim, tratar a todos, igualmente, em suas singularidades, com respeito e dignidade, conforme prevê a legislação. Reforça o Decreto nº 5.296/04 ainda mais a necessidade de uma edificação escolar livre de obstáculos arquitetônicos ao exigir, para a concessão de autori- zação de funcionamento, de abertura, ou renovação de curso pelo Poder Públi- co, a comprovação pelo estabelecimento de ensino de que está cumprindo as regras de acessibilidade (arquitetônica, urbanística e de comunicação) conforme a ABNT (Art. 24, § 1º, inciso I); que coloca à disposição de professores, alunos, 286 servidores e empregados com deficiência ou mobilidade reduzida ajudas técni- cas que permitam o acesso às atividades escolares e administrativas em igualda- de de condições com as demais pessoas (Art. 24, § 1º, inciso II) e que efetua ordenamento interno contendo normas sobre o tratamento a ser dispensado aos alunos, professores, servidores e empregados com deficiência (Art. 24, § 1º, inciso II). 8.7. Declaração de cumprimento das regras de acessibilidade por ocasião da assinatura da Anotação de Responsabilidade Técnica – ART Outra exigência de grande importância para a garantia da acessibilidade arquitetônica e urbanística diz respeito à necessidade da declaração de atendi- mento do projeto às regras de acessibilidade por ocasião da anotação da respon- sabilidade técnica dos projetos junto às entidades de fiscalização profissional das atividades de Engenharia, Arquitetura e correlatas (Art. 11, § 1º, do Decreto nº 5.296/04). Com efeito, o profissional, ao assinar a sua Anotação de Responsabili- dade Técnica – ART junto ao Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia – CREA, tem a obrigação de declarar que o seu projeto atende às regras de acessibilidade previstas nas normas técnicas da ABNT, na legislação específica e no Decreto nº 5296/04, inclusive com base em decisão do Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia - CONFEA, em abril de 2005. E o Código de Ética Profissional da Engenharia, da Arquitetura, da Agro- nomia, da Geologia, da Geografia e da Meteorologia, aprovado pela Resolução nº 1.002/02 do CONFEA, no seu Art. 13 dispõe que constitui infração ética todo ato cometido pelo profissional que atente contra os princípios éticos, descumpra os deveres de ofício, pratique condutas expressamente vetadas ou lese direitos reconhecidos de outrem. Assim, o profissional que afirmar, por ocasião da assinatura da ART junto ao CREA, que o seu projeto atende às normas de acessibilidade sem que real- mente esteja, estará sujeito a processo ético disciplinar previsto em regulamen- to aprovado pela Resolução nº 1.004/03, do CONFEA, sem prejuízo de eventu- al apuração de responsabilidade criminal. 8.8. Acessibilidade nos transportes Diante da existência de capítulo específico sobre o tema “Transportes” na presente obra, pretende-se, aqui, apenas tecer algumas considerações em relação à matéria, com ênfase na questão da acessibilidade. No campo do transporte coletivo, a Constituição de 1988, no Art. 244, estabelece que a lei disporá sobre a adaptação dos logradouros, dos edifícios de uso público e dos veículos de transporte coletivo atualmente existentes a fim 287 de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência, conforme o disposto no Art. 227, § 2º. A nível infraconstitucional, a Lei nº 7.853/1989, dispõe sobre a adoção e a efetiva execução de normas que garantam a funcionalidade das edificações e vias públicas, que evitem ou removam os óbices às pessoas portadoras de deficiência, permitam o acesso destas a edifícios, a logradouros e a meios de transporte, pelos órgãos da Administração direta e indireta (Art. 2º, Parágrafo Único, inciso V, alínea “a”), tendo, entretanto, caráter meramente de norma pragmática. Em 2000, a Lei nº 10.048 estabelece, de forma clara, que os veículos a serem produzidos após doze meses de sua publicação devem ser planejados de forma a facilitar o acesso a seu interior das pessoas com deficiência (Art. 5º, caput) e que os proprietários de veículos de transporte coletivo em utilização terão o prazo de cento e oitenta dias, a contar da sua regulamentação, para procederem às adaptações necessárias ao acesso facilitado das já referidas pes- soas (Art. 5º, § 2º.). Prevê, ainda, multa para o caso de infração do estabelecido pelas empresas concessionárias de serviço público por veículo que se apresen- te em desconformidade com a lei. Estabelece que o Poder Executivo regula- mentaria a lei no prazo de sessenta dias a contar de sua publicação, o que se deu em 09.11.2000. A Lei nº 10.098/04, por sua vez, estabelece, no Art. 16, que os veículos de transporte coletivo deverão cumprir os requisitos de acessibilidade estabele- cidos nas normas técnicas. Entretanto, somente em 2004, as Leis nº 10.048/00 e nº 10.098/00 fo- ram regulamentadas pelo Decreto nº 5.296/04, como já mencionado no corpo do presente texto, sendo reservado um capítulo para a acessibilidade aos servi- ços de transporte coletivo (terrestre, aquaviário e aéreo), considerando-se como integrante desses serviços os veículos, terminais, estações, pontos de paradas, vias principais, acessos e operação. Contudo, constam no Decreto nº 5.296/04 prazos distintos do estabele- cido pelas leis regulamentadas, senão vejamos: a) prazo de até vinte e quatro meses a contar da data de edição das normas técnicas para fabricação de veículos e dos equipamentos de transporte coletivo rodoviário (urbano, metropolitano, intermunicipal e interestadual) para que todos os modelos e marcas de veículos de transporte coletivo rodoviário sejam fabricados acessíveis e encontrem-se disponíveis para integrar a frota operante (vide NBR 14022:2006); b) prazo de até doze meses a contar da data da publicação do Decreto para a elaboração das normas técnicas de acessibilidade para fabricação dos veículos e dos equipamentos de transporte coletivos; 288 c) substituição da frota operante atual por veículos acessíveis de forma gradativa, conforme o prazo previsto nos contratos de concessão e permissão deste serviço; d) prazo de cento e vinte meses a partir da publicação do Decreto para que a frota de veículos de transporte coletivo rodoviário e a infra-estrutura dos serviços destes transportes estejam totalmente acessíveis; e) prazo de doze meses a contar da publicação do Decreto para a elabo- ração das normas técnicas para adaptação dos veículos e dos equipamentos de transporte coletivo rodoviário em circulação de modo a torná-lo acessíveis às pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida; f) prazo de até vinte e quatro meses a contar da implementação dos programas de avaliação de conformidade desenvolvidos e implementados para as adaptações dos veículos em operação nos serviços de transporte coletivo rodoviário, bem como os procedimentos e equipamentos a serem utilizados nestas adaptações. Então, como se pode observar, houve uma alteração no prazo para que fossem procedidas as adaptações necessárias nos veículos de transporte coleti- vo, que passou de cento e oitenta dias a contar da regulamentação da Lei nº 10.048/00 para cento e vinte meses a partir da publicação do Decreto nº 5.296/ 04, prazo por ele estabelecido para que a frota de veículos de transporte cole- tivo rodoviário e a infra-estrutura dos serviços destes transportes estejam total- mente acessíveis, o que se entende equivocado diante da hierarquia das leis, não sendo possível admitir que o estabelecido em um decreto se sobreponha a uma norma prevista em lei. Não se afigura razoável, outrossim, em hipótese alguma, que se espere o decurso do prazo para a garantia da acessibilidade integral dos transportes cole- tivos rodoviários para que se inicie a adaptação da frota já existente ou a sua substituição por veículos já fabricados de forma acessível. Desde já, é necessá- rio que seja estabelecida a forma gradual de como essa adaptação ou substitui- ção será efetuada, de maneira que, no final do prazo estabelecido pelo Decreto, realmente se tenha toda a frota acessível. No que diz respeito aos transportes coletivos aquaviário, metroferroviário e ferroviário, também o Decreto traçou um cronograma de elaboração das respecti- vas normas técnicas (vide NBR 15450:2006 – dispõe sobre a acessibilidade de passageiros no sistema de transporte aquaviário), de fabricação de veículos acessí- veis, entre outros, estabelecendo prazos para a garantia da acessibilidade da frota em circulação, inclusive com seus equipamentos e infra-estrutura de serviços. Quanto ao transporte aéreo, o Art. 44 do Decreto nº 5.296/04 estabelece o prazo de até trinta e seis meses, a contar da data da publicação do referido 289 diploma legal, para que os seus serviços e os equipamentos de acesso às aero- naves estejam acessíveis e disponíveis para serem operados de forma a garantir o uso por pessoa com deficiência ou mobilidade reduzida. 8.9. Acesso à informação e à comunicação O Decreto nº 5.296/04 determina, no prazo de até doze meses de sua publicação, a obrigatoriedade da acessibilidade nos portais e sítios eletrônicos da administração pública na Internet para uso das pessoas com deficiência visu- al, garantindo-lhes o pleno acesso às informações disponíveis (Art. 47, caput). Também exige que as empresas prestadoras de serviços de telecomunicações garantam o pleno acesso às pessoas com deficiência, especificando as ações a serem adotadas (Art. 49). Estipula, ainda, o prazo de seis meses para que a Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL regulamente o pleno acesso das pessoas com deficiência auditiva no tocante ao serviço telefônico fixo co- mutado e ao serviço móvel celular. Sem prever mecanismos concretos para assegurar o exercício do direito pelas pessoas com deficiência, o Decreto nº 5.296/04 dispõe nos Arts. 51 e 52, caput, respectivamente, que caberá ao Poder Público incentivar a oferta de aparelhos de telefonia celular que indiquem, de forma sonora, todas as opera- ções e funções neles disponíveis no visor, bem como incentivar a oferta de aparelhos de televisão equipados com recursos tecnológicos que permitam sua utilização de modo a garantir o direito de acesso à informação às pessoas com deficiência auditiva ou visual. Assim também o fez em relação à disponibilidade de obras publicadas no País em meio magnético, em formato de texto, especi- ficando que o Poder Público adotará mecanismos de incentivo para a referida prática (Art. 58, caput). Por outro lado, trouxe clara a obrigação do fornecimento de exemplares das bulas dos medicamentos em meio magnético, Braille ou em fonte ampliada pelas indústrias de medicamentos ao consumidor, mediante solicitação (Art. 58, § 1º), a partir de seis meses da publicação do Decreto, conferindo igual prazo para que os fabricantes de equipamentos eletroeletrônicos e mecânicos de uso doméstico disponibilizassem, também mediante solicitação, exemplares dos manuais de ins- trução nas já referidas formas. A atribuição para a regulamentação do referido artigo, ainda pendente, é da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA. 8.10. Implementação de Ajudas Técnicas O diploma legal sob comento dispensa, ainda, um capítulo para tratar das ajudas técnicas, definindo-as como sendo os produtos, instrumentos, equipamentos ou tecnologias adaptados ou especialmente projetados para me- 290 lhorar a funcionalidade da pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida, favorecendo a autonomia pessoa, total ou assistida (Art. 61, caput), assim consi- derando os cães-guias e os cães-guias de acompanhamento (Art. 61, § 2º). Tam- bém disciplinou financiamentos para pesquisas na área, entre outros assuntos. 8.11. Programa Nacional de Acessibilidade O Decreto nº 5.296/04 estabelece, no Art. 67, o Programa Nacional de Acessibilidade, sob a coordenação da Secretaria Especial dos Direitos Humanos e por intermédio da CORDE, especificando algumas ações a serem por aquela desenvolvida. 9. O acesso às calçadas As calçadas, também chamadas de passeios públicos, constituem impor- tantíssimo fator de acessibilidade em uma cidade, pois se esta se desenvolve apenas com a preocupação de construir edificações acessíveis, sem levar em conta a necessidade de se ter uma calçada também acessível, será constituída por “ilhas de acessibilidade”, motivo pelo qual será dado destaque ao assunto. Considera-se passeio público a parte da via pública destinada à circula- ção de pessoas - independente de idade, estatura, limitação de mobilidade ou percepção -, com autonomia e segurança, bem como à implantação de mobili- ário urbano, equipamentos de infra-estrutura, vegetação, sinalização e outros fins previstos em leis específicas. Tamanha é a preocupação com a acessibilidade das calçadas que o pró- prio Decreto nº 5.296/04 estabelece, expressamente, a necessidade de se cumprir as exigências dispostas nas normas técnicas de acessibilidade da ABNT quando se estiver construindo ou reformando calçadas para circulação de pedestres, prevendo, inclusive, o seu rebaixamento com rampa acessível ou elevação da via para travessia de pedestre em nível. A NBR 9050:2004 estabelece as dimensões livres mínimas que devem apresentar as calçadas, passeios e vias exclusivas para pedestres, sendo elas: faixa livre com largura mínima recomendável de 1,50m, sendo o mínimo admissível de 1,20m e altura livre mínima de 2,10m. (item 6.10.4). Ressalta, ainda, que a referida faixa deve ser completamente desobstruídas e isentas de interferências, como vegetações, mobiliário urbano ou equipamentos de infra- estrutura urbana (bancos, postes, caixas de correio, cabines telefônicas, lixeiras etc), ou, ainda, rebaixamento para acesso de veículos. Também vale ressaltar que até mesmo as obras eventualmente existen- tes sobre o passeio devem ser convenientemente sinalizadas e isoladas, assegu- rando-se uma largura mínima de 1,20m para circulação (NBR 9050:2004, item 291 6.10.7). Caso contrário, deve ser feito um desvio pelo leito carroçável da via (própria rua), providenciando-se uma rampa provisória com largura mínima de 1,00m e inclinação máxima de 10% (item 6.10.7). Também ficam as empresas e concessionárias autorizadas a executar obras e serviços nas vias públicas obri- gadas a recompor o pavimento das ruas e calçadas, assim como remover os restos de materiais utilizados, assumindo as despesas de reparação de quaisquer danos conseqüentes da execução destas obras. As calçadas devem ser rebaixadas junto às travessias de pedestres sinali- zadas com ou sem faixa, com ou sem semáforo, e sempre que houver foco de pedestre (6.10.11.1). Não deve haver desnível entre o término do rebaixamen- to da calçada e o leito carroçável, ou seja, entre o final do rebaixamento da calçada e a via (rua) que vem em seguida, o que ocorre com muita freqüência, fazendo com que as cadeiras de rodas fiquem presas na depressão existente, podendo ocasionar, ainda, o desequilíbrio de algum pedestre que utilize a ram- pa. A única exceção para o rebaixamento de calçada junto à faixa de travessia do pedestre é quando as características do local, como declividade do passeio e interferências irremovíveis, entre outras possibilidades, comprometem a segu- rança viária e a dos pedestres que utilizem cadeira de rodas ou tenham sua mobilidade reduzida. O piso da calçada deve ter superfície regular, firme, estável e antiderrapante sob qualquer condição. As calçadas devem ser construídas a partir do meio-fio (guia) de concreto pré-moldado instalado pela Prefeitura ou pelo loteador, que faz parte do acaba- mento, com 15cm de altura entre o passeio e a rua, executadas sem mudanças abruptas de nível ou inclinações que dificultem a circulação de pedestre, lem- brando-se sempre que nenhum degrau pode nelas ser construído. Para isso, é imprescindível que se observem os níveis dos vizinhos, devendo haver concor- dância entre os níveis das calçadas já executadas, tomando-se o cuidado apenas de se verificar que estão em conformidade com a inclinação apropriada. As rampas para acesso de veículos ou demais nivelamento entre a calçada e a edificação deverão ser acomodadas na parte interna do terreno. No caso de se instalar telefone público na calçada, deve haver a respecti- va sinalização tátil de alerta no piso, devendo aquele ser localizado fora da faixa livre da calçada. As esquinas merecem atenção redobrada, pois são os locais onde ocorrem, de forma mais intensa, as travessias e aglomerações de pedestres. Por coincidên- cia, também é onde ocorre o maior número de interferências sobre o passeio como postes e placas de sinalização, caixas de correios, bancas de jornais, entre outras barreiras. Todavia, é comum verificar-se a instalação de ditos obstáculos de 292 forma a impedir totalmente a passagem de usuários de cadeiras de rodas, pessoas empurrando carrinhos de bebê, entre outros, fazendo com que estes tenham que transitar pela via carrossável (rua), disputando o lugar com veículos, bicicletas, motos e até mesmo ônibus, o que não se pode admitir em hipótese alguma. As bancas de revistas não devem se constituir em um obstáculo arquitetônico nos passeios. Elas devem estar posicionadas longe das esquinas, de forma a não interferir na visibilidade dos pedestres e veículos e não dificultar o deslocamento dos primeiros. As bancas também devem ser acessíveis às pes- soas com deficiência ou mobilidade reduzida, sem a existência de desníveis entre o piso e o seu interior, e o balcão para atendimento deve ter altura máxi- ma de 0,90m. Uma atual necessidade é a existência de legislação municipal que discipli- ne a construção e utilização da calçada, traçando normas que tenham como objetivo maior priorizar o pedestre, em sua grande diversidade, a ele possibili- tando a utilização, com autonomia e segurança, do passeio público, o qual, diante das suas condições de acessibilidade, constitui um obstáculo ou um facilitador para o exercício de direitos como o da educação, da saúde, do lazer, do trabalho, entre outros. É imprescindível que a população se conscientize da importância de suas calçadas, construindo-as, recuperando-as e conservando-as segundo as regras e aspectos técnicos exigidos, pois garantir com igualdade o direito de ir e vir a todos os componentes de uma comunidade é um ato de cidadania e a primeira forma de colaboração para a construção de uma sociedade para todos. 10. A Importância do meio como impedimento para o desenvolvimento de determinada ação, podendo agravar uma situação de desvantagem social Tamanha é a importância do meio em que se vive, aqui podendo desta- car a necessidade de um ambiente acessível para todos, que a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde – CIF – da Organização Mundial da Saúde, leva em consideração, para a classificação da funcionalidade e incapacidade de uma pessoa, associados ao estado de saúde, também os fatores ambientais que descrevem o contexto em que o indivíduo vive e como este pode influenciar, positiva ou negativamente, no desempenho de determi- nadas atividades como estudar, cuidar de sua saúde, praticar esporte, entre outras. Aí aparece a acessibilidade como um fator positivo de inclusão social e equiparação de oportunidades, ocasionando sua falta a exclusão do indivíduo da sociedade, tolhendo-o de desenvolver o seu potencial ou até mesmo atividades que naturalmente seriam executadas se as pessoas estivessem diante de espa- 293 ços acessíveis, ou tivessem acesso a ajudas técnicas, por exemplo. Com efeito, como já afirmou Ana Quintanilla (La Eliminación de Barreras Arquitetónicas y Urbanísticas, 2003, p. 64), em seminário realizado em Madrid, no ano de 2002: “La experiência y los estúdios realizados demuestan que, em gran parte, es el médio el que determina el efecto de una discapacidad sobre la vida diária de una persona”. 11. O desenvolvimento de políticas públicas que garantam a acessibilidade A Constituição Federal de 1988, no Art. 182, estabelece a Política de Desenvolvimento Urbano, com o objetivo de ordenar o pleno desenvolvimen- to das funções sociais da cidade e da propriedade. Para Adriana de Almeida Prado (2003, p. 15 e 16), o princípio da função social da propriedade e da cidade pode ser entendido “como a predominância da formulação e implementação das políticas urbanas de interesse comum sobre o direito individual de propriedade, com o uso socialmente justo e ambientalmente sustentável do espaço urbano”, significando o Direito à Cidade “o usufruto eqüita- tivo aos espaços urbanos, dentro dos princípios da sustentabilidade e da justiça social, como colocados na Constituição Federal de 1988”. A Gestão Democrática da Cidade consiste no controle e na participação da sociedade, diretamente ou representada, no planejamento e no governo das cidades, sendo os Conselhos de Direitos uma importante ferramenta no contro- le democrático das políticas públicas, até mesmo diante da paridade de sua composição, onde entidades governamentais e não governamentais constro- em, fiscalizam e avaliam o que foi planejado em sua área de atribuição. A acessibilidade é transversal às questões relativas à construção de pro- postas para a implantação de políticas públicas voltadas para as pessoas com deficiência nas áreas de saúde, educação, reabilitação, trabalho, esporte, lazer, transporte, habitação. Assim, é necessário que o Poder Público estabeleça um plano de ação para adaptar as edificações e espaços públicos já construídos, passando a obedecer ao que está disposto na legislação e nas normas técnicas em vigor, inclusive no que diz respeito à cobrança de igual atitude em relação às edificações de uso coletivo ou até mesmo as privadas (estas últimas no que tange às calçadas), atuando, portanto, de forma repressiva, tudo com o respec- tivo reflexo no planejamento orçamentário. Como está previsto no próprio Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/01), o Poder Público também deve atuar de forma preventiva, revendo os projetos das edificações públicas ainda não construídas para se verificar a obediência aos ditames legais, fiscalizando o material a ser empregado nas obras públicas para 294 verificar se obedecem às especificações técnicas, mantendo um rigoroso acom- panhamento na execução das obras, promovendo a capacitação do seu corpo técnico e, ainda, em relação às demais edificações, garantindo a expedição de alvará de construção ou reforma, de funcionamento e a concessão do “habite- se” apenas para obras acessíveis, entre várias outras maneiras de atuação. 12. Conclusão É indubitável a intenção do legislador em contemplar não só aspectos relacionados à mobilidade, mas, principalmente, que a acessibilidade seja um instrumento que permita o acesso do indivíduo a diversos dos seus direitos, fazendo com que possa usufruir a sua vida de maneira independente, com as mesmas oportunidades conferidas às demais pessoas. Para que a lei tenha cumprido o seu papel, espera-se que a sociedade, em especial aqueles profissionais ligados à construção e fabricação de bens a serem utilizados pela coletividade, tenha a consciência da importância de se projetar e construir para todos, não apenas por uma mera obrigação legal, mas, sim, porque respeitam o direito alheio de ter acesso aos mesmos bens, serviços e oportunidades que os demais cidadãos. É necessário que todos assumam as suas responsabilidades, quer como Arquitetos, Engenheiros, Promotores de Jus- tiça, Magistrados, Professores, Empresários, ou meros cidadãos, sujeitos de direi- tos e de obrigações. Pretende-se, pois, que a obediência à legislação em vigor seja mais um caminho para a inclusão social das pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida, possibilitando-as de, efetivamente, exercerem as suas cidadanias. Nota 1 Conforme definição contida no próprio Decreto nº 5.296/04, desenho universal é a concepção de espaços, artefatos e produtos que visam atender simultaneamente todas as pessoas, com diferentes características antropométricas e sensoriais, de forma autônoma, segura e confortável, constituindo-se nos elementos ou soluções que compõem a acessibilidade (Art. 8º, inciso IX). Bibliografia CALADO, Giordana Chaves. Acessibilidade no ambiente escolar: reflexões com base no estudo de duas escolas municipais de Natal-RN. Dissertação de Mestrado. Natal:RN, 2006. CIF:Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde. Centro Colaborador da Organização Mundial da Saúde para a Família de Classificações Internacionais, (Org.). Coordenação da Tradução Cássia Maria Buchalla. São 295 Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003. FÁVERO, Eugênia Augusta Gonzaga. Direitos das pessoas com deficiência: garantia de igualdade na diversidade – Rio de Janeiro: WVA Ed., 2004. LA ELIMINACIÓN DE BARRERAS ARQUITETÓNICAS Y URBANÍSTICAS, Un reto social del siglo XXI. Asociación de Periodistas Europeos, MADRID, 2003. LANCHOTI, José Antônio. Capacitação técnica sobre a acessibilidade ao meio físico: as barreiras arquitetônicas e a cidade, apostila. MINISTÉRIO DAS CIDADES. Brasil Acessível. Programa Brasileiro de Acessibilidade Ubana. Implementação do Decreto nº. 5296/04 para a construção da cidade acessível. Caderno 3. PIOVESAN, F., Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 7ª. Edição, revista, ampliada e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2006. PRADO, Adriana de Almeida. A cidade e o idoso: um estudo da questão de acessibilidade nos bairros Jardim de Abril e Jardim do Lago do Município de São Paulo, tese de dissertação de mestrado, PUC/SÃO PAULO, 2003. SUBIES, Laura. El derecho y la discapacidad.Marco normativo argentino. Doctrina. Jurispridencia. Modelos de amparo.1ª. ed. Buenos Aires: Cathedra Jurídica, 2005. 296 SEÇÃO VIII – ACESSIBILIDADE AJUDAS TÉCNICAS: INDEPENDÊNCIA E AUTONOMIA COMO ESTRATÉGIA DE INCLUSÃO Carolina A. Moreira Sanchez Gabriela Rodrigues Veloso Costa Resumo: As ajudas técnicas fazem parte da vida das pessoas com deficiência há alguns séculos. Entretanto, apenas a partir do século XX começaram a ser vistas como instrumento de inclusão deste segmento. Desde as mais simples, como uma bengala, até as mais complexas, como um software ledor para pessoas com deficiência visual, as ajudas técnicas têm evoluído em compasso com o avanço da tecnologia. Classificadas segundo sua utilização e finalidade, estes produtos, equipamentos e dispositivos são, hoje, considerados indispensáveis para a inclusão da pessoa com deficiência. Tendo sua relevância finalmente reconhecida, as ajudas técnicas estão sendo inseridas nas políticas públicas desenvolvidas no país para esta parcela de 24,5 milhões de brasileiros. Palavras chave: ajuda técnica, pessoa com deficiência, inclusão, política pública Abstract: It has been centuries since the aids techniques are part of the life of the people with disability. However, only on century XX they had started to be seen as instrument of inclusion of this segment. Since the simplest, as a cane, until the most complex, as a screen reader software for blind people, the aids techniques have evolved in compass with the advance of the technology. Classified according to its use and purpose, these products, equipment and devices are now days considered indispensable for the inclusion of the person with disability. Having its relevance finally recognized the aids techniques are being inserted in the developed public politics in the country for this parcel of 24.5 million of Brazilians. Keywords: aid technique, person with disability, inclusion, public politics 297 1. Histórico U m dos primeiros registros históricos que se tem do uso de uma cadeira de rodas data de 1650, em Nuremberg, na Alemanha. Era uma espécie de triciclo, movido por manivelas de mão que acionavam a roda da frente por meio de uma catraca interna. Entre o final do século dezenove e o início do século vinte, surgiu a primeira prótese auditiva elétrica, a partir da invenção do telefone por Graham Bell, em 1876. Bell era professor de pessoas com deficiência auditiva em Boston e estava envolvido em vários experimentos que visavam o desenvolvimento de sistemas para auxiliá-las. Sabe-se que o primeiro sistema desenvolvido por Graham Bell para essas pessoas foi utilizado na Inglaterra, em 1896. Esses pri- meiros aparelhos foram denominados próteses auditivas de carbono, por serem compostos de um microfone de carbono, além de um receptor e de uma fonte de energia elétrica. Desde a antiguidade, têm-se notícias do uso de bastão ou vara para a locomoção de pessoas com deficiência visual, como no caso do patriarca bíblico Isaac e do profeta Tirésias. Contudo, apenas no século XX foram registradas tentativas concretas de se descobrir um meio seguro e eficaz para locomoção dessas pessoas. Em 1930, o Lions Club Peoria Illinois (EUA), apresentou uma proposta de lei que dava prioridade no trânsito às pessoas com deficiência visual que portas- sem uma bengala branca. A proposta foi aprovada e passou a ser chamada de Lei da Bengala Branca. Em 1945, o exército americano sentia-se passivo e inoperante diante dos soldados que ficaram cegos durante a guerra e o primeiro-tenente oftalmologis- ta Richard Hoover, junto com sua equipe, propôs estudar e tratar o problema da cegueira e o mecanismo da marcha. Hoover criou, então, um método revoluci- onário de locomoção: usando um instrumento que lembrava um bastão mas, com função, material e comprimento diferentes desenvolveu um sistema de exploração para ser efetuado com o toque da ponta da bengala, que transmitiria todas as sensações táteis detectadas por esta. Em 1948, terminada a primeira etapa dos experimentos, Hoover estendeu o projeto aos soldados cegos. Logo ficou evidente o interesse da sociedade americana, incluindo educadores e fa- miliares dos cegos civis, e, a partir de então, difundiu-se a técnica da bengala longa. A técnica de Hoover, pela sua comprovada eficácia, segue sendo a única em vigor em todo o mundo. Apesar de as ajudas técnicas fazerem parte do cotidiano das pessoas com deficiência há tanto tempo, apenas a partir do século XX elas passaram a ser 298 entendidas como instrumento de inclusão desse segmento. Por meio de dife- rentes produtos, instrumentos e equipamentos, as pessoas com deficiência têm ampliadas suas condições de mobilidade, autonomia, independência e compre- ensão. A melhoria da funcionalidade proporcionada pela utilização de ajudas técnicas permite que essas pessoas tenham efetiva participação na sociedade e os avanços tecnológicos relacionados a esses instrumentos também têm contri- buído no aumento das possibilidades de inclusão. 2. Tecnologia e Ajudas Técnicas Existem diversos exemplos de ajudas técnicas que são atualmente utiliza- das por pessoas com deficiência. Produtos simples e usuais estão encaixados neste conceito, como é o caso do prato com ventosas em sua base que o fixa à mesa e impede que pessoas que não têm controle da sua força, derrube-o enquanto se alimentam. Pode-se citar como exemplo, ainda, uma reglete, pe- quena régua de plástico ou metal com uma cela vazada em seu interior. Presa a uma folha de papel, a reglete permite que pessoas com deficiência visual es- crevam de forma cursiva. Entretanto, é o avanço da tecnologia que tem garantido que um maior número de ajudas técnicas sejam produzidas e aprimoradas. Se nos ativermos aos produtos e equipamentos já existentes, podemos perceber claramente uma grande evolução entre os primeiros produzidos de que se tem notícia e os que são comercializados hoje. Há uma distância considerável entre as cadeiras de rodas de ferro, rígidas e desconfortáveis, usadas no início do século XX e as que vemos circular pelas ruas atualmente. Dobráveis, de alumínio, motorizadas, em modelos específicos para a prática de esportes, que sobem degraus ou que permitem que o usuário fique de pé, as cadeiras modernas são efetivos instrumentos de autonomia para quem as utiliza. O mesmo se pode dizer das próteses auditivas. A prótese elétrica produzida por Graham Bell passou pela era da válvula, que permitiu um maior ganho auditivo, uma maior faixa de freqüência e uma distorção menor; pela era do transistor, marcada pela miniaturização dos componentes; até chegar a era digital, onde uma simples conexão digital com a unidade de programação permite o acesso a todos os ajustes do circuito. Desta forma, parâmetros eletroacústicos podem ser facilmente contro- lados, tornando o trabalho de adaptação mais individual. Mas a grande revolução vem mesmo dos novos materiais e equipamentos que estão sendo produzidos com tecnologia moderna. Nessa linha, pode-se citar o implante coclear, um equipamento eletrônico computadorizado que es- timula diretamente o nervo auditivo através de pequenos eletrodos que são 299 colocados, por meio de cirurgia, dentro da cóclea, fazendo com que o nervo leve os sinais para o cérebro. É um aparelho de amplificação sonora individual muito sofisticado e considerado uma das maiores conquistas da engenharia liga- da à medicina. O desenvolvimento de softwares voltados para o auxílio de pessoas com deficiência também representa grande avanço. Chamamos atenção aqui para aqueles direcionados ao uso de pessoas com deficiência mental. Por meio de textos curtos, animações, filmes e figuras, estes produtos ajudam no desenvol- vimento lógico, na cognição, na capacidade de abstração e na alfabetização. Os softwares têm produzido bons resultados, tais como a persistência na realização de projetos, mudanças positivas na avaliação das noções de relações espaciais, bem como nas de caráter lógico-matemáticas. Há que se mencionar, igualmente, dispositivos como o que detecta a presença de obstáculos por meio de sensores. Preso à roupa de uma pessoa com deficiência visual, o equipamento emite sinais sonoros ou vibra em fre- qüência crescente na medida em que o usuário se aproxima de uma barreira física, o que facilita a mobilidade destas pessoas de forma mais autônoma. Em se tratando de avanços, podemos incluir no rol de novidades relaciona- das às ajudas técnicas a inserção nesta categoria dos cães-guia. Ainda que não possam ser considerados como produtos, materiais ou equipamentos, estes ani- mais passaram a fazer parte da definição de ajudas técnicas devido ao emprego que se lhes dá. Treinados especialmente para conduzir pessoas com deficiência visual, os cães-guia têm a responsabilidade de compensar ou atenuar as conseqü- ências da deficiência e a permitir a estas pessoas o exercício de uma atividade cotidiana, que é a locomoção. Com sua condição recentemente regulamentada no Brasil pela Lei nº 11.126, de 27 de junho de 2005, e pelo Decreto n° 5.904, de 21 de setembro de 2006, os cães-guia representam mais uma opção para as pessoas com deficiência visual que querem transitar com autonomia e segurança. De acordo com a ADA – American with Disabilities Act –, lei americana aprovada em 1990 e que se refere à acessibilidade e equiparação de oportuni- dades, pode-se dividir ou classificar as ajudas técnicas conforme sua utilização e finalidade, como segue: · auxílios para a vida diária – tudo aquilo que ajuda nas tarefas rotineiras, como vestir-se, alimentar-se, tomar banho, realizar serviços domésticos; · comunicação aumentativa e alternativa – recursos utilizados por pessoas com dificuldade na fala, na escrita funcional ou em defasagem entre sua necessidade comunicativa e sua habilidade em falar ou escrever que permitem que possam se comunicar e expressar seus pensamentos, desejos e sentimentos; 300 · recursos de acessibilidade ao computador – o equipamento, os acessórios (hardware) e os softwares que permitem que pessoas com deficiência utilizem o computador; · sistemas de controle de ambiente – aqueles que possibilitam que pessoas com limitações motoras ou locomotoras controlem remotamente aparelhos eletro-eletrônicos, sistemas de segurança, entre outros; · projetos para acessibilidade arquitetônica – alterações arquitetônicas ou reformas que eliminem obstáculos e barreiras e garantam a locomoção das pessoas com deficiência; · órteses e próteses – prótese é a peça ou dispositivo artificial utilizado para substituir um membro, um órgão ou parte dele; ou os aparelhos ou dispositivos destinados a corrigir a função deficiente de um órgão. Órtese são os aparelhos ou dispositivos ortopédicos de uso externo, destinados a alinhar, prevenir ou corrigir deformidades ou melhorar a função das partes móveis do corpo; · adequação postural - adaptações ou posicionadores e contentores que ofereçam maior estabilidade e postura adequada do corpo por meio de suporte e posicionamento de tronco, cabeça e membros; · auxílios de mobilidade – meios de locomoção como andadores, cadeiras de rodas manuais ou motorizadas ou scooters; · auxílios para cegos ou pessoas com baixa visão – regletes, bengalas articuladas, lentes, lupas, materiais em braile e em caractere ampliado, softwares sintetizadores de voz, sistema de narração de imagens; · auxílios para surdos ou pessoas com deficiência auditiva – próteses auditivas, legenda em tempo real, telefone com teclado; e · adaptações em veículos – modificações em veículos e instalação de acessórios que permitam ou facilitem o acesso e uso por pessoas com deficiência. Não obstante à grande gama de ajudas técnicas disponíveis hoje em dia, as pessoas com deficiência ainda têm dificuldade em ter acesso às mesmas. Muitos produtos e equipamentos oferecidos no Brasil têm alto custo para o consumidor e a legislação referente à política de saúde oferta uma quantidade limitada de ajudas técnicas gratuitamente à população de baixa renda. 3. Ajuda Técnica como Política Pública A Constituição de 1988, em seu Art. 23, determinou que é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios [...] cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência. Desde então, o Ministério da Saúde tem atuado no sentido de incluir a atenção à saúde das pessoas com deficiência no Sistema Único de Saúde. Para tanto, foram expedidos diversos atos normativos objetivando viabilizar a organização da assistência e da reabilitação para o segmento, que representa 301 24,5 milhões de brasileiros ou 14,5% da população. Todos estes instrumentos foram elaborados no sentido de regulamentar a assistência, na perspectiva de proporcionar atenção integral à saúde da pessoa com deficiência. O primeiro instrumento legal federal a tratar do assunto na área da saúde foi a Portaria MS/SAS no 116, de 9 de setembro de 1993, segundo a qual, órteses e próteses ambulatoriais aos usuários do sistema contribui para melhorar suas condições de vida, sua integração social, minorando a dependência e amplian- do suas potencialidades laborativas e as atividades de vida diária. Tendo em vista a relevância destes equipamentos, o Ministério da Saúde estabeleceu uma lista de órteses, próteses e bolsas de colostomia a serem distribuídas gratuita- mente aos usuários do Sistema Único de Saúde, atendidos pelos serviços públi- cos ou conveniados dentro da área de abrangência de cada regional de saúde. A concessão se dá pelas unidades públicas de saúde designadas por comissão bipartite, cabendo ao gestor estadual ou municipal, em conformidade com o Ministério da Saúde, definir critérios e estabelecer fluxos para concessão e for- necimento, visando atender as necessidades do usuário. De 1993 até os dias de hoje, outras portarias foram elaboradas a fim de disciplinar o estabelecido na Portaria no 116/93 e ajustar algumas de suas previsões. O principal problema que envolve a concessão de órteses e próteses pelo Ministério da Saúde está ligado à descentralização dos serviços de saúde, implantada na década de 90. Esse modelo organizacional de serviços de saúde entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios repassou aos gestores esta- duais e municipais a responsabilidade de repartir os recursos recebidos do Go- verno Federal de acordo com as prioridades locais dentro de cada nível de complexidade da atenção à saúde. A concessão de órteses e próteses faz parte do nível “Alta Complexidade” e, portanto, disputa recursos com outros procedi- mentos tão importantes quanto a concessão que têm a mesma classificação, tais como a cirurgia cardiovascular, procedimentos de quimioterapia e assistência aos pacientes vítimas de queimaduras. Em decorrência, ocasionalmente não há disponibilidade de recurso para re- passe a essa política pública em alguns Estados e Municípios, ou o repasse acaba sendo insuficiente para atender a demanda dos usuários. Essa situação faz com que as Secretarias Estaduais e Municipais de saúde tenham que elaborar listas de espera para atender àqueles que necessitam das ajudas técnicas, que são atendidos na medida da liberação dos recursos e fornecimento dos equipamentos. Se existem entraves relacionados ao acesso das pessoas com deficiência às órteses e próteses concedidas pelo Ministério da Saúde, é possível apontar vários aspectos que evoluíram desde a primeira portaria elaborada pelo órgão 302 sobre o tema. Atualmente, a diversidade de equipamentos concedidos é muito maior do que aquela que faz parte do Anexo da Portaria no 116/93. Além disso, muito foi feito no sentido de garantir a qualidade das ajudas técnicas concedi- das. Pode-se mencionar aqui a exigência de garantia do material fornecido pelas empresas fabricantes, de assinatura de termo de responsabilidade pelo receptor da órtese ou prótese e pelo médico que a prescreveu e a instituição de normas básicas de confecção. Estas definem especificações relacionadas à confecção, dentre as quais as que se referem aos componentes, à montagem, aos pontos de apoio e à modelagem dos equipamentos. Cabe fazer referência, ainda, ao aumento do número de unidades concedentes. Há alguns anos o Ministério da Saúde vem envidando esforços no sentido de ampliar a rede de reabilitação, inclusive financiando a criação de novos centros de tratamento onde também são concedidas de órteses e próteses. Outro órgão federal que também trabalha com a concessão de ajudas técnicas é o Ministério da Previdência Social – MPS, por meio do seu programa de reabilitação profissional. Após o término desse processo, o MPS pode conce- der os equipamentos e materiais de que o segurado necessite, desde que seu objetivo seja o pleno desempenho de sua atividade profissional. São concedidos desde órteses e próteses até instrumentos de trabalho, implementos profissionais ou quaisquer outros recursos materiais necessários à reabilitação profissional, com vistas a oferecer aos segurados incapacitados para o trabalho (em decorrência de doença ou acidente) os meios de reeducação ou readaptação profissional para o seu retorno ao mercado de trabalho. Segundo informações do sítio eletrônico do Ministério da Previdência Social, o segurado vítima de acidente de trabalho tem prioridade de atendimento no programa de reabilitação profissional e não há prazo mínimo de contribuição para que tenha direito a esse benefício. Além das restrições orçamentárias, uma das maiores dificuldades aponta- das pelo Ministério da Previdência Social é que em muitos locais do país não há empresa fornecedora dos equipamentos prescritos pela equipe de reabilitação profissional que atenda aos requisitos legais estabelecidos pelo órgão. Essa difi- culdade muitas vezes retarda o processo de reabilitação e, em conseqüência, o retorno do cidadão ao trabalho e à vida produtiva. O Ministério da Educação – MEC também está incluído no conjunto de órgãos federais que promovem a concessão de ajudas técnicas. Tanto as escolas públicas que têm alunos com necessidades educacionais especiais matriculados em suas classes, como os próprios educandos podem receber estes recursos que auxiliam no processo de aprendizagem. 303 A cada ano é realizado um censo que permite à Secretaria de Educação Especial – Seesp/MEC obter informações sobre os alunos com necessidades educacionais especiais matriculados na rede pública de ensino. São levantados dados como o número de alunos matriculados em escolas da rede pública, tipo da necessidade educacional especial de cada um, série em que se encontram matriculados, dentre outros. É possível saber, ainda, quais escolas possuem salas de recurso para desenvolver o atendimento especializado a esses alunos, com- plementar à educação formal. De posse dessas informações, o Ministério da Educação concede ajudas técnicas diretamente aos alunos matriculados, como o “Kit para Alunos com Deficiência Visual”, composto por reglete, punção, soroban e outros itens. Por outro lado, recursos como, por exemplo, CD’s de histórias infantis traduzidos em Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS são enviados para os estabelecimentos de ensino, tendo em vista tratar-se de material para utilização coletiva. Há ainda as ajudas técnicas que são concedidas tanto para as escolas, quanto para os alunos. Exemplo disso são as Cartilhas de Alfabetização em Libras. As escolas públicas que necessitem de equipamentos de custo mais ele- vado, como uma impressora braile, podem apresentar projeto de aquisição à Secretaria de Educação Especial – Seesp/MEC por meio da respectiva Secretaria Estadual ou Municipal de educação, solicitando apoio financeiro. Além dessas ações, o Ministério da Educação possui duas publicações direcionadas ao atendimento das necessidades educacionais especiais dos alu- nos com deficiência que orientam os professores a confeccionar ajudas técnicas. O material explica o procedimento de uso desses recursos pedagógicos que visam auxiliar no desenvolvimento e alfabetização dos alunos com deficiência. Os fascículos contêm ajudas técnicas que auxiliam no processo de aprendiza- gem dos alunos com deficiência e que dizem respeito a: · Recursos pedagógicos adaptados; · adaptadores manuais; · informática; · mobiliário adaptado; · mobilidade; e · recursos para comunicação alternativa. Dentre os recursos pedagógicos tratados nas publicações, pode-se citar o Dominó das Cores, a ser utilizado com alunos em fase de educação infantil. Trata-se de um dominó a ser confeccionado em madeira, com peças medindo 4 x 9cm, a serem pintadas com tinta lavável. O jogo facilita a nomeação das cores, a discriminação visual e a correspondência um a um. As peças ampliadas permi- 304 tem melhor manuseio pelos alunos com dificuldade de preensão. Todo o mate- rial pode ser higienizado devido ao tipo de tinta empregada. Outro recurso são as pranchas com estímulos removíveis. A fim de traba- lhar a comunicação alternativa, utilizam-se pranchas industrializadas comuns onde se podem colar tiras de velcro paralelamente, imitando pautas de um caderno e, sobre as tiras, fixar figuras. O material é elaborado no intuito de possibilitar a troca de figuras visando à comunicação por meio de ações motoras do professor ou do aluno. O aluno pode, por exemplo, escolher a figura de um boneco se alimentando ou ingerindo líquidos para indicar se deseja comer ou beber. A indicação, nesse caso, pode ser feita ao olhar em direção a uma das figuras, apontando com o dedo ou mesmo pegando uma delas. Levando em consideração justamente o atendimento de necessidades educacionais especiais, foi elaborada uma resolução pelo Conselho Nacional de Educação do MEC em 2002 versando sobre conhecimentos adicionais que os docentes devem ter a fim de trabalhar com alunos com deficiência. A Resolução CNE/CEB no 1, de 18 de fevereiro de 2002, estabelece, no Art. 2º, que a organi- zação curricular de cada instituição observará, além do disposto nos Art. 12 e 13 da Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, outras formas de orientação ineren- tes à formação para a atividade docente, entre as quais o preparo para o uso de tecnologias da informação e da comunicação e de metodologias, estratégias e materiais de apoio inovadores. Com o propósito de garantir que estes produtos e equipamentos estejam disponíveis para alunos com deficiência no ensino superior, o Ministério da Educação editou a Portaria no 3.284, de 7 de novembro de 2003. No Art. 1º, determina que sejam incluídos nos instrumentos destinados a avaliar as condi- ções de oferta de cursos superiores, para fins de autorização e reconhecimento e de credenciamento de instituições de ensino superior, bem como para reno- vação, conforme as normas em vigor, requisitos de acessibilidade de pessoas portadoras de necessidades especiais. Ou seja, a fim de que novos cursos sejam autorizados pelo MEC, ou para que a renovação de funcionamento seja conce- dida, os estabelecimentos de educação superior devem comprovar o cumpri- mento de requisitos, como a existência de rampas ou elevadores que facilitem a circulação de pessoas com dificuldade de locomoção, máquina de datilografia BRAILLE, impressora BRAILLE acoplada ao computador, sistema de síntese de voz, gravador e fotocopiadora com capacidade de ampliação de textos, barras de apoio nos banheiros, software ledor de tela, equipamento para ampliação de textos para atendimento a aluno com visão subnormal, lupas, réguas de leitura e scanner acoplado a computador. 305 4. A Interação com a Acessibilidade A política de atenção à pessoa com deficiência foi instituída no Brasil pela Lei no 7.853, de 24 de outubro de 1989, e pelo Decreto no 3.298, de 20 de dezembro de 1999, que a regulamentou. Este Decreto inseriu, enfim, as ajudas técnicas como parte integrante da política pública voltada a essa parcela da população e não de setores exclusivos. Entretanto, este diploma legal trata do assunto apenas nas seções referen- tes à saúde e ao trabalho, fazendo com que se perca o entendimento global sobre a finalidade destes produtos, equipamentos e dispositivos. O Decreto nº 3.298/ 99 define ajudas técnicas como elementos que auxiliem ou permitam compensar uma ou mais limitações funcionais motoras, sensoriais ou mentais da pessoa por- tadora de deficiência, de modo a superar as barreiras da mobilidade e da comuni- cação, possibilitando a plena utilização de suas capacidades em condições de normalidade. A despeito dessa visão ampla, ao incluí-las em seções referentes a assuntos específicos, dá a concepção de que se tratam de instrumentos destina- dos unicamente à reabilitação e inserção no mercado de trabalho. Tal situação foi alterada com a edição da Lei no 10.098, de 19 de dezembro de 2000, que versa sobre a promoção da acessibilidade às pessoas com deficiên- cia e deu sentido mais amplo à expressão “ajudas técnicas”. Esses produtos e equipamentos a partir de então são entendidos como instrumentos de acesso desse grupo de pessoas, numa efetiva estratégia de inclusão do segmento. A Lei no 10.098/00 foi regulamentada pelo Decreto no 5.296, de 2 de dezembro de 2004. A fim de deixar clara a amplitude do conceito de ajudas técnicas, o decreto assim as define: os produtos, instrumentos, equipamentos ou tecnologia adaptados, ou especialmente projetados para melhorar a funcio- nalidade da pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida, favorecendo a autonomia pessoal, total ou assistida. Mas esta não é a única inovação trazida por esses dois instrumentos legais. Levando em conta a relevância das ajudas técnicas no dia-a-dia das pessoas com deficiência, o Decreto no 5.296/04 conta com um capítulo destinado somente ao assunto. Um dos pontos fundamentais desse capítulo diz respeito ao estímulo a programas e linhas de pesquisa a serem desenvolvidos com o apoio de organis- mos públicos de auxílio à pesquisa e de agências de financiamento que con- templem temas voltados para ajudas técnicas. Imbuídos dessa idéia, o Ministério de Ciência e Tecnologia – MCT lançou, em 2005, uma chamada pública para apoiar financeiramente projetos de pesqui- sa e desenvolvimento de tecnologias destinadas às pessoas com deficiência e aos 306 idosos. Foram comprometidos recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico no valor de R$ 4 milhões. As linhas temáticas definidas para o financiamento das pesquisas foram saúde, mobilidade, comunicação, habi- litação para o trabalho e execução de atividades básicas. De acordo com o MCT, o objetivo é reduzir as limitações das pessoas com deficiência e contribuir para a melhoria da qualidade de vida e a inclusão social dessas pessoas. Outro ponto do Decreto no 5.296/04 que merece atenção é o que trata da verificação da possibilidade de redução ou isenção de tributo de importação sobre as ajudas técnicas que não sejam produzidas no país ou que não possuam similares nacionais e de redução ou isenção do imposto sobre produtos industri- alizados para aquelas que sejam fabricadas no Brasil. A finalidade é reduzir o custo destes produtos e equipamentos ao consumidor final. A tabela da Tarifa Externa Comum (TEC), aprovada e atualizada pela Câmara de Comércio Exterior estabelece a alíquota do Imposto de Importação de produtos e possui algumas ajudas técnicas com redução ou isenção de alíquota, tais como cadeiras de rodas, aparelhos de audição e próteses ortopédicas. O mesmo ocorre em relação à Tabela de Incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados (TIPI), da Secretaria da Receita Federal. Todavia, as reduções e isenções restringem-se a uma pequena quantidade de ajudas técnicas e não são significativas em relação ao preço final. 5. O Comitê de Ajudas Técnicas O Decreto no 5.296, de 2 de dezembro de 2004, incumbiu a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República de instituir o Comitê de Ajudas Técnicas. Da mesma maneira, a normativa legal estabeleceu que esse comitê deve ser composto por profissionais com reconhecido trabalho na área. O objetivo da medida é tratar de maneira sistemática as questões referen- tes às ajudas técnicas, buscando com isso proporcionar aos seus usuários um acesso democratizado. Para tanto, o capítulo sobre ajudas técnicas do Decreto estabeleceu as responsabilidades do comitê, que são: · estruturar as diretrizes da área de conhecimento; · estabelecer as competências dessa área; · realizar estudos para subsidiar a elaboração de normas a respeito de aju- das técnicas; · identificar os profissionais que atualmente trabalham com o tema; e · detectar os centros regionais de referência em ajudas técnicas, com o objetivo de formar uma rede nacional integrada. Assim, sob a supervisão de representantes da Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência – CORDE, vinculada ao Gabinete 307 da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, o Comitê de Ajudas Técnicas foi instituído no dia 16 de novembro de 2006, por meio da Portaria no 142/06. Atualmente o Comitê é composto por dezoito especialistas da área de ajudas técnicas, dentre os quais representantes da área de informática e de comunicação alternativa; dezessete representantes de órgãos de governo afe- tos à área, como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq/MCT e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES/MEC; além de dois representantes do Conselho Nacio- nal dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência – CONADE, que também faz parte da estrutura da Secretaria Especial dos Direitos Humanos. As reuniões do comitê devem ser bimestrais, sendo que a primeira foi realizada nos dias 16 e 17 de novembro de 2006. Na ocasião, com base nas responsabilidades definidas no Art. 66 do Decreto no 5.296/2004, os membros do Comitê de Ajudas Técnicas traçaram seu plano de ação para curto (1 ano), médio (5 anos) e longo (10 anos) prazos. Fazem parte do planejamento ações de curto prazo, como o levantamento das estruturas existentes e a capacidade de atendimento de usuários finais; ações de médio prazo, entre as quais desta- ca-se a estruturação de diretrizes para implementação da temática ajudas técni- cas nos diversos níveis e modalidades de ensino; e ações de longo prazo, onde cita-se o estabelecimento de diretrizes e subsídios para a implementação de sistemática visando a avaliação de estudos de conformidade de ajudas técnicas (processos, serviços e produtos). Após a definição do plano de ação, o comitê foi dividido em quatro comis- sões temáticas que trabalharão com o propósito de atingir metas que possibili- tem o cumprimento de suas responsabilidades: · Comissão de Normalização e Conceituação - tem como objetivo tratar da definição e da nomenclatura a ser usada pelo comitê, além de realizar estudos, propor e auxiliar na elaboração de normas técnicas das ajudas técnicas disponí- veis. É importante mencionar que alguns autores consideram que as expres- sões “ajuda técnica” e “tecnologia assistiva” não são sinônimas. De acordo com eles, ajuda técnica é o produto ou o resultado de um processo denominado tecnologia assistiva.1 · Comissão de Educação – tem como finalidade promover as discussões no sentido de reconhecer as ajudas técnicas como área de conhecimento, pro- pondo para isso nova legislação e novas políticas relacionadas ao tema. Ressalte-se aqui a necessidade de o grupo discutir também os conteúdos acadêmicos que farão parte dessa nova área de conhecimento. 308 · Comissão de Desenvolvimento e Inovação - estuda a relação entre pes- quisa e desenvolvimento. Essa comissão concentra sua atenção nos fundos setoriais de financiamento à pesquisa, na relação entre universidade e empresa e no papel das fundações estaduais de amparo à pesquisa, visando sempre mostrar a importância das ajudas técnicas como objeto de interesse. · Comissão de Concessão e Aquisição - visa identificar e classificar as aju- das técnicas em áreas específicas, incluindo materiais didáticos especializados que auxiliam os alunos com necessidades educacionais especiais no processo de aquisição dos conhecimentos e a freqüência de sua utilização. Além disso, o grupo estabelecerá diretrizes dos sistemas de informação e estruturação das redes de assistência à população, identificando e promovendo as adequações necessárias na legislação. A discussão inclui a necessidade de capacitação e treinamento dos profissionais que trabalham na área. O objetivo principal dessa comissão é proporcionar o maior acesso possí- vel da população às ajudas técnicas de que ela necessita, seja por meio de concessão ou de aquisição. A questão do financiamento é abordada em todas as comissões, uma vez que os temas sempre são tratados tendo em vista as oportunidades de implementação de linhas de financiamento e de obtenção de isenção ou renún- cia fiscal, nacionais e internacionais, públicas e privadas. 6. Conclusão O surgimento das ajudas técnicas em nossa sociedade data do século XVII e, desde então, vêm influenciando de maneira decisiva a participação social das pessoas com deficiência. Na prática, esses produtos e equipamentos representam uma importante estratégia de equiparação de oportunidades que acaba por viabilizar a inclusão dessa parcela da população na vida escolar, no mercado de trabalho, na cultura, no lazer, no esporte. As ajudas técnicas variam de produtos simples e de baixo custo até equi- pamentos de alta tecnologia e muito onerosos. Um dos motivos da grande quantidade de ajudas técnicas disponíveis e da sua enorme variedade é que cada indivíduo é único e, assim, as características desses equipamentos devem ser desenvolvidas de acordo com seu usuário. Cada pessoa com deficiência apresenta dificuldades diferentes para a re- alização de uma mesma tarefa. Por esse motivo, as soluções devem ser pensa- das e desenvolvidas de forma a proporcionar a cada indivíduo a possibilidade de executar suas atividades com autonomia e independência, fazendo com que 309 estas pessoas tenham as mesmas oportunidades de que dispõem aquelas sem nenhum tipo de limitação. Não obstante às diversas inovações disponíveis, ainda há grande necessi- dade de desenvolvimento de tecnologias assistivas no Brasil, bem como de um incremento na produção desses materiais e equipamentos. Progredindo nessa direção, não será necessária a importação desses produtos, o que dificulta e até impede que as pessoas com deficiência das classes pobres da população te- nham acesso a elas. Embora tenhamos, junto às instituições de ensino superior do país, técnicos preparados e que já desenvolvem tais equipamentos que são fundamentais na vida das pessoas com algum tipo de limitação, as universidades brasileiras pade- cem de insuficiência de recursos para a realização de estudos que visem o desen- volvimento de ajudas técnicas. Esse problema vem sendo combatido e um exemplo disso foi a divulgação do resultado de um edital elaborado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, por meio do qual recursos do Governo Federal foram des- tinados especificamente para o desenvolvimento de tecnologia assistiva para pessoas com deficiência. Iniciativas como essa, relacionada ao desenvolvimento da tecnologia e à produção nacional desses equipamentos, somada ao respeito à legislação e ao avanço das políticas públicas voltadas à concessão de produtos e dispositivos contribuirão para que as ajudas técnicas sejam definitivamente enten- didas como uma questão de direito e como uma estratégia de inclusão. Nota 1 O Comitê de Ajudas Técnicas ainda não se posicionou frente a essa situação. Por esta razão, utilizamos nesse texto as duas expressões como sinônimas. Bibliografia BERSCH, Rita. Introdução à Tecnologia Assistiva. Porto Alegre/RS: 2005. Disponível em http://www.cedionline.com.br/ta.html#categorias, acesso em 25 abril 2007. BORGES, José Antônio. Escrita em Tinta para Deficientes Visuais com Uso de Reglete. Disponível em http://intervox.nce.ufrj.br/dosvox/textos/esctinta.doc , acesso em 24 abril 2007. BRASIL. Censo Demográfico 2000. Brasília: IBGE, 2000. Disponível em http:// www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2000/ primeiros_resultados_amostra/brasil/pdf/tabela_1_1_3.pdf , acesso em 4 maio 2007. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: Texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, com as alterações adotadas pelas Emendas Constitucionais nos 1/92 a 44/2004 e pelas Emendas Constitucionais de Revisão nos 1 a 6/94. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições 310 Técnicas, 2004. _______. Decreto no 3.298, de 20 de dezembro de 1999. Regulamenta a Lei no 7.853, de 24 de outubro de 1989, dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, consolida as normas de proteção, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 21 dez. 1999. Seção 1. ________. Decreto no 5.296, de 2 de dezembro de 2004. Regulamenta as Leis nos 10.048, de 8 de novembro de 2000, que dá prioridade de atendimento às pessoas que especifica, e 10.098, de 19 de dezembro de 2000, que estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 3 dez. 2004. Seção 1. ________. Decreto no 5.904, de 21 de setembro de 2006. Regulamenta a Lei no 11.126, de 27 de junho de 2005, que dispõe sobre o direito da pessoa com deficiência visual de ingressar e permanecer em ambientes de uso coletivo acompanhada de cão-guia e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 22 set. 2006. Seção 1. _________. Lei no 7.853, de 24 de outubro de 1989. Dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, sua integração social, sobre a Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência - Corde, institui a tutela jurisdicional de interesses coletivos ou difusos dessas pessoas, disciplina a atuação do Ministério Público, define crimes, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 25 out. 1989. Seção 1. _________. Lei no 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 20 dez. 2000. Seção 1. _________. Lei no 11.126, de 27 de junho de 2005. Dispõe sobre o direito do portador de deficiência visual de ingressar e permanecer em ambientes de uso coletivo acompanhado de cão-guia. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 28 jun. 2005. Seção 1. _________. Ministério da Saúde. Manual de Legislação em Saúde da Pessoa com Deficiência. Brasília/DF: Editora MS, 2006. _________. Portaria no 3.284, de 7 de novembro de 2003. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 11 nov. 2003. Seção 1, p. 12. _________. Portaria MS/SAS no 116, de 9 de setembro de 1993. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 15 set. 1993. Seção 1. _________. Portaria MS/SAS no 146, de 14 de outubro de 1993. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 19 out. 1993. Seção 1. _________. Portaria MS/SAS no 388, de 28 de julho de 1999. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 30 jul. 1999. Seção 1. _________. Resolução CNE/CEB no 1, de 18 de fevereiro de 2002. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 20 fev. 2002. Seção 1. _________. Secretaria de Educação Especial. Portal de ajudas técnicas para educação: equipamento e material pedagógico para educação, capacitação e recreação da pessoa com deficiência física: recursos pedagógicos [Fascículo 1]. Brasília: MEC/ SEESP, 2002. GOVERNO DA REPÚBLICA PORTUGUESA. Secretariado Nacional para a Reabilitação e Integração das Pessoas com Deficiência. Ajudas Técnicas: Benefícios para Pessoas com Deficiência – Folheto SNR no 49. Lisboa: Governo da República 311 Portuguesa, 2004. Disponível em http://www.snripd.pt/document/ Folheto049em20040813.rtf, acesso em 24 abril 2007. MANZINI, Eduardo José; DELIBERATO, Débora. Portal de ajudas técnicas para educação: equipamento e material pedagógico especial para educação, capacitação e recreação da pessoa com deficiência física: recursos para comunicação alternativa, 2ª ed., Brasília: MEC/SEESP, 2006. MELO, Helena Flávia R. Deficiência Visual, Técnicas de Orientação e Mobilidade. Campinas/SP : Editora da Unicamp, 1991. 312 SEÇÃO VIII – ACESSIBILIDADE SER ACESSÍVEL É LEGAL Maria Elisabete Lopes Resumo: Aparentemente dissociadas e correndo em raia própria, arquitetura e direito têm prestado, juntos, enorme contribuição na tarefa de assegurar a cidadania de pessoas com deficiência ou com dificuldade locomoção e de comunicação. Mesmo sem uma interface direta, muitos profissionais dessas áreas têm atuado conjuntamente para modificar o cenário urbano, seja definindo critérios técnicos para intervir sobre obras e paisagens ou estabelecendo regras, prazos e penalidades relacionadas ao cumprimento ou não da legislação e documentos técnicos normativos visando garantir a acessibilidade aos locais públicos e, em última análise, o constitucional direito de ir e vir. Palavras-chave: acessibilidade ao meio físico, desenho universal, mobilidade reduzida, pessoa com deficiência. Abstract: Architecture and law are two apparently dissociated areas of human endeavor. And, although seemingly running in different lanes, each has made great contributions to the exercise of citizenship for persons with disability, including those with difficulties in getting about and in communicating. Even without there being direct interface between these fields, many professionals in the two areas have acted jointly to improve the urban context. In this respect they have jointly defined technical criteria for interventions in public works and landscapes and have established rules, timeframes and penalties related to the compliance with the legislation and technical norms. Both are thus present in guaranteeing accessibility to public places and, in the final analysis, to the constitutional right to move about. Keywords: accessibility to public places, universal design, persons with disabilities. 313 1. Introdução N ão é uma versão transportada para o mundo real da Liga da Justiça1 e nem se tratam de super-heróis tentando modificar o mundo, mas a integração de profissionais de diferentes áreas, como juristas, arquitetos, psicólogos, enge- nheiros e médicos, entre outros – cada qual com suas “armas”, tecnologia e (por que não?) “poderes” – vem construindo um novo cenário de pleno exercício de cidadania para as pessoas com deficiência. Estas, compreendidas à “pessoa que, por motivos diversos, tem limitada sua capacidade de realizar atividades essen- ciais para a partição na vida diária, não devido à deficiência, mas porque o ambiente físico, a política pública ou a sociedade não o possibilitam”, conforme definido na Convenção Interamericana para Eliminação de todas as formas de discriminação2 (1999) e incorporada no Brasil pelo Decreto nº 3.956, de 2001. Esse decreto é um dos diversos exemplos de como legislação e acessibi- lidade física estão intrinsecamente relacionadas e de como essa união tem sido frutífera ao longo destes últimos 20 anos, resultando em ações efetivas na trans- formação da cidade. Afinal, somente quando grafados no campo dos textos legais, termos como acesso e acessibilidade deixam de ser apenas palavras e ganham significado e força especiais, como sinônimo de direito constitucional e equiparação de opor- tunidades, assegurando a possibilidade de exercer a cidadania. No jargão arquitetônico, a acessibilidade está associada a projetar ou tor- nar lugares e objetos livres de barreiras, de fácil compreensão, que possam ser utilizados por todas as pessoas, independentemente de suas limitações físicas, sensoriais, habilidades ou grau de conhecimento (LOPES, 2005). No Brasil, já existe um conjunto de conhecimentos sistematizados e um pensar acadêmico suficientemente estratificados capazes de suprir qualquer profissional de arquitetura com técnicas e parâmetros de acessibilidade, alguns já detalhados em Normas Técnicas, disponíveis a todos. Entretanto, também neste campo, não basta apenas “saber”, mas, sobre- tudo, é primordial “saber fazer” e, nesse aspecto, a legislação também ocupa papel estratégico, como um dos três pressupostos3, que devem ser persegui- dos para que a acessibilidade se torne uma situação corriqueira e não um ideal: a incorporação dos conceitos de acessibilidade e de “desenho universal” na formação dos profissionais de arquitetura e urbanismo desde a graduação; o provimento de informações técnicas baseadas em tecnologias de ponta e na realidade brasileira por meio de normas técnicas e fontes de referência; e um arcabouço legal que dê suporte e exija o cumprimento dos parâmetros técnicos de acessibilidade definidos pelos profissionais. 314 Embora evidentemente a busca da equiparação de oportunidades para as pessoas com deficiência não se restrinja a promover a acessibilidade ao meio físico, é inegável que o acesso a atividades-chave para o desenvolvimento hu- mano, como educação, trabalho, lazer e cultura têm uma grande importância na vida do cidadão, inclusive caracterizando-o como tal. E, se é no acesso ao meio físico que a arquitetura pode dar sua contribui- ção à cidadania, colocando técnica e conhecimento a serviço de demandas sociais, também é em um trabalho de colaboração multidisciplinar que arquite- tos, legisladores e profissionais do direito vêm colaborando para transformar a realidade das pessoas com deficiência no país. 2. Pensar a diferença André permaneceu parado durante um bom tempo diante da rampa de entrada de sua antiga escola e sorriu ao lembrar de como era engraçado – mas também perigoso – subir carregado pelos colegas os mais de 30 degraus que há vinte anos eram a única opção para vencer a distância entre a calçada e a sala de aula do andar superior. Quando parou de recordar, girou sua cadeira de rodas para ver melhor a nova praça do lugar, em que agora podia circular livremente pelas calçadas providas de piso tátil, descendo nas guias rebaixadas e atravessando toda a sua extensão até encontrar o bolsão de estacionamento, onde deixou seu carro em uma das vagas demarcadas com o logotipo azul e branco. Voltaria ali outro dia desses, quem sabe utilizando um dos ônibus adaptados que passam pelo local seis vezes ao dia. Por um momento, questionou se tudo aquilo era fruto da conscientização dos administradores, de alguma imposição legal ou quem sabe da intervenção técnica dos profissionais responsáveis pela última reforma do prédio. Preferiu acreditar que aquilo era o indício de uma mudança de paradigma e apenas alegrar-se com o fato de as reformas terem acontecido. No livro Pensar a Diferença/Deficiência, a psicóloga e educadora Lígia do Amaral (1994) fala das dificuldades e percalços de quem se propõe a traba- lhar, refletir e pesquisar na área da deficiência, salientando aspectos como os fatores psicológicos, a integração e o desenvolvimento de potencialidades das pessoas com deficiência e sem deficiência, sempre tendo a diferença (e o direi- to a ela) como referência para o debate. Embora seja leitura obrigatória para quem trabalha ou pretende conhecer algo sobre acessibilidade, aproveito aqui apenas o título da obra para abordar outro tipo de diferença. Aquela que é fruto da atuação, nestes últimos anos, de profissionais de distintas áreas do conhecimento que dedicaram sua experiência a questões relacionadas às pessoas com deficiência. Profissionais que muitas vezes não traziam em sua formação acadêmica nenhuma ou quase nenhuma 315 informação a respeito desse tema, que ainda é hoje relativamente pouco difun- dido nos cursos de graduação. Parte indissociável dessa transformação, o surgimento de legislação espe- cífica – normas relativas a edificações, transporte, mobiliário4, especificação de materiais, entre outros documentos técnicos e legais – tem contribuído de ma- neira efetiva para o início de uma transformação de qualidade da cidadania oferecida pelas cidades e pelo país, no sentido de permitir o acesso e garantir os direitos das pessoas com deficiência. O reconhecimento de que estamos longe de um cenário ideal mas que, ainda assim, muito já se avançou, confirma a tese de que a união de esforços de diferentes profissionais, grupos organizados da sociedade, entidades e pessoas em torno de um mesmo tema teve o poder de promover, nas últimas três décadas, um importante salto quantitativo e qualitativo na direção de garantir o acesso e a acessibilidade das pessoas com deficiência. Um salto que – mais uma vez cumpre enfatizar – não é fruto de poucos “iluminados” ou integrantes da já citada Liga da Justiça, mas constitui um novo capítulo da histórica luta por respeito dessa parcela da população a que chama- mos de pessoas com deficiência e que acontece, simultaneamente, em diferen- tes partes do mundo. 3. A pessoa com deficiência como categoria social A luta para que sejam respeitados os direitos de cidadania das pessoas com deficiência ganhou força após a Segunda Guerra Mundial e, particularmen- te, nos anos 60 e 70. Esta mudança de comportamento e de visão social deve ser entendida dentro do conjunto de movimentos das chamadas minorias soci- ais que se multiplicaram pela Europa e, sobretudo, nos Estados Unidos naquele período. Conceitos e “bandeiras” como inclusão e o fim da segregação foram colocados a serviço da busca pelo respeito e igualdade de condições (em resu- mo, acesso) para mulheres, negros e homossexuais. No caso específico das pessoas com deficiência, é impossível não associar o crescimento da consciência sobre a discriminação e a necessidade de alterar esta situação a fenômenos como a contracultura e a resistência da juventude norte-americana à Guerra do Vietnã. Pressionado por um grande número de jovens que retornavam desse conflito mutilados ou com múltiplas deficiências decorrentes de batalhas e já enfrentando fortes críticas de inúmeros setores da sociedade, o governo norte-americano passou a investir em políticas públicas de reabilitação e foi criado um arcabouço legal visando assegurar os direitos dessa parcela subitamente crescente de sua população. 316 Imaginar, porém, que o surgimento de pessoas com deficiência como categoria social, deixando a invisibilidade característica dos setores marginaliza- dos, apenas como conseqüência de um conflito de consciência de governantes seria, no mínimo, desprezar a dinâmica social. Enquanto todo este cenário de fato acontecia, grupos organizados de pessoas com deficiência, de modo similar ao que ocorrera em passado recente com as mulheres, na luta pelo voto; e pelos negros, para freqüentar as mesmas escolas que a população branca, pas- saram a reivindicar publicamente seus direitos, organizando grupos de pressão e recebendo apoio importante de outros setores da sociedade. Esta solidariedade deu ao movimento a oportunidade de amadurecer e afinar suas reivindicações. Da batalha por condições objetivas capazes de dar à pessoa com deficiência meios para “compensar” suas dificuldades, o grupo so- cial passou a exigir que sua “diferença” fosse respeitada, sem que isso implicas- se em abrir mão da plena cidadania, numa estratégia semelhante à praticada pelo movimento feminista nas décadas anteriores, conforme lembrou Amaral (1994) na mencionada obra Pensar a Diferença/Deficiência, alertando sobre os riscos inerentes às tentativas de “normalização” das pessoas com deficiência. De fato, o reconhecimento dessa parcela da população como categoria social traduziu-se pouco mais tarde na Declaração dos Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada pela Organização das Nações Unidas – ONU - em 1975. Mas é somente em 1980 que a Organização Mundial de Saúde – OMS - divulga sugestões e padronizações de termos e conceitos relativos à deficiência, com a intenção de criar termos universais e sistematizar conceituações. Dentro da lógica evolutiva desse movimento social, o passo seguinte foi a reivindicação de que fossem adotadas as chamadas “ações afirmativas”, inicial- mente pensadas dentro do conceito de uma espécie de compensação para o preconceito e a falta de condições prévias – assistência médica e de reabilita- ção, escola inclusiva, transporte adaptado em quantidade adequada, entre ou- tras – para tornar as pessoas com deficiência mais competitivas, sob o ponto de vista do mercado. As ações afirmativas são um conjunto de medidas, sempre respaldadas por leis, que asseguram benefícios relativos a pessoas com algum tipo de defi- ciência. Vagas exclusivas em estacionamentos; assentos e espaços reservados em casas de espetáculos, auditórios e cinemas; além de percentuais de sanitári- os adaptados em edifícios públicos ou mesmo de um número específico de posições de trabalho em empresas a partir de determinado porte são alguns dos exemplos mais comuns em diversas partes do mundo. 317 Apesar de questionadas por uma parcela de atores sociais – e até mesmo por alguns segmentos do movimento de pessoas com deficiência – por reforçar um viés protecionista no olhar sobre a deficiência, tais medidas têm sido aplica- das como políticas públicas, com resultados positivos no que diz respeito à “exposição” da pessoa com deficiência como membro que já não causa mais estranhamento na paisagem urbana e empresarial. Além de facilitar o deslocamento pelo espaço público e a entrada no mercado de trabalho, as ações afirmativas têm inclusive o mérito de apontar as falhas da própria iniciativa. Afinal, não raramente as empresas reclamam que, apesar de a legislação exigir a reserva de certo número de vagas de emprego para candidatos com alguma deficiência física ou cognitiva, quase sempre os processos seletivos não conseguem receber uma quantidade de candidatos minimamente aptos a exercer a função, de certa forma ajudando a denunciar (ainda que indiretamente) a necessidade de se investir na educação para o trabalho dessa parcela da população. Não por acaso, atualmente o Ministério Público paulista e alguns arquitetos se empenham, particularmente, em analisar e exigir a adequação de estabelecimentos de ensinos. Toda a efervescência e mobilização dos anos 60 e 70 só teve o poder de iniciar um processo de mudança efetiva porque encontrou eco no tecido legal – por meio de inúmeras leis e normas mundo à fora. Igualmente, o segmento da arquitetura e engenharia não permaneceu insensível a mais essa demanda social, desencadeando movimentos e propostas como Barrier-Free e Desenho Universal. 4. Acessibilidade: um projeto mundial A sinalização que vinha das ruas e as conjecturas filosóficas sobre a utópi- ca equiparação de oportunidades fez com que, nas últimas três décadas, profis- sionais de arquitetura se debruçassem em torno da tarefa de responder de for- ma sistematizada ao desafio de projetar de maneira democrática e considerando a diversidade humana. Um dos marcos dessa nova corrente ideológica foi a criação, em 1963, na cidade de Washington, de uma comissão de profissionais com a tarefa de elaborar parâmetros para um “Desenho Livre de Barreiras” - Barrier-Free Design. Confirmando o peso que as chamadas “feridas da guerra” tiveram na conscientização do povo norte-americano sobre as necessidades das pessoas com deficiência, coube a uma associação denominada Eastern Paralyzed Veterans Association – EPVA publicar um manual intitulado Barrier-Free Design (1992), contendo leis e informações referentes à acessibilidade, enfatizando parâmetros técnicos como alcance, espaços de circulação áreas de manobra necessárias e porcentagem de equipamentos a serem adaptados ao uso da pessoa com defi- 318 ciência, tanto para espaços públicos quanto privados. Entre essas publicações, um dos destaques desde os primeiros momentos é a American whith Disabilities ACT – ADA, publicada pelo Department of Justice com recomendações, co- mentários, guias de acessibilidade e outras publicações relativas à matéria, com- pondo um painel confiável e que é periodicamente atualizado, mediante a chegada de novas leis ou pesquisas acadêmicas. Mais tarde, nos agitados anos 70, um grupo de arquitetos, desenhistas industriais, engenheiros e pesquisadores da Universidade da Carolina do Norte desenvolveu o conceito do Desenho Universal definido como “o desenho de produtos e ambientes utilizáveis por todas as pessoas no limite do possível, sem necessidade de adaptação ou desenho especializado”. O objetivo é simplificar a vida para todos, elaborando produtos, informações e ambientes construídos mais utilizáveis pelo maior número possível de pessoas, a baixo custo ou sem nenhum custo extra. (Center for Universal Design, 1997). Steinfeld (1995) lembra ainda que, Desenho Universal beneficia pessoas de todas as idades e condições físicas, considerando toda a gama de capacida- des ou habilidades, dando origem na maioria das vezes a produtos flexíveis, sem necessariamente estar relacionado a uma tecnologia direcionada a uma parcela da população. 5. Panorama nacional O debate sobre acessibilidade ao meio físico para pessoas com mobilida- de reduzida e dificuldade de comunicação começou a se popularizar entre os profissionais de arquitetura, urbanismo e design no Brasil apenas em meados da década de 80 e, só muito recentemente, tem ganhado espaço em trabalhos acadêmicos. Nos últimos 20 anos, ocorreram evoluções significativas nessa discussão, no que diz respeito à legislação, definição de conceitos e nomenclatura. No início dos anos 80, havia exclusivamente a preocupação de detectar e denunci- ar as barreiras arquitetônicas, compostas por escadas, degraus, ausência de re- baixamento de guias, sinalização etc, que impediam o livre acesso das pessoas com deficiência. Esse debate, apesar de útil sob o ponto de vista da conscientização profissional, normalmente mostrava-se estéril, pois faltavam critérios objetivos, bibliografia de apoio, legislação adequada e vontade política para que a consci- ência se transformasse em ação. No começo dos anos 90, com a pressão de grupos sociais, com o cresci- mento do interesse dos profissionais por informações técnicas e o surgimento de algumas leis mais completas que exigiam a adequação dos espaços e edifícios de uso coletivo às pessoas portadoras de deficiência, este quadro sofre alterações. 319 Em 1994, acontece a revisão da Norma Técnica NBR 9050, que especifica sobre o tema e que foi criada na década anterior5. Em conseqüência desta revi- são, novos conceitos foram introduzidos, permitindo ao projeto mais flexibilida- de quanto às áreas mínimas necessárias para utilização dos espaços. Mais recen- temente, uma nova revisão foi feita em 2004, ocasião em que foram incorpora- das à norma novas tecnologias, produtos e indicadores técnicos. A partir desses subsídios, um número maior de profissionais passou a atuar no campo da acessibilidade, ampliando a massa crítica e, conseqüentemente, aumen- tando a necessidade de aprofundar as pesquisas sobre o tema, uma vez que a prática tem mostrado que a simples aplicação da norma não é suficiente para responder a todos os questionamentos envolvendo as interfaces econômicas, soci- ais e jurídicas, indissociáveis no trabalho de implementação da acessibilidade. O estágio atual do debate envolve aspectos relacionados à averiguação dos resultados obtidos a partir da aplicação do conhecimento técnico disponí- vel, sobretudo avaliando a satisfação do usuário e os efeitos e qualidade das adequações sobre as edificações e espaços, particularmente na pós-ocupação (LOPES 2005). 6. Uma nova velha polêmica Graças à interação entre os campos de pesquisa da Arquitetura e do Direi- to, muitas leis e cursos de graduação já começam a incorporar – ainda que timidamente – conceitos derivados do Desenho Universal, colocando o Brasil entre os países mais avançados na área da acessibilidade. O preço a pagar por essa proeminência é ver-se inserido em mais uma velha “nova” polêmica pois, ainda há no mundo e em nosso país quem questi- one a validade de exigir, por meios legais, que se cumpram no mundo concreto algumas medidas baseadas em algo razoavelmente abstrato como o conceito de Desenho Universal. A resposta a esse questionamento vem do arquiteto Preiser (2001) ao propor que o conceito não seja visto como uma tendência, mas sim como uma abordagem permanente, que “reflete um processo” e que desde sua concep- ção deve estar focado nas necessidades da maioria. Na verdade, parece mais simples compreender essa perspectiva imagi- nando o Desenho Universal como algo incorporado à arte de projetar, tornan- do-se assim um objetivo, sem o intuito de se chegar a um fim, com a certeza de que é na busca de fazer o melhor e na incorporação de experiências que se encontra o aprimoramento da técnica (LOPES, 2006). É forçoso admitir, entretanto, que leis mais recentes e bem-intencionadas por vezes impõem o atendimento a esse conceito que – justamente por não 320 oferecer parâmetros concretos e averiguáveis – não permite ao poder público verificar seu cumprimento, tornando o texto legal parcialmente inócuo. Para superar a desconfiança que ainda ronda a viabilidade da aplicação do Desenho Universal e auxiliar os profissionais de arquitetura e urbanismo a ofe- recer soluções satisfatórias à sociedade, surgiram nas duas últimas décadas algu- mas normas técnicas e pesquisas acadêmicas em número crescente. Entretanto, na mesma proporção aumentaram também as exigências legais – por vezes, até conflitantes entre si – e a pressão por criar soluções rápidas, tecnicamente precisas e a baixo custo para os desafios impostos pelo novo cenário. Soluções que sejam igualmente eficazes para novos projetos e para intervenções em espaços já existentes. Infelizmente, apesar de um arcabouço jurídico e técnico mais que sufici- ente, na prática ainda se encontram muitos exemplos equivocados de adequa- ção, tanto nos espaços públicos como nos edifícios de uso coletivo. Afinal, não basta fazer “rampinhas”. É preciso pensar como, por quem serão usadas, e como o meio físico pode limitar o acesso a elas. Uma adequação mal feita é pior do que sua inexistência, uma vez que pode se tornar uma referência equivoca- da, ampliando riscos, multiplicando e perpetuando erros. Mas a existência de paradoxos e incoerências não deve ser causa de desâ- nimo ou decepção, tendo muito mais a função de um alerta permanente de que a obra ainda está longe de ser finalizada. Embora arregaçar as mangas e avançar sobre o trabalho de inclusão ainda seja prioridade apenas para quem já atua na área, é inegável que há razões para se comemorar uma evidente mu- dança no panorama geral da acessibilidade, sobretudo nas grandes cidades. Uma transformação na qual profissionais de arquitetura, direito e legisladores não podem requisitar o papel central, mas em que desempenharam, sem dúvida, a função de importantes coadjuvantes. Se a transformação completa do cenário efetivamente estiver a caminho, parece claro que virá ancorada num pluralismo de ações que, enfim, possibilita- rá um olhar único para o homem, tenha ou não alguma deficiência física ou cognitiva. Um olhar que enxergue este homem como ele verdadeiramente é: ao mesmo tempo múltiplo e tão singular. Notas 1 Referência ao fictício grupo de super-heróis, das histórias em quadrinhos e desenhos animados, que se reúnem para salvar o mundo. 2 O texto da Convenção Interamericana para Eliminação de todas as Formas de Discriminação Contra as pessoas portadoras de deficiência foi concluído em 7 321 de junho de 1999 por ocasião do XXIX Período Ordinário de Sessões da Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos, realizado em 1999, na cidade da Guatemala. 3 A autora defende a idéia de que os três pressupostos básicos nos quais o País deve investir para garantir a acessibilidade são: formação profissional, arcabouço técnico e legislação. 4 Normas técnicas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ver referências bibliográficas), relativas ao tema disponíveis no site: www.presidencia.gov.br/ sedh/corde. 5 Ver referências bibliográficas Associação Brasileira de Normas técnicas, NBR 9050 publicadas em 1985, 1994 e 2004. Bibliografia AMARAL, Lígia Assumpção. Pensar a diferença / deficiência. Brasília : CORDE, 1994. AMERICAN WITH DISABILITIES ACT- ADA, Washington D.C.: US Department of justice, Disponível em: