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Pessoas com deficiência e HIV/aids: interfaces e perspectivas: uma pesquisa exploratória

Ana Rita de Paula
Fernanda Sodelli
Gláucia Farias
Marta Gil
Mina Regen
Sérgio Meresman
Sobre os autores:

Pensei: hoje é um dia que dá prá abrir uma janelinha!

Dedicamos este trabalho à Marina, que respondeu assim ao ser indagada porque decidiu participar do Grupo Focal e a todas a, esperando que este texto se junte a sua aspiração.



Como tudo começou

O Amankay Instituto de Estudos e Pesquisas foi contratado pelo Programa Municipal de DST/Aids, da Secretaria Municipal da Saúde, em setembro de 2007, para pesquisar a situação de vulnerabilidade das pessoas com deficiência (PcD) na cidade de São Paulo em relação ao HIV/aids1, pois este é um tema importante e infelizmente ainda bastante desconhecido.

O desconhecimento abrange aspectos quantitativos (como a prevalência do HIV/aids neste segmento, que no Brasil corresponde a aproximadamente 27 milhões de pessoas 2) e aspectos de natureza comportamental, representações simbólicas e temas correlatos. Há muito a conhecer e pesquisar. Como bem enfatizou o Dr. Dráurio Barreira (médico epidemiologista do Instituto de Saúde), antes de pesquisar aspectos referentes à prevalência, há que conhecer comportamentos ligados ao exercício da sexualidade e que são componentes de situações de vulnerabilidade. Esse foi o norte adotado por esta pesquisa.

Ao propor a pesquisa, o Programa Municipal de DST/Aids atendeu uma antiga reivindicação do movimento das pessoas com deficiência, a de conhecer suas necessidades no que se refere à saúde e especificamente em relação ao HIV/aids, para elaborar ações e políticas públicas condizentes.

Essa não foi a primeira ação do Programa neste sentido; destacamos algumas, como a produção de materiais educativos sobre a prevenção do HIV/aids, com a participação do Conselho Municipal da Pessoa Deficiente (CMPD), de São Paulo e de representantes de entidades da sociedade civil (2002), a realização do I Seminário Municipal da Saúde da Mulher com Deficiência, “Direito à Saúde com Dignidade: Sonho ou Realidade” - Coordenadoria de Participação Popular, Coordenadoria Especial da Mulher e CMPD, em parceria com as áreas técnicas da Saúde da Pessoa Deficiente e DST/Aids (SMS/SP), em 2002 e a II Conferência Municipal de DST/AIDS, em 2005, quando foram aprovadas resoluções voltadas para a prevenção às DST/aids em pessoas com deficiência, incluindo a necessidade de pesquisas para conhecer a dimensão da presença do vírus entre estas pessoas e de oferecer qualificação técnica para que PcD possam atuar como Agentes de Prevenção.

Portanto, a pesquisa a que nos referimos, que recebeu o título de “Pessoas com deficiência e HIV/aids: interfaces e perspectivas” 3 representou um passo adiante nesta trajetória rumo ao conhecimento da problemática inserida na confluência destes temas.

A pesquisa foi iniciada pelo IS – Instituto de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. Porém, por questões administrativas internas ao órgão, a atividade foi interrompida e o Amankay foi contratado, em virtude de sua experiência anterior com este tema e deu continuidade ao processo já em andamento. A equipe permaneceu, com exceção de um Agente de Pesquisa.

HIV/aids e Deficiência: um tema a ser conhecido

Apesar do empenho das organizações de pessoas com deficiência que lutam há anos, em nosso país – e em outros – pelo seu direito de exercer a sexualidade com dignidade e segurança, elas ainda são freqüentemente excluídas dos programas de prevenção e atenção ao HIV/aids.

Dentre os fatores que contribuem para que isso ocorra, destacamos:

Permanência de tabus: pessoas com deficiência “não” são sexualmente ativas e, portanto, “não” estão sujeitas a adquirir o vírus;

Dificuldades de articulação entre pessoas com deficiência, instituições da área e os programas de saúde;

Dificuldade de acesso aos meios de prevenção;

Dificuldade de acesso aos espaços sociais onde circula a informação;

Organizações de pessoas com deficiência nem sempre são conhecidas e, portanto, não estão representadas nos espaços de discussão e construção de políticas e programas de prevenção e promoção da saúde.

Apresentando a pesquisa

Em traços gerais, este é o cenário onde se inseriu nosso trabalho, que se caracteriza como uma pesquisa-ação, exploratória, de natureza qualitativa, que identificou conteúdos relevantes visando desdobramentos posteriores.

Entrevistamos pessoas com deficiência física, visual e auditiva, maiores de 18 anos e residentes no Município de São Paulo. As pessoas com deficiência intelectual não fizeram parte desta Pesquisa, por decisão do Programa Municipal de DST/Aids.

O trabalho começou em setembro de 2007; o Relatório final foi entregue em setembro de 2008.

Essa pesquisa tem uma característica pioneira; ela traz provavelmente o primeiro grupo de depoimentos de PcD recolhidos sobre este tema na América Latina.

Objetivo geral

Identificar condições de vulnerabilidade ao HIV/aids nesse segmento, identificando conhecimentos quanto à prática da sexualidade, ao exercício do sexo seguro e atitudes de prevenção adotadas (ou não), buscando subsidiar uma política pública com ações de prevenção, controle e ampliação do acesso aos serviços de atendimento às DST/aids da rede municipal de saúde, inclusive à testagem sorológica.

Objetivos específicos

Oferecer às pessoas contatadas através da Pesquisa facilidades que possibilitem a realização de exames e testes para as principais DST e para o HIV, para aqueles que assim o desejarem, analisando suas reações frente à oferta;

Levantar dados e indícios sobre práticas sexuais para a elaboração futura de pesquisa sobre a prevalência do HIV/aids entre pessoas com deficiência no município de São Paulo;

Identificar condições de vulnerabilidade às DST/aids segundo o tipo de deficiência apresentada e levantar hipóteses sobre seus possíveis determinantes;

Detectar atitudes e posturas que configurem dificuldades e obstáculos ao atendimento das pessoas com deficiência nas Unidades da rede municipal especializada em DST/aids que foram inicialmente selecionadas como referência e propor alternativas;

Propor recomendações, no Relatório Final, sobre o planejamento e execução das atividades de prevenção e de aprofundamento de estudos, identificados como necessários e adequados a cada tipo de deficiência.

Método

A metodologia escolhida foi a da Pesquisa-ação, tomando como base o texto “A pesquisa-ação como método para reconstrução de um processo de avaliação de desempenho”, de Vera Lucia Mira Gonçalves, Maria Madalena Januário Leite e Maria Helena Trench Ciampone 4 por reunir diversas técnicas de pesquisa social, com as quais se estabelece uma estrutura coletiva, participativa e ativa na coleta de informação, envolvendo a participação das pessoas envolvidas na temática estudada.

O trabalho de campo utilizou técnicas qualitativas, principalmente Entrevistas em profundidade e Grupos Focais, pois já demonstraram sua adequação para a compreensão do comportamento das pessoas, não só no seu processo de formação de opinião e tomada de decisão individual, mas enquanto participantes de grupos sociais sujeitos a múltiplas influências na formação e mudança de atitudes.

Posteriormente, ao conhecer o trabalho de Maria de Nazareth A. Hassen 5, concluímos que podemos considerar os Grupos Focais realizados como sendo de “intervenção”, porque foi exatamente essa a nossa compreensão e forma de atuação:

Nesta pesquisa adicionamos ao grupo focal o caráter de intervenção, e não somente de pesquisa. Por essa razão, chamamos a técnica de Grupo Focal de Intervenção (GFI), baseada na leitura do Projeto Sexualidade e reprodução. Nos GFI, as opiniões são levantadas, mas há também um caráter educativo e informativo (negrito nosso). Assim, segundo nossa metodologia, o mediador deve estar capacitado a tirar dúvidas específicas sobre os temas concretos ou deve ser auxiliado por quem o seja (médico, enfermeiro, professor de biologia ou qualquer pessoa reconhecidamente informada). Poderá utilizar livros, cartilhas e cartazes sobre os temas,em especial quando se trata de questões de saúde reprodutiva.

Os primeiros meses foram dedicados à formação dos Agentes de Pesquisa, pois adotamos a premissa de trabalhar com pares.

As razões que levaram a essa decisão foram:

Respeito ao lema do movimento: Nada sobre nós, sem nós”;

Oferecer oportunidade de formação, de exercício profissional e empoderamento;

Facilitar e enriquecer o contato com o público-alvo da pesquisa;

Esta forma de ação é utilizada com excelentes resultados em outros grupos “minoritários”.

Fizeram parte da equipe dois cadeirantes, sendo uma moça com liderança comunitária na região leste da cidade e um rapaz estudante universitário, uma moça surda oralizada, usuária de Libras (língua brasileira de sinais) e atuante na comunidade surda e um rapaz cego, professor de informática, de xadrez e poeta.

Os Agentes visitaram Instituições Especializadas e locais de convivência para convidar pessoas com o perfil desejado para participar de Grupos Focais e entrevistas em profundidade. Estes contatos já constituíram uma troca de informações e podem ser considerados uma prestação de serviços.

Eles também visitaram toda a rede municipal de serviços especializados em DST/aids, para conhecer as condições de acesso ambiental, atitudinal e programático que oferecem às PcD.

Durante seis meses a equipe técnica do Amankay, juntamente com um integrante do Programa de DST/Aids e uma médica do CTA Henfil realizaram reuniões semanais com os Agentes de Pesquisa, discutindo temas relacionados à prevenção, sexualidade e vulnerabilidade às DST/aids, além da produção coletiva dos instrumentos de pesquisa, que seriam utilizados por eles.

Produção coletiva de instrumentos

Abaixo, relacionamos os principais instrumentos elaborados:

Carta de apresentação dos Agentes para as Instituições a serem visitadas;>

Carta-convite às Instituições para participação de seus usuários na Pesquisa;

Roteiro de visita às Instituições;

Roteiro de relatório das visitas às Instituições;

Roteiro de visitas aos Serviços de DST/aids da capital;

Roteiro de relatório das visitas aos Serviços de DST/aids;

Filipetas com convite à participação nos Grupos Focais que foram distribuídas durante a Reatech 2008 e a passeata do Movimento Superação na Av. Paulista;

Lista de interessados em participar dos Grupos Focais;

Lista de presença às reuniões nas Instituições;

Lista de presença às reuniões dos Grupos Focais;

Termo de Consentimento Livre e Esclarecido sobre participação e gravação em áudio nos Grupos Focais;

Termo de Autorização para uso da imagem nos Grupos Focais;

Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para coleta de sangue após reunião dos Grupos Focais.

Os Termos de Consentimento foram impressos em braile e escritos de forma simplificada, para os surdos.

Todo o processo de formação dos Agentes foi realizado por meio de análise e discussão de textos, elaboração de procedimentos para cada atividade, técnicas de dinâmica de grupo, dramatização de situações e muito diálogo numa relação horizontal, respeitando a condição e o tempo de cada um.

Após cada reunião, desenvolvemos a sistemática de redigir memórias em rodízio pelos Agentes e complementações de toda a equipe na reunião seguinte. Esse exercício foi importante para a apropriação e fixação de estratégias e conceitos, além de contribuir para aprimorar a capacidade de comunicação dos Agentes. Na reunião de encerramento do trabalho esse foi um ponto lembrado espontaneamente por eles.

O processo de trabalho conjunto, que permeou todos os momentos e atividades da pesquisa merece ser destacado, pois é um dos fatores que explicam a riqueza do conteúdo produzido.

Grupos Focais

Em geral, os Grupos Focais acontecem durante diversas reuniões, permitindo que os participantes se conheçam e aprofundem a discussão do tema. Este foi um ponto bastante debatido e, ao final, optamos por realizar uma única reunião, considerando as dificuldades de locomoção e de acessibilidade apresentadas pela cidade de São Paulo.

A decisão de condensar as atividades deu origem a outra estratégia: divisão da reunião em três momentos distintos:

Primeiro: coleta dos dados (grupo focal propriamente dito), através do roteiro e anotação dos questionamentos e dúvidas pelo observador;

Segundo: o profissional de aconselhamento do serviço apresentava-se e esclarecia as dúvidas, apresentando material educativo (momento informativo). Ao término desta etapa, os serviços de saúde ofereceram material impresso, preservativos masculinos e gel lubrificante;

Terceiro: apresentação dos serviços disponibilizados no local e oferecimento da testagem sorológica.

Portanto, é adequado enquadrá-los como Grupos Focais de Intervenção, segundo Hassen.

Foram realizados dois Grupos Focais para cada tipo de deficiência contemplado na pesquisa. Dada a oferta de testagem sorológica, os locais mais adequados foram os serviços da rede municipal especializada.

Critérios de seleção dos serviços:

Condições de acessibilidade física, de acordo com o tipo de deficiência dos participantes de cada grupo;

Localização geográfica do serviço (Zonas Centro, Leste, Oeste e Sul);

Receptividade dos Gerentes.

Os serviços selecionados foram:

CTA Henfil (centro);

CTA Sérgio Arouca (Leste);

CTA Santo Amaro (Sul);

SAE Butantã (Oeste).

Divulgação dos Grupos Focais

Para divulgar a realização da pesquisa e convidar as PcD a participar dos Grupos Focais - que contaram com a presença de 42 pessoas no total - utilizamos todos os meios de comunicação ao nosso alcance, trabalhando em rede, o que significa que cada contato levou a vários outros. É possível quantificar o primeiro nível de contatos, mas não os subseqüentes. Essa é a maneira mais eficiente, eficaz e rápida de potencializar ações e disseminar informações.

Os Agentes de Pesquisa e a Equipe Técnica do Amankay utilizaram as seguintes estratégias:

Contato com 21 pessoas de referência na área da Deficiência, que atuaram como multiplicadoras, acessando suas redes de contatos pessoais e institucionais.

Contato com 25 Órgãos públicos e entidades de representação ou prestação de serviços

Listas temáticas de discussão no campo da Deficiência

O convite para participar dos Grupos Focais foi veiculado por 4 vezes no Boletim Novidades do Dia, o de maior abrangência no Brasil. Ele é enviado para 4.913 assinantes (pessoas físicas, residentes no Brasil e em Portugal) e para 32 grupos e listas (relação abaixo), inclusive para Portugal, abrangendo o território nacional.

Pode ser que o alcance seja ainda maior, pois há pessoas que repassam para outras. Aí é impossível calcular.

Outras listas de discussão

Mãe de Deficiente; Educadores; Coletivo de Mulheres com Deficiência; Movimento de Vida Independente

Reatech 2008

O Amankay imprimiu e distribuiu 2.000 folhetos na Feira.

Listas de interessados

O Amankay coletou nomes e telefones para contato de interessados na Passeata da Superação (realizada em 3 de Dezembro na Av. Paulista) e na Reatech. Todas essas pessoas foram contatadas por telefonemas, posteriormente, feitos de manhã, tarde e noite, até conseguir falar com a pessoa que se declarou interessada.

Perfil dos participantes dos Grupos Focais

A pesquisa abrangeu 42 pessoas, dentre os participantes de Grupos Focais e Entrevistas em profundidade. Destes, 22 eram do sexo feminino e 20 do sexo masculino.

Quanto à distribuição por tipo de deficiência, 21 tinham deficiência física, 15 eram surdos e 6 tinham deficiência visual.

Quanto ao estado civil, 15 eram solteiros, 9 eram casados 6 com filhos, 6 eram casados sem filhos, 3 se declararam separados sem filhos, 1 era viúvo e sobre 8 não temos informações.

As tabelas abaixo mostram a distribuição dos participantes por tipo de deficiência, local do Grupo e realização do teste sorológico. A outra mostra a divisão por sexo.

Vale destacar a alta porcentagem dos que se dispuseram a fazer o teste: 31 participantes (74%). Pelo menos cinco alegaram já haver realizado o teste anteriormente, em outros locais.

Distribuição dos participantes dos Grupos Focais por tipo de deficiência, local e realização de teste

Tipo Deficiência Serviço
Presentes
Teste
DF
SAE Butantã
7
3
DF
Sérgio Arouca
14
13
DV
Henfil
2
0
DV
Henfil
4
4
DA
Henfil
8
4
DA
Santo Amaro 7
7
Total

48
31

(1) Das 14 pessoas que fizeram o teste no CTA Sérgio Arouca, uma já era soropositiva, mas mesmo assim quis fazer o teste.

Distribuição dos participantes dos Grupos Focais por sexo

Tipo Deficiência Serviço
Presentes
Teste
DF
SAE Butantã
4
3
DF
Sérgio Arouca
6
8
DV
Henfil
1
1
DA
Henfil
4
4
DA
Santo Amaro 3
4
DV
Henfil 2
2
Total

20
22

Situações de vulnerabilidade

Vale a pena entender como o conceito de vulnerabilidade é entendido no campo da Saúde, pois ele é abrangente e pode ser aplicado a várias situações, como evidencia a definição abaixo:

Vulnerabilidade significa a capacidade do indivíduo ou do grupo social de decidir sobre sua situação de risco, estando diretamente associadas a fatores individuais, familiares, culturais, sociais, políticos, econômicos e biológicos 7

Na publicação do Ministério da Saúde referente ao Marco Legal8·encontramos este conceito

A noção de vulnerabilidade vem confirmar a visão de um homem plural, construído na sua diversidade a partir das suas diferenças, nas dimensões social, político-institucional e pessoal, e, a partir daí, identificar questões que podem aumentar o grau de vulnerabilidade dos indivíduos frente a riscos, tais como: questões de gênero cruzadas com raça/etnia e classe social, condições de vida; condições de saúde; acesso ou não à informação; insuficiência de políticas públicas em saúde e educação, etc.

Pesquisadores como J. Mann (in Ayres, 1999) e colaboradores procuraram articular os aspectos envolvidos no contágio pelo HIV, estabelecendo para tanto uma classificação de vulnerabilidade baseada em três eixos, que são interligados: individual, social e programático ou institucional como seus principais determinantes.

O eixo individual diz respeito ao grau e qualidade de informação de que o indivíduo dispõe sobre certa questão, à capacidade de elaborar essas informações e incorporá-las ou não ao seu cotidiano. Com relação ao HIV/aids ainda acrescentamos as possibilidades efetivas do indivíduo de transformar estas informações em práticas protegidas e protetoras.

O eixo social fala sobre a obtenção de informações, as possibilidades de incorporá-las, que não dizem respeito somente ao indivíduo, como acesso a meios de comunicação, escolarização, disponibilidade de recursos materiais e outros, englobando aspectos sociais, políticos e culturais.

O eixo programático contempla recursos sociais existentes relacionados a programas nacionais, regionais e locais, que no caso do HIV/aids facilitem e disponibilizem, de modo efetivo e democrático, informações, insumos, materiais, e outros elementos necessários para que o indivíduo não se exponha ao HIV.

Assim, entendemos por vulnerabilidade desde a baixa auto-estima, falta de informação sobre os riscos à saúde e sentimento de exclusão (nível individual), até aspectos relacionados à inserção na sociedade, como baixa escolaridade, poucas oportunidades de renda própria e consumo, dificuldades de acesso aos serviços de saúde (nível social) e ao desenvolvimento de ações institucionais especificamente voltadas para o problema da aids como: informação e educação, saúde e serviços sociais e não discriminação em relação às pessoas com HIV e aids (nível programático).

Esses eixos foram identificados nas falas dos participantes dos Grupos Focais e nas entrevistas em profundidade.

Posteriormente, esse mesmo autor (Mann) retomou a questão da vulnerabilidade ao HIV/aids, inserindo-a de forma mais abrangente no marco conceitual da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que é tomada como um “padrão-ouro” para a realização de diagnósticos de vulnerabilidade e correspondente definição de objetivos e estratégias para a sua redução.

Esta perspectiva revela-se atualizada e adequada, uma vez que a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificada pelo Brasil e incorporada ao ordenamento jurídico como Decreto legislativo 186/2008 tem seu embasamento nessa Declaração e, devido ao seu status de emenda constitucional, é ela quem balizará as Políticas Públicas e ações, garantindo os direitos, não apenas no que se refere ao exercício da sexualidade e dos direitos sexuais e reprodutivos, mas também em outras esferas da vida das pessoas com deficiência.

Constatações preliminares

A temática referente ao exercício da sexualidade ainda é pouco debatida; o nível de informação sobre prevenção de DST/aids pode ser considerado baixo; os serviços especializados estão abertos a receber pessoas com deficiência, mas não estão capacitados e muitos não têm acessibilidade, contrariando a legislação vigente; é urgente formular políticas públicas específicas, pois este segmento representa 14,5% da população total.

Embora esta pesquisa seja qualitativa, ou seja, os dados coletados não nos autorizam a fazer inferências de natureza quantitativa, podemos dizer que os depoimentos coletados 9 são representativos, e estão alinhados com as hipóteses construídas nos ainda escassos estudos disponíveis 10, no que se refere à vulnerabilidade, situação compartilhada com pessoas sem deficiência, como a dificuldade de falar com os pais e vice-versa, a desconfiança recíproca com o pessoal da saúde e outras mais específicas (a superproteção da família, a negação da sexualidade, o acesso mais limitado ainda à informação apropriada).

Importa ressaltar:

Apesar de toda a abertura em relação à sexualidade do ser humano em geral na nossa sociedade, ainda é bastante arraigado, tanto entre familiares quanto entre profissionais e educadores, o mito de que a sexualidade das pessoas com deficiência é, por natureza, intrinsecamente problemática e até patológica. Assim, geralmente o que solicitam são formas de “resolver algum problema” surgido em situações de convívio social e/ou de obter “receitas” para evitar ou restringir o surgimento de qualquer tipo de manifestação da sexualidade;

Dificilmente imaginam que essa pessoa possa, sequer, sentir desejo ou que seja capaz de se relacionar amorosa e sexualmente, casar e formar a sua família. Caso ela venha a verbalizar ou demonstrar de alguma forma essa vontade, tanto a família, como os profissionais ainda encontram grandes dificuldades para falar sobre o assunto, oferecer informações adequadas e propiciar oportunidades para que possa exercer seu direito de escolha amorosa e viver a sua sexualidade da melhor forma possível, realizando seus projetos de vida, como evidenciam os relatos a seguir:

  • Primeira menstruação: Prá mim tudo foi mais difícil; assim a primeira menstruação, minha mãe sempre teve vergonha de chegar e explicar. Como ela já vem da minha avó, ela achou que era a mesma coisa, como ela descobriu sozinha, ela achou que eu iria descobrir sozinha e assim já foi bem mais difícil (mulher com visão parcial, 40 anos 11);
  • Educação da mulher: Antigamente, tem uma coisa boa que se diz de se preservar a mulher, sempre foi muito colocado, sempre foi muito forte, essa coisa de que a mulher tem que se preservar. Sim, é importante, porém tem outro lado: a mulher sempre foi muito subjugada, no sentido que assim, sexualidade para a mulher sempre é uma coisa proibida, mulher não podia se tocar, homem pode se tocar, se masturbar, que é a coisa mais comum do mundo (rapaz 32 anos, visão residual 12);
  • Iniciação sexual: Dentro de casa nunca foi falado a respeito dessa coisa de questão de sexualidade, meu pai nunca sentou prá falar com a gente sobre nada. Tudo o que eu aprendi eu aprendi foi na rua. Tudo o que eu aprendi sobre sexo era em roda de amigos, o que um tinha contado, tinha outro, não sei o que, não sei o que lá, tanto que assim eu cometi algumas insanidades (rapaz 32 anos, visão residual 13);
  • Autodidata: Eu era o único filho, com 3 irmãs em casa, e sempre me interessei em saber como as mulheres se sentiam em relação ao sexo. Por isso lia todas as revistas femininas que havia lá em casa e aprendi muito com elas (homem de 36 anos, paraplégico devido a acidente, casado e com filhos 14).
  • Superproteção: A minha mãe, ela sempre me colocou dentro de uma redoma, como uma flor sabe, colocou ali dentro então se uma pétala cai, ela já tenta colocar ou tenta arrumar (moça DV, 22 anos); eu só vou participar desse grupo se o meu pai puder me levar, tenho que falar com ele (rapaz com DV, por telefone15);
  • Rejeição: Fala da mãe para uma moça DV que hoje tem 40 anos: “É você tem que entender que ninguém vai querer casar com você”... Gente, eu era menina, eu tinha uns 14, 15 anos (...) mas ela não falou aquilo por maldade, sabe? Foi no sentido de proteger, mesmo. Ela disse: “Você não é capaz16”.

O acolhimento dos serviços especializados que sediaram os Grupos Focais. As equipes espontaneamente se ofereceram para fazer cartazes, convidar usuários e entidades da região, mobilizaram os profissionais para fazer a testagem, muitas vezes fora de seu horário costumeiro de trabalho.

Esta receptividade demonstra o quanto os profissionais ficaram mobilizados com a questão das pessoas com deficiência e sua ausência no cenário da prevenção e/ou tratamento. Receber estas pessoas nos CTA significou promover a proximidade entre os funcionários e elas, ajudando a diminuir estigmas e preconceitos com relação à sexualidade destas pessoas e a urgência em incluí-las nas ações de prevenção e testagem.

Ter contato direto com PcD no espaço dos serviços especializados de HIV/aids, melhorar as condições de acessibilidade a elas pode ter um efeito direto sobre a abrangência dos programas, pois contribui para ampliar seu escopo e passa a ser um indicador de qualidade destes mesmos programas. Portanto, as PcD não apenas se beneficiam dos serviços, mas também prestam uma importante contribuição.

Em relação ao interesse pelo tema da aids, embora este seja abordado com freqüência pela mídia, a maior parte das pessoas que participaram dos grupos demonstraram ter baixo nível de curiosidade sobre ele, raramente procurando informações a esse respeito, independente do tipo de deficiência, idade, escolaridade e nível sócio econômico. Mas, ao serem estimuladas por perguntas, se interessaram e gostaram de ter aprendido mais. Portanto, mesmo que a PcD se considere informada sobre DST, HIV e aids, vale a pena fazer perguntas específicas. A probabilidade de que ela tenha informações superficiais é muito alta;

Revistas e programas de TV voltados ao público feminino foram os veículos de mídia citados por homens e mulheres com deficiência física e visual como sendo suas principais fontes de informação sobre questões de sexualidade. No caso de programas de TV, foram mencionados os programas veiculados à tarde, muitas vezes por apresentadoras. Essa constatação é importante; esses espaços devem ser considerados quando for traçada uma Política de Informação e um Plano de mídia voltados ao esclarecimento dessa população;

Famílias apresentam uma gama muito variada de atitudes em relação a seus membros com deficiência, indo do extremo da omissão ao da superproteção. Pais e mães freqüentemente têm dificuldade de falar sobre sexualidade com seus filhos de forma natural, tenham eles uma deficiência ou não, o que pode ser mais um dos fatores de vulnerabilidade às DST/aids, a situações de abuso ou de violência sexual experimentadas pelas pessoas com deficiência;

Quanto ao papel das entidades de/para pessoas com deficiência em relação ao tema, é raro que promovam eventos para discutir os vários aspectos da sexualidade, convidando especialistas, exibindo filmes ou distribuindo outros materiais educativos. Os que as freqüentam acabam trocando informações entre si, muitas vezes incorretas e/ou incompletas;

O preconceito tem mil faces e está presente também no campo da sexualidade. A manifestação do preconceito em alguns profissionais da área da Saúde faz com que não ouçam com a devida atenção o relato dos pacientes com deficiência.

As pessoas não dão credibilidade prá você, elas não acreditam que você possa não comandar, mas coordenar um relacionamento e também ser um porto seguro, ser aquele cara que dá assistência pra mulher e fala faz isso, faz aquilo, sabe ser o homem da casa. Eu também sou capaz disso; apesar de alguma dificuldade ou outra isso não me faz menos homem, mas é um exercício que eu tenho que ficar reafirmando todos os dias. A deficiência chegou muito tempo a me avaliar o quanto homem eu era, sabe? A que ponto eu posso me sentir homem?

Rapaz com baixa visão 17

A percepção da importância desta pesquisa que, a despeito dos limites decorrentes de sua natureza – exploratória, de curta duração, abrangendo apenas três tipos de deficiência, equipe pequena, Agentes sem experiência anterior de pesquisa, tema desconhecido, delicado e cercado por “tabus”, recursos reduzidos – está causando repercussões, testou metodologias, produziu instrumentos de pesquisa e volume considerável de dados e constatações, que subsidiarão futuros estudos, mais aprofundados.



Sobre os autores:

Ana Rita de Paula: Mestre em Psicologia Social; Doutora em Psicologia Clínica e consultora na área da Deficiência

Fernanda Sodelli: Psicóloga, mestranda pelo programa de Distúrbios do Desenvolvimento - Universidade Presbiteriana Mackenzie

Gláucia Farias: Psicóloga, Psicanalista, Mestre em Psicologia Social e Doutoranda em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo

Marta Gil: Socióloga, Coordenadora Executiva do Amankay Instituto de Estudos e Pesquisas e Consultora na área da Deficiência

Mina Regen: Assistente Social, Consultora na área da Deficiência

Sérgio Meresman: Colaborador - Psicólogo social, especializado em desenvolvimento comunitário e promoção da saúde



Notas:

1 A grafia da palavra “aids” não está padronizada, segundo o Programa Nacional de DST e AIDS. Para fins deste trabalho, adotamos a grafia “aids”.

2 Atualização dos dados do Censo Demográfico 2000 realizado pelo IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

3 Parecer CEP/SMS n.o 00326/2006; Projeto CAAE 0229/06

5 HASSEN, Maria de Nazareth Agra. Grupos Focais de Intervenção no projeto Sexualidade e Reprodução. Horiz. antropol., Porto Alegre, v. 8, n. 17, June 2002 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-71832002000100009&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 27 Feb. 2009. Doi: 10.1590/S0104-71832002000100009.

6 O termo “casado”, neste contexto, nem sempre significa casamento legalmente constituído, mas convivência prolongada e com objetivos comuns.

7 BRASIL, Ministério da Saúde, 2007, p.9.

8 BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Área de Saúde do Adolescente e do Jovem. Marco legal: saúde, um direito de adolescentes. Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2007. 60p.

9 A íntegra dos depoimentos consta do Relatório Final, ainda não publicado.

10 Como os realizados por Rosana Glat (2004), Nora Groce (2004) e AIDS - Free World e Disabled Peoples’ International (2008), para citar algumas referências fundamentais.

11 Pesquisa “Pessoas com Deficiência e HIV/aids: interfaces e perspectivas”. Amankay Instituto de Estudos e Pesquisas, 2008, Relatório Final, documento interno.

12 idem

13 Idem

14 Idem

15 Idem

16 Idem

17 Idem


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